6/07/2019

História dum ramo de cravos (Conto), de João Grave



História dum ramo de cravos

Quando nessa noite Julião entrou em casa, depois de um longo passeio pela cidade deserta e mergulhada na sombra muda e no silêncio doce para a sua tristeza, encontrou com espanto, no seu quarto de estudo, sobre um livro de versos de Alfredo de Musset, um ramo de cravos brancos e orvalhados que se exalavam em aroma e perfumavam todo o ambiente. Abriu, com sobressalto, a janela que respirava para o jardim, e chamou Rosália, uma velha criada que já servira sua mãe e que ficara sendo a companheira de uma orfandade melancólica.

— Lá vou, menino! — respondeu ela do fundo da cozinha, por onde arrastava, tossindo, os seus chinelos de ourelo.

Uma lua de balada, redonda e pulverizando-se em luz, tecia sobre os ramos das árvores, imóveis na solidão noturna, as frágeis, vaporosas rendas de luar, que se adelgaçavam, se dissipavam nas penumbras. As casarias adormeciam suavemente sob a bênção piedosa da claridade lunar. Nenhum ruído perturbava a quietação, a solitude daquele momento admirável. Julião ergueu o ramo de cravos nas mãos trêmulas e observou-o vagarosamente. Quem poderia lembrar-se dele, que era um desconhecido e um desalentado, com tanta gentileza? Ia entrando no entardecer da existência, não tinha a menor confiança na vida que não compreendia, não conservava nem ilusões nem esperanças e no seu sentimento a amargura formava lentas cristalizações.

— Que me quer? — preguntou, batendo à porta, a serva.

— Quem trouxe estas flores? — interrogou Julião.

— Quem as trouxe foi uma rapariguita, ao fim da tarde, pedindo-me para que eu lhas entregasse.

— Mas, da parte de quem vinha?

— Não o disse. Assim que mas deu, botou a fugir. Eu ainda a chamei, ainda quis saber... Ela, porém, nem sequer me escutou!... Foi assim mesmo.

— Está bem, Rosália... Pode retirar-se... Mas ouça!...

— O quê?

— Para a outra vez não torne a aceitar nada, sem explicações claras... Não gosto de romances.

— Eu sei lá o que são romances, menino!... Que queria que eu fizesse? Que as deitasse fora?... Estou a dizer-lhe como as coisas se passaram!... Ora, os meus pecados...

— O' mulher, não se apoquente! Isto é apenas uma recomendação e não uma reprimenda — exclamou Julião, aborrecido. Vá-se deitar, vá dormir!...

— Então, muito boas noites lhe dê Deus! — murmurou Rosália, afastando-se.

— Roas noites!

Julião pousou os cravos sobre a mesa, fechou a porta à chave, sentou-se numa cadeira e, acendendo um cigarro, começou a pensar naquele caso estranho tocado por um inefável calor de lirismo e de sentimento. Na realidade, que queria aquilo dizer? Que significaria uma tão delicada oferta a um homem que chegara aos trinta anos sem que diante da beleza feminina o coração lhe pulsasse no peito mais aceleradamente e sem que a sua imaginação exaltada, em instantes de febre e de aspiração, idealizasse sonhos de candura, de graça e de amor, povoados de visões angélicas que para ele estendessem braços suplicantes e lhe prometessem, com a doçura dos beijos, todas as felicidades terrestres? Aquele inexplicável episódio solicitava-o precisamente pelo seu ar de enigma. Sem o mistério que o envolvia, nenhuma impressão produziria na sua sensibilidade de doente e de solitário, gerada por um imenso orgulho — esse orgulho que o levava, na rua, a não fitar as mulheres que passavam, na radiação da sua formosura primaveril, só porque um dia pensou que podia ser desdenhado. Como era um tímido, por temperamento, por organização, concentrava-se, vivia num permanente recolhimento espiritual, sem querer sair para fora da sua personalidade, do seu “eu”: e assim se isolara cada vez mais do mundo envolvente, dos interesses afetivos, das frivolidades sociais, caindo na misantropia que o devorava e o fazia sofrer angustiosamente, porque pressentia, para além da sua: desolação, as alegrias e as venturas que iluminavam as almas de contentamento.

Ruminando as singularidades da sua psicologia e fumando com desespero, Julião procurava adivinhar a mão ignorada que mandava flores, ao descer dos plácidos crepúsculos, à sua vivenda vazia de saudades e de ternuras e entendia, finalmente, a fascinação com que o desconhecido atrai as naturezas sensíveis.

