História do teatro moderno espanhol
Há um ano a esta parte que
o teatro começa a ter entre nós a importância que há muito tinha entre as
outras nações da Europa. Acontecimentos, vulgarmente sabidos e que não veem ao
nosso propósito, contribuíram para que a reforma do teatro, em todas as suas partes,
que em todas dela carecia, excitasse o espírito público: os periódicos falam já
das atuais representações, e julgam, bem ou mal, não só as novas tentativas
literárias que se têm feito, mas o modo porque são levadas à cena e executadas
pelos atores: e não são, por certo, esses artigos os que se leem com menos
avidez.
No segundo número do
Panorama demos nós uma notícia do nosso teatro, precedida de alguns breves
parágrafos acerca do teatro das outras nações: na conjuntura atual parece-nos
que não será fora de propósito o continuar aquele artigo com mais alguns sobre
a arte dramática dos demais povos, cuja literatura tem relação com a nossa, e
como do teatro espanhol veio o português, conforme o que dissemos falando das
origens deste, será da origem e progresso do drama espanhol, que trataremos em
primeiro lugar.
Em Espanha, como nos outros
países, foi a igreja que fez nascer o drama: todavia a primeira representação,
a que estritamente se pode chamar teatral, e de que há menção nos anais de
Espanha, é a que se fez em 1414, na festa da coroação de Fernando o bom, rei de
Aragão. Foi composta pelo marquês de Vilhena, e só sabemos que era uma peça
alegórica, em que figuravam a Justiça, a Paz, a Verdade, e a Clemência, de modo
que pertencia à classe das moralidades,
que tiveram voga por algum tempo, na infância da arte dramática espanhola, e
que depois Cervantes fez reviver. Pouco depois desta tentativa de Vilhena, o
seu amigo, o marquês de Santilhana, homem, como ele, de grande saber e de
ideias claras, reduziu a drama, com o título de Comedieta de Ponza, os incidentes de uma batalha naval, dada em
1435, junto à ilha de Ponza, entre os aragoneses e genoveses, em que estes
ficaram vencedores. O drama nunca foi representado nem impresso com as demais
obras deste autor, e só se sabia da sua existência pelas cartas do marquês, até
que o Sr. Martinez de la Rosa, o grande poeta espanhol nosso contemporâneo, o
descobriu entre os manuscritos da biblioteca real de Paris. Esta curiosa
relíquia das primeiras tentativas do gênio dramático espanhol é notável pela
habilidade que nela aparece, não só no modo de tratar um fato histórico, mas
também no enredo, diálogo e versificação.
Foi pelos fins do século XV
que em Castela se estabeleceu uma espécie de teatro. Os primeiros ensaios
dramáticos nesta parte da península, fê-los João de la Encina, mui conhecido
pelas suas poesias soltas, e cujas obras formam por si só um cancioneiro.
Depois de alargar os limites das representações religiosas, compondo vários
autos, onde não somente se acham paráfrases da Bíblia, mas também invenções do
poeta, formou o projeto de fazer sair o drama dos objetos religiosos, para o
que compôs pequenas peças pastorais, que denominou éclogas. Estas peças, em que
ele próprio fazia os principais papéis, se representaram primeiramente em casa
do almirante de Castela, e da duquesa do Infantado. Como a denominação o
indica, elas de nada mais constavam do que de um diálogo entre dois ou mais
pastores. O autor, à imitação de Virgílio, usou a primeira vez desta invenção
para celebrar, por via de alusões, algum acontecimento notável, como a
conclusão de pazes ou a volta de algum príncipe; e depois inventou uma ação
curta e simples, na qual reduziu a drama as paixões das suas personagens. Estas
pequenas peças, cortadas por danças, e acabando com vilhancicos ou cantigas,
continham também alguma cena truanesca ou graciosa; de modo que nelas entravam
juntamente os elementos da tragédia, comédia e ópera. Têm estas primeiras
tentativas bastante sal e agudeza, e ao mesmo tempo naturalidade e viveza. A
primeira representação destas comédias pastoris fez-se em 1492, ano memorável
nos anais de Espanha, por ser o da conquista de Granada e do descobrimento do
Mundo Novo. Foi também por este tempo que apareceu a famosa Celestina de Rodrigo de Cota, de
que já falamos no primeiro artigo.
Os primeiros dramas
regulares espanhóis nasceram no princípio do Século XVI, e, o que é mais notável,
fora de Espanha. Um certo Torres Naharro, residente em Roma, compôs ali várias
comédias, que foram representadas perante Leão X. Nelas a invenção é feliz, os
caracteres bem traçados e o diálogo vivo, e contém algumas ousadias que neste
autor não eram de admirar, porque, apesar de ser clérigo e de viver na corte
pontifícia, compôs sátiras contra os eclesiásticos, tais que Lutero não
estimaria pouco ser autor delas. Naharro compôs também uma arte dramática, a
primeira que apareceu em castelhano: nela faz a distinção da tragédia e da
comédia, e divide esta em duas espécies, comédia de notícia, isto é, histórica, e comédia de fantasia, isto é, de imaginação: foi também ele que inventou
os introitos ou prólogos e
que deu aos atos a denominação de jornadas,
seguida depois constantemente pelos autores espanhóis nas divisões dos seus
dramas.
