Tão raros ou tão pouco lido
andam os antigos escritores portugueses, que muitas pessoas há, não de todo
hóspedes nas letras, que apenas de nome os conhecem, e frequentes vezes nem de
nome. Grave mal, por certo, e mui de lamentar é tal e tão ingrato desamor
àqueles que assim lidaram em suas doutas vigílias ou para nos transmitirem as
heroicas façanhas de nossos antepassados, ou para nos doutrinarem com virtuosos
conselhos, ou para nos consolarem com um brado de poesia de mais singelas eras,
ou, finalmente, para nos herdarem sua ciência; que muita e boa a tiveram.
Assustam os livros pesados e volumosos do tempo passado as almas débeis da
geração presente: a aspereza e severidade do estilo e linguagem de nossos
velhos escritores ofende o paladar mimoso dos afeitos ao polido e suave dos
livros franceses. Sabemos assim quais são os documentos em que estribam glórias
alheias: ignoramos quais sejam os da própria, ou, se os conhecemos, é porque
estranhos no-los apontam, viciando-os quase sempre. Sintoma terrível da
decadência de uma nação é este; porque o é da decadência da nacionalidade, a
pior de todas; porque tal sintoma só aparece no corpo social quando este está a
ponto de dissolver-se, ou quando um despotismo ferrenho pôs os homens ao nível
dos brutos. Desenterra a Alemanha do pó dos cartórios e bibliotecas seus velhos
crônicones, seus poemas dos Nibelungos e Minesingers; os escritores encarnam na
poesia, no drama e na novela atual as tradições populares, as antigas glórias
germânicas, e os costumes e opiniões que foram: o mesmo fazem a Inglaterra de
hoje à velha Inglaterra, e a França de hoje à velha França: os povos do Norte
saúdam o Edda e os Sagas da Irlanda, e interrogam com religioso respeito as
pedras rúnicas, cobertas de musgos e sumidas no âmago das selvas: todas as
nações, enfim, querem alimentar-se e viver da própria substância. E nós?
Reimprimimos os nossos cronistas? Publicamos os nossos numerosos inéditos?
Revolvemos os arquivos? Estudamos os monumentos, as leis, os usos, as crenças,
os livros, herdados de avoengos?
Não. — Vamos todos os dias
às lojas dos livreiros saber se chegou alguma nova sensaboria de Paul de Kock;
alguma exageração noveleira do pseudônimo Michel Massan; algum libelo antissocial
de Lamenais. Depois, corremos a derrubar monumentos, a converter em latrinas ou
tabernas os lugares consagrados pela história ou pela religião...
E, depois, se vos
perguntarem: de que nação sois? respondereis: portugueses!
Calai-vos; que mentis disfarçadamente.
Mas nós faremos lembrada,
ao menos aqui, a nossa glória literária.
Como o pai da história
nacional, como o velho Fernão Lopes, começamos a escrever as memórias que dele
restam moralizando primeiro, do mesmo modo que ele moralizava antes de entrar
na matéria. Não se nos leve a mal um defeito, se o é, em que já caiu o nosso
principal cronista, quando é dele que devemos falar.
Escassas são as notícias
que chegaram até nós acerca de Fernão Lopes. A época do seu nascimento
ignora-se; mas parece que devia ser na da gloriosa revolução de 1380, ou alguns
anos antes. O abade Barbosa e outros dizem que fora secretário del-rei D.
Duarte, quando infante, e de seu irmão D. Fernando, e cavaleiro da casa do
infante D. Henrique. Em 1418 foi encarregado por D. João I da guarda do real
arquivo, cargo que até então andava unido a um emprego da fazenda pública.