Pela janela aberta às aragens ligeiras da noite — uma sossegada noite em que a lua andava a espalhar bênçãos de luz na cidade sonolenta — entrava o luar tépido e branco que acariciava os cravos, murchando sobre o livro de Musset com encanto duma canção amorosa apenas principiada: e Julião, acendendo uns cigarros nos outros, evocava, de olhos errantes, as suas recordações mais longínquas para descortinar nelas uma aparição romântica, um vulto feminino prometedor e grácil que outrora o tivesse feito cismar e quedepois esquecesse: mas não encontrava idílio, trança de cabelo, rosa fanada, confissão meiga, carta deixada ao canto duma gaveta, que fossem uma revelação.

Na sua existência não havia minuto de enlevo, de ascensão lírica, de confidências, de palpitação, que a dourassem de poesia e lhe adoçassem a secura. Só se lembrava das angústias curtidas silenciosamente, dos ideais nunca realizados, de azedumes sem motivo que o exasperavam, do tédio sempre crescente duma vida sem finalidade — um tédio pesado que lhe entremostrava a loucura como um meio- de libertação e a inconsciência como uma felicidade que nada atenuava. Quantas vezes, alucinado por estes sombrios pensamentos, Julião se surpreendia a desejar a morte, uma rápida morte que não lhe causasse sofrimento e que o redimisse do seu cativeiro estreito! Nas raras conversas com os amigos, esta nota dum tão fúnebre espiritualismo denunciava-o constantemente nas suas palavras, era o leitmotiv de todas as suas considerações.

— Viver, para quê? — preguntava ele. Por mim, ainda não encontrei à vida outro fim que não fosse o de gastar inutilmente o dinheiro que
herdei.

— Mas, ó homem, tu ainda não viveste — respondiam-lhe. A vida não é, positivamente, a toca em que te escondes como um bicho assustado. Abre os braços com energia, ama, luta, trabalha, produz!

Diante do ramo de cravos, de que se evolavam fragrâncias perturbantes, Julião relembrava estes incidentes, e houve um momento em que, olhando em roda, pelo ermo compartimento em que a sua mocidade ia acabando com a melancolia duma flor que se desfolha, imaginou que essa casa teria mais encanto, mais conforto e mais beleza, se nela se escutasse a palavra jovial de crianças de cabelos em anéis caindo sobre os bibes brancos e se, pelas salas sonoras e recolhidas lidasse ativamente uma menagère diligente e amorosa que, nas horas negras do seu pessimismo, e apertasse num abraço e se curvasse sobre o seu ombro forte, dizendo-lhe ao ouvido uma dessas divinas ternuras que fundem todas as friezas da emoção. Mas, imediatamente o pungiu a dúvida. E se ele se houvesse enganado na escolha? Se em vez de encontrar um ser de lealdade, movido Unicamente por um espírito de abnegação e de sacrifício, encontrasse um ser de mentira e de hipocrisia, capaz de traições e perfídias? Ah! então, como se exacerbaria o conflito da sua sensibilidade e como a sua dor seria mais cruel!

Levantou-se de salto, atirando com a ponta do cigarro para o jardim, fechou a janela, e parando novamente, diante do ramo de cravos brancos, sorria com ironia...

— Naturalmente, é alguém que quer divertir-se, que pretende intrigar-me, para seu prazer E, pegando nas flores, arremessou -as com violência para o cesto dos papeis, como um trapo que se varre para a rua, indo deitar-se, muito nervoso pelas comoções intensas daquele momento de tentação. Apagou a luz e revolvendo-se entre os lençóis de linho que Rosália trazia perfumados a alfazema e a funcho, à moda da sua aldeia, não pôde conciliar o sono. Durante todo o resto da noite, a sua imaginação sobrexcitada se perdeu em devaneios e hipóteses que, na lucidez especial da sua leve sonolência, ele julgava irredutíveis verdades. Ao romper da manhã, porém, adormeceu profundamente — e quando despertou, sobressaltado pelas pancadas que Rosália lhe batia à porta do quarto, já o sol ia alto, ardendo e fulgindo no azul matutino como uma grande rosa de ouro e fogo.

— Que horas são? — preguntou, bocejando.

— Onze, menino! Está o almocinho pronto e estraga-se. Sempre me saiu hoje um dorminhoco!...

— Ai vou, mulher! É um momento!... Levantou-se apressadamente, mergulhou com regalo sensual na água fria do banho, sentindo clarificarem-se-lhe as ideias. Reconstituiu as cenas da véspera e, enquanto se vestia, pensava com delícia e gratidão na desconhecida misteriosa que mandava ao seu isolamento a doce visitação das flores orvalhadas.

Quem seria? Uma apaixonada ou uma vulgar intrigante?

Abriu a janela por onde a luz entrou a jorros, fulva, criadora, benéfica. Os pássaros cantavam alegremente nas folhagens dos arvoredos que davam sombra ao seu jardim — um florido canto de repouso e de graça em que lia Horácio nas tardes de calor. Da cidade, laboriosa e inquieta, vinha o ruído feliz da labuta diurna. A música idílica dos pregões vibrava no ar luminoso e macio.