As peças de Naharro, apenas
apareceram em Espanha, foram, proibidas pela inquisição, como sucedeu às pouco
mais recentes de Cristóvão de Castilejo, secretário dos imperadores Maximiliano
e Fernando. Estas, quando se imprimiram as obras de Castilejo, passados anos,
foram suprimidas e perderam-se de todo. Apresenta assim o teatro espanhol o
fenômeno singular de ter tido duas infâncias. Havendo sido proibidas, as
primeiras tentativas de composições dramáticas regulares não acharam
imitadores, e até parece que inteiramente esqueceram, porque no casamento de
uma infanta de Castela, em 1548, foi uma peça de Ariosto que se representou.
Entretanto alguns eruditos, como Vilalobos, Oliva e outros, trabalhavam por
apresentar os antigos como modelos dramáticos, traduzindo as comédias de
Plauto, Terêncio e Aristófanes; mas estas antigas composições casavam-se mal
com o gênio espanhol, de maneira que, enquanto as produções teatrais que a Espanha
possuía, jaziam sepultadas nas livrarias dos curiosos, ou nos arquivos da
inquisição, o povo se entretinha com as grosseiras caturrices dos jograis
truões. Daqui nasceu que Schlegel, Bouterweek, Sismondi, e quase todos os
críticos estrangeiros, ignorando até os nomes dos primeiros escritores
dramáticos espanhóis, não só deles não falam, mas põem a origem do drama
castelhano no meado do século XVI.
O fundador do teatro
espanhol a que verdadeiramente se pode chamar nacional e popular, foi Lopes de
Rueda de Sevilha, que deixou o seu ofício de bate-folha para se ajuntar a uma
companhia de cômicos ambulantes dos quais foi brevemente o cabeça, ou, segunda
a expressão espanhola, o autor.
Este título, derivado, não do latim, autor,
mas de auto, dava-se naquele
tempo ao que compunha e recitava peças; e também lhe chamavam maestro de hacer comédias. Lope de Rueda
tinha ambas as castas de talento necessárias para ser um autor daquela época; ganhou por
isso grande reputação, e foi unanimemente julgado grande poeta e grande ator; e
tão completamente esqueceram as tentativas dramáticas feitas antes dele que o
tiveram em conta de inventor da divisão em jornadas ou atos, e dos prólogos
chamados introitos, e depois loas. Durante uns poucos de anos discorreu Lope de
cidade em cidade; mas por fim a sua grande reputação fez com que fosse chamado
à corte de Filipe II. Os poucos dramas, diálogos pastoris, etc., que dele
restam, se distinguem por certa graça e viveza naturais; e posto que sejam
todos em prosa, ele os escrevia em verso com a mesma facilidade.
Há um fato curioso, que
prova a indulgência com que os eclesiásticos olhavam, naquele tempo, até para
os dramas profanos; fato que se lê na história de Segovia, de Colmenares: na
ocasião da grande festividade da abertura da catedral daquela cidade, a
companhia de Lope de Rueda representou em um tablado, ereto no meio da igreja,
depois de vésperas solenes, una
gostosa comédia. O próprio Lope, morrendo em Córdova no ano de 1567, foi
ali enterrado com grande pompa, no coro da catedral.
Por este tempo (1561) a
corte espanhola, que até então tinha andado vagueando pelas capitais das
diferentes províncias, fez assento fixo em Madrid, circunstância que foi
favorável para a arte dramática, porque dela nasceu o haver um teatro fixo. Documentos
autênticos provam que um ano depois da morte de Lope de Rueda havia teatros em
Madrid. Existiam então, tanto na capital como nas províncias, várias companhias
de atores, distintas umas das outras por nomes extravagantes e burlescos, e tão
numerosas, que um escritor moderno espanhol as distingue em oito espécies
diferentes.
Os progressos materiais
acompanharam daí avante os literários e morais. Por 1570 estabeleceram-se os
dois teatros de la cruz e del
príncipe, que ainda existem, e alguns engenhos sumos começaram a trabalhar
em composições dramáticas, o que até então se tinha deixado aos diretores das
companhias ambulantes. Cervantes, tendo chegado do seu cativeiro de Argel, foi
um dos primeiros que encetaram esta carreira; mas, apesar dos seus muitos
méritos como escritor dramático, era mais inclinado ao gênero narrativo, o que
não se compadecia, por certo, com o estilo próprio do drama.