Por trinta e seis anos
serviu Fernão Lopes de guarda dos arquivos, e de todo este tempo existem várias
certidões, passadas por ele, das
escrituras da torre do castelo da cidade de Lisboa. Depois de tão largo
período foi substituído por Gomes Eanes de Azurara, que D. Afonso V nomeou em
lugar de Fernão Lopes, por este ser
já tam velho e flaco, que per sy non podia bem servir o dicto officio,
dando-o a outrem por seu prazimento
e por fazer a elle mercê, como é rezom de se dar aos boõs servidores,
segundo diz a carta de nomeação de Azurara. A época da morte do cronista
ignora-se absolutamente; mas sabe-se que ainda vivia em 1459, cinco anos depois
de ter sido exonerado do cargo de guarda do arquivo.
Quando D. Duarte subiu ao
trono (1434) deu carrego a Fernão
Lopes, seu escripvam, de poer em caronyca as estorias dos Reys, que antygamente
em Portugal forom; e esso mesmo os grandes feytos e altos do muy vertuoso e de
grandes vertudes El-Rey seu senhor e padre (D. João I), dando-lhe por
isto quatorze mil libras cada ano, mercê que foi confirmada em nome do moço
príncipe, por influência do infante D. Pedro, tão sábio quanto infeliz, pai e
protetor das letras.
Foi, com efeito, Fernão
Lopes o primeiro que pôs em crônica,
isto é, em ordem, as estórias da
primeira dinastia dos reis portugueses, e fez a bela Crônica de D. João I. Até
aí havia apenas algumas memórias espalhadas, alguns breves compêndios dos
sucessos públicos. Neste número deve entrar um manuscrito que existia em Santa
Cruz de Coimbra, feito, segundo parece, nos fins do século XIV, em que mui de
leve se mencionam os acontecimentos mais notáveis dos três primeiros reinados,
e dele talvez se houvessem de contar as antigas crônicas, que Duarte Nunes
reformou, ou estragou, e que muito desconfiamos sejam as mesmas que coligiu Acenheiro no princípio do
século XVI, e que serviram de fundamento a Rui de Pina e Galvão: sobre tudo o
que pesam ainda muitas sombras, ao menos para nós, parecendo-nos, todavia,
indubitável que alguma coisa havia escrita antes de Fernão Lopes; porque a
alguma coisa eram essas estórias dos
antigos reis, mencionadas na carta de nomeação de Fernão Lopes, e que nesse
documento se distinguem claramente dos feitos de
D. João I.
De quanto Fernão Lopes
escreveu, o que hoje existe conhecido e impresso é a Crônica de D. Pedro I, a
de D. Fernando e a D. João I. Contudo, por averiguado se tem que ele escrevera
as dos outros reis anteriores, e até Damião de Góes lhe atribui uma de D.
Duarte. Seja o que for, é certo que para a glória de Fernão Lopes são
monumentos sobejos as três crônicas que dele existem.
O nosso célebre crítico
Francisco Dias, o homem, talvez, de mais apurado engenho que Portugal tem tido
para avaliar os méritos de escritores, diz que Fernão Lopes fora o primeiro, na
moderna Europa, que dignamente escrevera a história: com razão o diz, e poderia
acrescentar que poucos homens têm nascido historiadores
como Fernão Lopes. Se em tempos mais modernos e mais civilizados houvera vivido
e escrito, não teríamos por certo que invejar às outras nações nenhum dos seus
historiadores. Além do primor com que trabalhou sempre por apurar os sucessos
Políticos, Lopes adivinhou os princípios da moderna história: a vida dos tempos de que escreveu
transmitiu-a à posteridade, e não, como outros fizeram, somente um esqueleto de
sucessos Políticos e de nomes célebres. Nas crônicas de Fernão Lopes não há só
história: há poesia e drama: há a Idade Média com sua fé, seu entusiasmo, seu
amor de glória. Nisto se parece com o quase contemporâneo cronista francês
Froissart; mas em todos esses dotes lhe leva conhecida vantagem. Com isto, e
com chamar a Fernão Lopes o Homero da grande epopeia das glórias portuguesas,
teremos feito a tão ilustre varão o mais cabal elogio.