Julião curvou-se ao peitoril, contemplando a formosura da manhã que era uma flor de pureza e de alegria abrindo sob o céu translúcido. Numa varanda, ao fundo do quintal, uma rapariga muito loura, de corpo ondulante, admiravelmente modelado, regava os craveiros que lhe floriam e perfumavam a varanda. Andorinhas aos pares passavam num voo rápido.

Este espetáculo inesperado foi uma revelação.

— Menino, menino, o almoço está na mesa!

— Já lá vou, Rosália!... — respondeu Julião, deixando-se ficar ainda à janela, absorvido em cogitações.

Ele conhecia, muito bem, a sua encantadora vizinha. Chamava-se Henriqueta, tinha vinte anos, ia todos os domingos à missa e em certas noites, tocava Chopin ao piano...-

Parecia-lhe séria, honesta, com propósitos de mulher completamente formada e nunca surpreendera homens rondando a sua casa.

Nas tardes de verão, vinha costurar para a varanda, e tinha um lindo jeito de esquecer, às vezes, as mãos no regaço, cerrando os olhos meigos. Simplesmente, nunca Julião a viu tão bela, como nessa manhã de junho, luminosa e nítida.

Seria ela quem lhe enviava flores — as flores que cultivava com tanto carinho — como uma doce promessa de amor? Esta suspeita encantou-o e comunicou-lhe audácia, olhando-a com uma insistência provocadora, tanto mais que Henriqueta não desviava o olhar nem se afastava da varanda que o aroma dos cravos incensava.

— Então, menino? — exclamou Rosália. Não quer boje almoçar?

— Agora é certo, mulher. Vou almoçar e até com apetite! — bradou ele, com vivacidade.

A partir desse dia, durante longas, dormentes semanas, Julião demorou-se gratamente à janela do seu quarto, mais do que de costume, e sempre encontrava, satisfeito, contente, Henriqueta à varanda, entre os vasos de craveiros. Habituara-se a esta saudação matinal, que o enlevava, e foi arriscando mesmo algumas palavras, a princípio hesitantes, com medo de ser escarnecido, mais tarde audazes, como se nelas quisesse exprimir a confiança no triunfo. O idílio — um suave idílio que lhe iluminou a alma — começou então, dissolvendo todos os negrumes da intimidade moral de Julião, que renascia: e foi com espanto que Jacinto — um amigo, já casado, dos tempos do Liceu — o viu entrar-lhe um dia em casa, alegre, com boas cores, de cravo na botoeira do casaco, dizendo-lhe com desembaraço:

— Sabes? Vou casar.

— O quê?

— Vou casar, homem! Que há nisto de extraordinário da minha parte?... Pois, não é tão natural?

— Certamente. Mas em ti, misantropo, solteirão, fugindo com horror de todo o convívio, de toda a sociabilidade, parece-me uma anomalia... Como foi isso?

Julião, sentando-se e cruzando a perna, olhou Jacinto com afabilidade, murmurando:

— Como foi isto?... É querer saber muito! Mas está bem! Para ti não há segredos.. , Ouve.... Certa noite de tristeza mais pungente, quando entrei no meu quarto, encontrei...

— Um ramo de cravos brancos! — atalhou Jacinto, com a boca cheia de riso.

— Sim, um ramo de cravos brancos... Mas como sabes, quem to disse?...

— Depois?... — interrogou Jacinto.

— Depois — continuou Julião mascando as palavras — havia na vizinhança da minha vivenda uma certa Henriqueta que todas as manhãs regava os craveiros à varanda. Eu olhei-a, ela olhou-me...

— Bem sei. Não tornaram a olhar- se mais em todo o dia. Isso vem no Dante, no episódio de Paolo e Francesca, pouco mais ou menos.

— Sim, mas Paolo e Francesca morreram e nós vamos viver agora!

— Ó Emília! — gritou Jacinto para dentro. Vem cá.

— Que é, meu amor? — preguntou uma voz fresca de mulher.

— Quero dar-te os parabéns, porque és o mais sutil psicólogo de saias que tenho conhecido.

— Então? — inquiriu Emília, entrando.

— O nosso amigo Julião vai casar, e creio que foste tu que concorreste para este acontecimento notável.

— Pois, o ramo de cravos brancos que decidiu do meu destino!... — tartamudeou Julião.

— É verdade, fui eu que lho mandei com todo o mistério que o intrigou e o levou a amar.

— Essa agora!...

— Veja como muitas vezes as coisas insignificantes exercem uma ação prodigiosa e renovadora em certas sensibilidades e em especiais estados de alma!

— Menino — concluiu Jacinto, com uma gargalhada — é a psicologia. Tu não possuías uma vontade nem eras movido por um interesse na vida. Eu e a Emília, que te estimávamos, decidimos despertar-te, com as flores, a vocação para as flores... E conseguimo-lo, bárbaro. Só tens que nos agradecer!


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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