Por: Paulo Marçaioli
“Vê tudo
aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras;
bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é
fatalista; confia no destino e, sem mais preocupação, adormece com serenidade”
(TAUNAY, Visconde. Inocência, pg. 15).
Já foi dito
que o romance “Inocência” do escritor e engenheiro militar Visconde de Taunay
poderia ser descrito como uma versão de Romeu e Julieta situada nos sertões do
Brasil de meados do século XIX – no caso a história se passa entre 1860 e 1863.
Seria necessário fazer algumas ponderações acerca desta assertiva.
Indubitavelmente, o livro foi um sucesso a seu tempo e jamais deixou de ser
solicitado pelo público. A obra foi publicada em 1872 e desde então vem sendo
republicado em sucessivas edições, além de ter sido traduzido em nada menos do
que 10 idiomas, incluindo o japonês. Todavia, para o leitor de hoje é provável
que o desenlace amoroso entre o jovem Cirino e a pequena Inocência nos surja
hoje como algo de certa forma artificial e improvável
Inocência é
filha de um sertanejo mineiro que reside com sua única parenta nos rincões do
Mato Grosso. Ao teor da cultura local, a mulher é retida quase como uma
prisioneira no recinto doméstico, longe do alcance dos olhares dos matutos e
viajantes daquelas paragens, sob a mais estrita vigilância do pai que, como
mineiro, tem aquele temperamento meio desconfiado meio hospitaleiro que ainda
hoje dizem respeito às particularidades das gentes de Minas Gerais.
Cirino é
outro tipo popular, no caso filho de farmacêuticos que percorre os sertões
promovendo a curo de moléstia através de um método que envolve parcialmente o
conhecimento científico disponível da época e em parte as ervas, as plantes, o
Jaracatiá, o Quino e as demais fontes naturais oriundas da sabedoria popular.
No que se refere ao lado científico do doutor Cirino, sua intervenção se base
basicamente na obra de Chernoviz1.
Mas, como
dizíamos, parece-nos que o problema amoroso não se revela, ao menos hoje, como
o aspecto de maior interesse da obra. “Inocência” se situa nos marcos da
primeira fase do nosso romantismo literário – as descrições da natureza se
embaralham com a estética romântica de modo que o cenário, a vegetação, os rios
e os animais possuem uma dinâmica própria, infundem sentimentos e sensações no
leitor e também nos personagens, informam o espírito do sertanejo e possuem uma
beleza literária toda à parte.
Aparentemente,
poderia se cogitar que a obra de certa forma antecipa a temática regionalista
que seria muita depois desenvolvida pela 2ª geração modernista das quais
Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz são os prováveis
maiores expoentes. Mas o romance parece-nos ser antes de tudo Brasileiro e não
regionalista. Através de uma composição pitoresca e diversificada dos tipos
sociais que informam já uma ideia de nacionalidade, o sertão já se revela como
um universo de tipo nacional. Cirino é paulista, tributário dos bandeirantes, “mamelucos [que] saíam para ir por esses
mundos a fora bater índios brabos e caçar onças, botando bandeiras até na costa
do Paraguai e no Salto do Paraná, tanto assim que deram nas reduções e
trouxeram de lá imundice de gente amarrada” (pg. 81-82). Cirino tem um
temperamento retido e é consequente e leal aos seus sentimentos amorosos. Há o
tipo carioca representado pelo José Pinho, sempre reclamando do trabalho
penoso, um tipo falastrão e indolente, mas também bondoso. Além do mineiro, há
mesmo o estrangeiro Meyer, um alemão, cientista, que viaja pelo Brasil em busca
de insetos e borboletas em missão científica patrocinada pela nação germânica.
A presença do estrangeiro revela algo que já havia sido capturado pela
sociologia Brasileira – a cordialidade e hospitalidade do povo brasileiro tão
comemorada pelos viajantes de fora. É certo que a hospitalidade, a caridade e a
confraternização, convivem, no caso, com a desconfiança de Pereira quanto às
intenções do cientista no que se refere à sua filha Inocência.
O romantismo
em “Inocência” se revela também pelo tom nacionalista da obra, pela descrição
da paisagem, particularmente do cenário natural do cerrado, e pela composição
de personagens diferentes que expressam os tipos sociais predominantes: o
fazendeiro Pereira, a sua reduzida escravaria, os viajantes sertanejos, as
pequenas vilas com seus juízes de paz, coronéis e vigários. Um certo fatalismo
envolve o problema do amor, culminando num final trágico, aparentemente
inevitável. Mas Taunay sugere em algumas passagens que a própria forma como a
mulher, o sexo delicado, é tratada nos pontos mais periféricos do Brasil seria
na verdade a causa da fatalidade. Meyer, o alemão, sugere que o pai de
inocência não a casa pela força. Inocência tenta se insurgir com o enlace
forçado com Manecão e é repelida com violência pelo pai. Cirino intenta
discutir com Pereira sobre sua noção negativa da mulher.
Não há por
outro lado uma força moral ou uma coragem arrebatadora que possibilite que
Cirino e Inocência, uma vez se amando, se insurjam contra o casamento forçado
da jovem com Manecão. Os dois sucumbem à tragédia apenas cogitando algum lance
de ousadia, como a fuga. Talvez, o fracasso do enlace amoroso dê um verniz mais
humano à história, na medida em que Cirino e Inocência apenas reagem de acordo
com suas possibilidades, sem um heroísmo que fizesse da história ainda menos
verossímil para o leitor dos dias de hoje. O que é certo é que “Inocência”
ainda está preso a alguns pressupostos do próprio modelo literário romântico,
dentre eles a tragedicidade do amor, que é o limite da obra. Seu interesse
todavia ainda é bastante relevante como fonte preciosa acerca do passado
brasileiro, dos tipos sociais, das expressões da língua popular, da força
predominante da fé cristã, do problema da mulher, das práticas medicinais que
combinam alguns conceitos científicos e a sabedoria popular. O livro é parte de
um movimento literário amplo em busca da construção da nacionalidade brasileira
cujo ponto de chegada é o modernismo em suas diferentes gerações.
“De vez em
quando, naquela silenciosa rua em que tão bem se estampa o tipo melancólico de
uma povoação acanhada e em decadência, aparece uma ou outra tropa carregada,
que levanta nuvens de pó vermelho e atrai às janelas rostos macilentos de
mulheres, ou à porta crianças pálidas das febres do Rio Parnaíba e barrigudas
de comerem terra.
Também aos
domingos, à hora da missa por ali cruzam mulheres velhas, embrulhadas em
mantilhas, acompanhando outras mais mocinhas, que trajam capote comprido até
aos pés e usam daqueles pentes andaluzes, de moda em tempos que já vão longe”
---
[1] Pedro Luiz Napoleão Chernoviz foi um médico, acadêmico e editor polonês que consolidou sua carreira e fama no Império do Brasil.
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