***
A Fernão Lopes sucedeu no
cargo de guarda dos arquivos Gomes Eanes de Azurara, como dissemos no primeiro
artigo, com o consentimento dele, que por velho e doente de boa vontade
resignou o emprego, que tão dignamente servira. Foi Gomes Eanes filho de João
Eanes de Zurara ou de Azurara, Conego de Évora e de Coimbra. Entrou, sendo
mancebo, na ordem de cavalaria de Cristo, onde chegou a ter o grau de comendador
de Alcains, a qual comenda possuía em 1454, e que depois trocou pelas do
Pinheiro-grande e da Granja de Ulmeiro, que achamos serem suas pelos anos de
1459.
Parece que durante a sua
mocidade Gomes Eanes, segundo o costume dos cavalheiros daqueles tempos, se
ocupou inteiramente no exercício das armas, sem curar de instruir-se nas boas
letras. Verdade é que o abade Barbosa o faz erudito na história desde mancebo;
mas o mestre Mateus de Pisano, seu contemporâneo, preceptor de D. Afonso V e
autor de uma crônica da conquista de Ceuta, escrita em latim, diz que, sendo já
de idade madura, se aplicara ao estudo, mas que até então fora inteiramente
hóspede em literatura.
Foi depois desta época que
Gomes Eanes entrou no serviço del-rei D. Afonso V, como guarda da Torre do
Tombo, segundo se colhe da carta de sua nomeação, passada a 6 de junho de 1454;
como bibliotecário da livraria real fundada por aquele monarca, do que nos
informa mestre Mateus na obra citada; e como encarregado de escrever várias
crônicas das coisas portuguesas, conforme o diz o próprio Azurara no capítulo
II da Crônica do conde D. Pedro de Menezes.
Documentos daquele tempo
provam D. Afonso V fizera grande estimação de Gomes Eanes. Morava este em umas
casas del-rei à porta do paço de Lisboa; tinha uma tença de doze mil reais
brancos; e fez-se-lhe mercê, em 1467, de uma capela que vagara para a coroa,
graça esta que, como observa o abade Corrêa da Serra, era naqueles tempos assaz
extraordinária. Doou-lhe, também, el-rei umas casas em Lisboa, do que se acha
memória no livro 3º dos Místicos. Antes disto, porém, Gomes Eanes era homem
abastado, segundo se colhe de outros documentos coevos.
Acerca deste cronista se
conserva ainda uma lembrança curiosa no Arquivo da Torre do Tombo. Em 1461 uma
peliteira viúva e rica, chamada Joana Eanes, o adotou por filho, constituindo-o
seu herdeiro. O já citado abade Corrêa nota, com razão, que tal adopção de um
homem nobilitado por seus cargos e pela qualidade de cavaleiro, feita por uma
plebeia, era inteiramente oposta às ideias do século XV, devendo-se por isso
suspeitar que Azurara foi daquelas pessoas, para quem o respeito ao dinheiro é
o principal de todos os respeitos.
São incertíssimas todas as
datas relativas à vida de Gomes Eanes: apenas se pode dizer que vivera pelo
meado do século XV. A maior parte das memórias que dele falam não mencionam nem
a época do seu nascimento, nem a da sua morte. Algumas há que dizem fora
nomeado cronista em 1459: ignoramos se existe ainda a carta de tal nomeação;
mas disso duvidamos. O que se pode afirmar é que Azurara acabou uma das suas
crônicas (a do conde D. Pedro) em 1463, porque ele próprio o diz. Antes desta compusera
a da tomada de Ceuta, que serve de terceira parte à de D. João I escrita pelo
imortal Fernão Lopes; e depois dela a de D. Duarte de Menezes. Estas são as
três obras, que com certeza se podem atribuir a Azurara. Quer, todavia, Damião
de Góes que na Crônica del-rei D. Duarte, atribuída vulgarmente a Rui de Pina,
e cuja melhor parte ele julga de Fernão Lopes, houvesse também alguma coisa de
Gomes Eanes.
Apesar da estimação e
respeito que merecera Fernão Lopes aos seus contemporâneos, parece que o seu
imediato sucessor lhe levou nisso conhecida vantagem, posto que muito inferior
lhe fosse em mérito. Azurara, tendo de escrever sobre coisas de África, passou
àquelas partes, e lá fez larga demora para conhecer miudamente os lugares e
circunstâncias das façanhas que tinha de narrar. Estando ali, recebeu a célebre
carta de D. Afonso V, que anda impressa no princípio da Crônica de D. Duarte de
Menezes. Este documento prova quão bela era a alma daquele monarca, a quem
podemos sem receio chamar o último rei cavalheiro, e cuja honrada memória têm
pretendido escurecer aqueles que só em seu filho encontram um grande homem. Vê-se
nesta carta que D. Afonso entendia que uma pena vale bem um cetro, e o engenho
um trono. De irmão para irmão não houvera mais afável e afetuosa linguagem, e
mais generosas animações e mercês. Bem nos pesa que não seja possível, pela extensão
desse documento, o lançá-lo neste lugar; não para exemplo de reis, mas de quem
mais do que eles carece de tão formosa lição, neste século que se diz alumiado,
e em que há homens que em nome da Pátria votam miséria e fome para àqueles que
mais bem merecem.
Do merecimento literário de
Gomes Eanes de Azurara diremos em breves palavras o que entendemos. Pode-se de
algum modo comparar ao italiano Alfieri, posto que pareça pouco exata qualquer
comparação entre um autor de crônicas e um poeta dramático. E todavia muito há
em um que do outro se possa dizer: ambos chegaram à idade viril sem possuírem
os rudimentos sequer das boas letras: nos escritos de ambos aparece o resultado
desta falta de educação literária: há em um e outro certa inflexibilidade feroz
e ausência inteira daquelas graças de estilo que nascem do coração amaciado
desde a infância pela cultivação do espírito: as concepções nascem-lhes do
entendimento, como Minerva da cabeça de Júpiter, cobertas, por assim dizer, de
um arnês de ferro. Louva-se em Azurara, e de louvar talvez é, a sinceridade
bravia, com que lança em rosto aos heróis, cujas façanhas escreve, os defeitos
que tiveram, os erros e culpas em que caíram: nisto se parece também, de certo
modo, com Alfieri. Mas nós preferimos o sistema de Froissant e Fernão Lopes:
para cada um dos seus heróis havia nestas almas generosas um tipo ideal a que
procuravam assemelhá-los, engrandecendo-os: e porventura que mais profícua é
assim a história ao gênero humano. Para acabarmos um paralelo, que poderíamos
levar mais longe, notaremos a tendência dos dois escritores, que colocamos em
frente um do outro, para filosofar
trivialidades, e ostentar elegâncias retóricas e erudições suadas para
eles, impertinentes para os leitores. Move a riso ver o pobre Azurara a lidar
em pôr claro como a luz do dia, com a autoridade de São Jerônimo, Salústio, Fulgêncio,
e casy todolos outros auctores,
que são temíveis as más línguas, como causa sono o observar os tratos que o
ilustre dramaturgo italiano dá ao juízo para nos fazer odiar a tirania, acerca
da qual escreveu um volume, coisa muito escusada na moderna literatura.
Todavia, em ambos eles a sinceridade das intenções supre de algum modo a aridez
e o vazio da obra.
Posto, porém, que Azurara
esteja em grau inferior a Fernão Lopes, não deixou de fazer com seus escritos
bom serviço à literatura Pátria. João de Barros o tinha em subida conta, e até
no estilo dele se comprazia. Não assim Damião de Góes, que foi o primeiro em
notar-lhe as afetações retóricas. Infelizmente para Azurara, Góes era melhor
juiz; e a posteridade, confirmando a sentença do perspicaz cronista de D.
Manuel, rejeitou o parecer do historiador da Índia.
***
O nome de Lucena parece vir
pouco a ponto em uma notícia dos historiadores portugueses, porque dele não
resta uma só página original sobre
história; mas julgamos dever fazer menção de Vasco Fernandes, não só por ter
sido um dos homens mais célebres do seu tempo, como também, e principalmente,
por ser dentre eles o primeiro que, depois de Azurara, teve o cargo de
cronista-mor. Encarregado de várias missões políticas nos reinados de D.
Duarte, D. Afonso V e D. João II, e vivendo, por tal motivo, a maior parte da
vida em países estranhos, ocupado, além disso, quando residiu no reino, em grandes
negócios de Estado, não pode provavelmente ocupar-se dos estudos históricos
necessários para poder desempenhar as obrigações do seu cargo, do qual fez desistência
em Rui de Pina no ano de 1497.
Escreveu, todavia, Vasco de
Lucena várias obras que, ou se perderam, ou jazem manuscritas em parte que se
não sabe. Da Instrução para
Príncipes, de Paulo Vergério, traduzida por ele de ordem do infante D.
Pedro e que Barbosa diz existir na biblioteca real, não achamos o menor
vestígio, apesar de consultarmos um catálogo anterior, segundo nos parece, a
1807. Das outras obras suas, de que faz menção Barbosa, também nenhum rasto
encontramos, ao passo que existe uma, que não duvidamos de lhe atribuir, e que
o nosso ilustre bibliografo não conheceu. É esta uma tradução francesa de
Quinto Cúrcio, feita no ano de 1468, a qual pertenceu a Filipe de Cluis,
comendador da ordem de S. João de Jerusalém, e que atualmente se guarda entre
os manuscritos do Museu britânico.
***
Rui de Pina sucedeu, como
dissemos, a Vasco Fernandes, em 1497, no cargo de cronista-mor, posto que muito
antes exercitasse o ofício de historiador. Dos primeiros anos de Rui de Pina
apenas se sabe que foi natural da Guarda, mas ignora-se o ano do seu
nascimento, ainda que haja algumas suspeitas de fosse pelos anos de 1440. Em
1482 diz ele que fora por secretário da embaixada mandada por D. João II a
Castela, e o mesmo cargo serviu daí a dois anos na embaixada de Roma. Parece
que, voltando de desempenhar esta comissão, o encarregou el-rei de escrever as
crônicas do reino, apesar de então ser cronista-mor Lucena, o que se depreende
de uma provisão de D. João II, em que lhe manda dar uma tença de nove mil e
seiscentos réis "esguardando ao trabalho e à ocupação grande que Rui de
Pina escrivão da nossa câmara tem com o carrego que lhe demos de escrever e
assentar os feitos famosos asy
nossos como de nossos reinos que em nossos dias são passados, e ao diante se fizerem." Em outra
provisão lhe concede também seis mil réis de mantimento.
Depois desta época ainda
Rui de Pina serviu em outra embaixada a Castela e andou envolvido nos difíceis
negócios públicos daquele tempo, até que, sucedendo na coroa D. Manuel, não só
lhe confirmou as mercês do seu antecessor, mas fez-lhe outras novas, dando-lhe
finalmente o cargo de cronista-mor, e guarda-mor da Torre do Tombo e da
livraria real.
Em 1504 tinha Rui de Pina concluído
os seus trabalhos históricos, porque nesse ano recebeu de D. Manuel uma nova
tença de trinta mil réis pelas crônicas de D. Afonso V e de D. João II,
acrescentando a esta soma cinco moios de trigo em Ceuta e um casal del-rei no
termo da Guarda.
"Cheio de honras e de
recompensas, diz o abade Corrêa, que para aquele tempo eram grandes, viveu Rui
de Pina todo o reinado de el-rei D. Manuel, alcançando ainda alguns anos do
del-rei D. João III, que lhe encomendou a crônica de seu pai, que deixou
adiantada até a tomada de Azamor, e de que Damião de Góes confessa ter-se
servido para a composição da sua."
É Rui de Pina de todos os
nossos antigos cronistas o de que nos restam maior número de crônicas. Escreveu
ele a de D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Diniz, D.
Afonso IV, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II. As duas últimas são sem dúvida
escritas originalmente por ele. Na de D. Duarte, segundo parece a Damião de goês,
o substancial da história é de Fernão Lopes; o que é relativo à expedição de
Tangere, de Gomes Eanes de Azurara; e de Rui de Pina apenas a coordenação
desses diversos trabalhos. Quanto às da primeira dinastia, quer o mesmo Góes (e
esta opinião prevalece hoje) que não sejam mais que uma recopilação ou resumo
do primeiro volume das crônicas de Fernão Lopes, que existia em poder de um tal
Fernão de Novais, e que D. João II mandou fosse entregue a Rui de Pina.
Impossível parece hoje averiguar até a certeza esta opinião; porque esse volume
de Lopes ou se perdeu, ou foi aniquilado por Pina, que, ambicioso de pouco
suada glória, quis, pobre corvo de D. João II, adornar-se com as brilhantes
penas de pavão do Homero de D. João I.
Segundo o testemunho de
João de Barros, Rui de Pina foi uma potência literária no seu tempo. O
historiador da Índia refere que o grande Afonso de Albuquerque tivera a
fraqueza de enviar joias a Rui de Pina, para que se não esquecesse dele na sua
história. Aquela cujo nome devia encher o mundo não teve a consciência de que
era o maior capitão do século, é creu que a sua imortalidade dependia de um
cronista obscuro! Triste documento de que os gênios mais portentosos estão como
os homens ordinários sujeitos às mais ridículas fraquezas.
O abade Corrêa da Serra põe
Rui de Pina acima dos cronistas que o precederam. É talvez o juízo literário
mais injusto que se tem pronunciado na República das letras. Que ele exceda
Azurara não o contestaremos nós; mas que seja anteposto a Fernão Lopes é no que
não podemos consentir: as narrações de Rui de Pina, posto que superiores às de
Gomes Eanes, estão mui longe da vida e cor
local que se encontra nos escritos do Patriarca dos cronistas
portugueses.
Parece que os fados de Rui de
Pina eram ganhar nome e celebridade à custa do trabalho alheio: ajudou ele o
seu destino enquanto vivo; ajudaram-lho outros
depois de morto. Em 1608 publicou-se em Lisboa um volume em 8º com o título
de Compendio das grandezas e coisas
notáveis dentre Douro e Minho, obra que no frontispício é atribuída a Rui
de Pina. Este livro, porém, nada mais é do que o que compôs mestre
Antônio, fisiquo e solorgiam,
natural de Guimarães, e que em antigos códices anda junto às crônicas de Rui de
Pina, bastando ler uma página dele para nos convencermos de que é escrito em um
período da língua anterior à época deste cronista, e que ele talvez não fez
mais que copiá-lo, com intento de lhe chamar seu, podendo-se-lhe aplicar aquele
dístico francês:
Pour tout esprit que le bon
homme avait, Il compilait, compilait, compilait.
****
Com os começos do reinado
de D. Manuel os horizontes da nossa literatura estenderam-se consideravelmente.
Era a época do esplendor nacional e, ao passo que as nossas conquistas e poderio
se dilatavam, dilatavam-se também os progressos literários dos portugueses. A
imprensa tinha produzido o magnífico livro da Vita-Christi, e com isso dava mostra de que Portugal possuía, esse
motor maravilhoso que devia conduzir a Europa com passos agigantados pela
estrada da civilização e do progresso. Neste reinado de glória e de predomínio
— mas de uma glória diferente da antiga e de um predomínio que assentava sobre
base tão incerta como eram os milhões de ondas do oceano em que ele se
estribava — prosseguiu em maior escala o triste sistema de D. João II de
substituir a agricultura pelo comércio, como fonte principal da riqueza pública.
Era então que a monarquia, aniquilando os derradeiros restos da sociedade
feudal nas Ordenações Manuelinas, e assentando-se na larga e firme base do
direito romano, realizava e completava, por um lado o pensamento Político, por
outro o pensamento econômico do manhoso filho do nosso último rei cavaleiro. As
palavras e da conquista, navegação e
comércio da Etiópia, etc., que D. Manuel acrescentava ao ditado de senhor de Guiné, que D. João para si
tomara, eram a expressão mais simples e mais exata da ideia comercial e
monárquica, isto é, de que o comércio obtido por meio das conquistas e
navegações pertencia ao senhorio real,
e a história dos ciúmes de D. João II e do seu sucessor sobre os novos
descobrimentos confirma a nossa opinião. Assim o estado se confundia ou, antes,
se incorporava na coroa, e se constituíam essas formas políticas dos reinados
seguintes que ressumbram em toda a legislação posterior, e a que, talvez,
possamos chamar meio termo entre o absolutismo e o despotismo, como a
organização social portuguesa antes das cortes de 1481 se pode também
considerar como um meio termo entre o absolutismo e a monarquia representativa.
Substituída, portanto, a
agricultura, que era do povo, pelo comércio exclusivo, que era da coroa, e
extintas as tradições feudais na nova compilação Manuelina, a Idade Média
morrera, com o seu sistema de lutas e resistências, e começara esse século XVI,
cujo caráter essencial em política foi a unidade monárquica. Este fenômeno
explica o novo aspecto que tomou a história e o aparecimento de uma literatura
cortesã e paceira, que visivelmente se distingue nos poetas mais modernos do
cancioneiro, nas obras latinas que por esse tempo apareceram, principalmente
nas de Cataldo Sículo, e nos autos do Aristófanes português Gil Vicente,
compostos para alegrar as horas de tédio nos paços de D. Manuel. A crônica
tomou logo o sabor do elogio histórico, e Garcia de Rezende, velho cortesão,
escreveu a vida de D. João II debaixo dos tetos dos suntuosos paços da Ribeira.
A este pobre homem não cabe, todavia, a glória da invenção daquele gênero
histórico: Rui de Pina foi o seu inventor. A Crônica de D. João II escrita por
este foi o modelo ou, antes, o original da de Garcia de Rezende, que apenas lhe
acrescentou alguns ditos e feitos do seu herói, algumas anedotas desenxabidas e
triviais de antecâmara, em que não esqueceram as acontecidas com o próprio
autor. Garcia de Rezende não fez senão aperfeiçoar a crônica individual e
torná-la, ainda mais que Rui de Pina, uma biografia real. E que outra forma
podia ter a história numa época em que a organização social tinha sumido o
povo, a nobreza, e ainda o clero, debaixo do trono do monarca?
Seria uma das comparações
mais curiosas a do caráter histórico da Crônica de D. João I por Fernão Lopes
com o da Crônica de D. João II por Garcia de Rezende, se ao mesmo tempo se
comparasse o estado da sociedade portuguesa no meado do século XV com o em que
se achava no princípio do XVI. Esta comparação nos parece serviria para
explicar as fórmulas históricas pelas políticas, e vice-versa estas por
aquelas.
Que distância espantosa não
há, com efeito, entre o grande poema de Lopes e a mesquinha coleção de
historietas de Garcia de Rezende, onde apenas avultam algumas páginas com o
suplício de um nobre, o assassínio de outro, e o mistério de um rei que morre,
ao que parece; envenenado? Que distância espantosa de um cadafalso, de um
punhal, e de uma taça de veneno, ao cerco de Lisboa, à batalha de Aljubarrota,
ao baquear de Ceuta? No livro de Garcia de Rezende vê-se o aspecto triste, e a
vida de agonia, e o sorrir forçado de um rei sem Família, rodeado de cortesões,
cujos nomes pela maior parte se resolvem em fumo com o morrer de seu senhor, a
quem seguem os ginetes de Fernão Martins, os besteiros e espingardeiros da
guarda, não para pelejarem com estranhos, mas para o defenderem contra os ódios
de seus naturais. Aí o vulto real abrange quase os horizontes do quadro, e só
lá no fundo, mal desenhadas e indistintas, se enxergam as personagens
históricas daquela época, e as multidões agitadas ou tranquilas a um volver de
olhos do monarca, mas nulas tanto em um como em outro caso. Na crônica de Fernão
Lopes há, pelo contrário, a história de uma geração: é um quadro imenso de
muitas figuras no primeiro plano. Nos degraus do trono de D. João I estão
assentados guerreiros e sabedores,
e monges e clérigos, e povo que tumultua e brada com voz de gigante — Pátria! Ao pé da imagem homérica de Nuno Álvares
vê-se a fronte serena e santa do arcebispo de Braga, e a face meditabunda e
enrugada de João das Regras, e os vultos terríveis do Ajax português Mem
Rodrigues, e do esforçadíssimo Martim Vasques, e de tantos outros cavaleiros a
quem dificilmente sobrepuja o rei popular, o Mestre de Aviz. O cronista faz-vos
acompanhar as multidões quando rugem amotinadas pelas ruas e praças; guia-vos
aos campos de batalha onde se dão e recebem golpes temerosos; abre-vos as portas
dos paços ao celebrar das cortes, ao discutir dos conselhos; arrasta-vos aos
templos onde troa a voz do monge eloquente; lança-vos, enfim, no existir dos
tempos antigos, e embriagando-vos com o perfume da Idade Média, e
deslumbrando-vos com o brilho da época mais gloriosa da história desta nossa
boa terra portuguesa, evoca inteiro o passado, e rasgando-lhe o sudário em que
jaz, com o sopro do gênio dá alma, e vida, e linguagem ao que era pó, e morte,
e silêncio.
Em Rui de Pina raro se
encontra a história da nação: em Garcia de Rezende talvez nunca. Fernão Lopes e Azarara tinham escrito no tempo de Afonso V: estes escreviam no de D. Manuel. Daí provém a diferença.
Em poucas palavras o pouco
que se sabe da biografia de Rezende.
Ignora-se a época do seu
nascimento; mas sabe-se que era natural de Évora é irmão do célebre André de
Rezende, o tradutor de Cícero. Foi pajem da escrivaninha de D. João II e seu
predileto. Grato por isto, lhe escreveu a vida, a qual se imprimiu Évora em
1554. Compôs também uma relação da ida infanta D. Beatriz para Saboia, e outra
da viagem del-rei D. Manuel a Castela, e finalmente umas trovas satíricas que intitulou Miscelânea. Coligiu em um volume as
poesias avulsas que no seu tempo tinham mais celebridade, tanto dos poetas daquela
época, como de outros mais antigos. Este volume, que foi dado à luz por ele em
Lisboa em 1516 com o título de Cancioneiro
Geral, é hoje um dos mais raros monumentos da nossa literatura, e o
verdadeiro título de glória de Garcia de Rezende.
Em 1514 foi a Roma como
secretário de embaixador Tristão da Cunha, mandado ao papa por el-rei D.
Manuel. Voltando à Pátria morreu em Évora, não sabemos em que ano, e jaz no
convento do Espinheiro.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito entre 1839 a 1840, e
publicado em: Opúsculos, 1909.Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...