Enquanto o autor de
D. Quixote escrevia em
Madrid, João de la Cueva fazia representar alguns dramas no teatro de Sevilha,
reduzindo a quatro o número de atos ou jornadas, que até então eram cinco ou
seis. A representação de cada noite constava da peça principal, e, além disso,
de três entremeses e um baile. Também Valência, que nas artes e boas letras era
a rival de Sevilha, deu alguns passos na carreira dramática. Foi um poeta
valenciano Cristóvão de Virues, que ainda reduziu o número de atos a que se
limitaram daí avante todos os escritores dramáticos espanhóis. Até então o
drama, segundo o engraçado conceito de Lope de Vega, tinha andado com as mãos
pelo chão (a quatro pés) como uma criança, porque estava na idade infantil.
A pompa cênica do teatro
espanhol tinha já feito grandes progressos. Rojas diz que no tempo de Lope de
Rueda toda a vestiaria e mais aprestos de qualquer companhia dramática se podia
carregar às costas de uma aranha, mas que no tempo de Cueva e Virues as atrizes
representavam os seus papéis com vestuários de seda e veludo, e com fios de
pérolas e cadeias de ouro; que nos entremeses se cantavam tercetos e quartetos;
e que até apareciam no tablado cavalos, quando assim era necessário para ser
completa a ilusão.
Digno é de notar-se que já
no século XVI se acha em Espanha travada a guerra entre os escritores
dramáticos, que pugnavam pela sua liberdade, e os críticos, que os queriam
sujeitar aos preceitos de Aristóteles. Era assim que enquanto o retórico Pinciano clamava que
respeitassem as três unidades, de que nenhum caso se fazia, João de la Cueva
tomava despejadamente a seu cargo defender as liberdades dramáticas no
seu Exemplar Poético. Pugnava
por elas porque eram o fruto de uma série de séculos que tinham abolido todos
os antigos costumes; — porque eram mais favoráveis aos voos atrevidos da
imaginação; — e porque, enfim, eram o mais adaptado meio de agradar ao público.
Mas, apresentando tão judiciosa opinião, estabelecia máximas para regular as
composições dramáticas, tais que serão sempre aprovadas pelo bom juízo e bom
gosto, posto que os seus compatriotas nem destas mesmas fizeram caso, no seu ardor
contra toda a casta de restrições literárias.
Este desregrado fervor de
imaginação era o resultado necessário das particulares circunstâncias que por
muitos séculos tinham concorrido para formar o caráter nacional em Espanha.
"Os espanhóis, diz Schlegel, tiveram um quinhão glorioso na história da
idade média, quinhão muito esquecido pela ingratidão dos tempos modernos. Eles
foram então como uns atalaias soltos nas fronteiras da Europa: a Península era
como um arraial exposto aos incessantes cometimentos dos árabes, e desamparado
de alheio socorro. Acostumado a combater ao mesmo tempo pela liberdade e pela
religião, o espanhol era aferrado a esta com o zelo fervoroso de quem a tinha
comprado à custa do mais puro sangue. Cada solenidade do culto divino era para
ele como um prêmio de suas ações heroicas; cada templo um monumento das
façanhas dos seus antepassados. Em mais recentes épocas nunca importou aos
espanhóis examinar os atos de seus superiores, mas continuaram nas guerras de
agressão ou ambição com a mesma fidelidade e valentia que tinham mostrado nas
guerras de defensão. A fama individual, e o zelo falso da religião os cegava
acerca da justiça das causas que os moviam. Empresas sem igual, levaram-nas
felizmente a cabo; e o Mundo-Novo, descoberto por eles, foi conquistado por um
punhado de valorosos aventureiros: casos particulares de crueza e rapina
mancharam o brilho do mais acabado heroísmo, mas estas corrupções não chegaram
ao âmago da nação. Em parte nenhuma como em Espanha, sobreviveu o espírito de
cavalaria à sua existência política por tanto tempo, por isso que ainda brilhou
depois de ter passado o predomínio de Espanha e de ter sofrido grande
diminuição a opulência interna do país, em virtude dos ruinosos erros de Filipe
II. Propagou-se o espírito cavaleiroso até o período mais florente da sua
literatura, e nela estampou o seu cunho, de não duvidosa maneira. A imaginação
dos espanhóis era audaz, como as suas ações: nenhuma aventura intelectual lhe
parecia perigosa. A predileção do povo por maravilhas extravagantes já se havia
mostrado nas novelas de cavalaria. Desejavam ver também o maravilhoso no
teatro; e quando os seus poetas, eminentes na cultura literária, e na situação
da vida, lhes representavam esta na forma requerida, introduziam nela uma
espécie de harmonia, e purificavam-na da sua grosseria real, resultando do
contraste entre o objeto e a sua forma uma fascinação irresistível. Imaginavam
os espectadores que viam certo fulgor da onipotente grandeza da sua nação, já
muito abatida, quando toda a harmonia dos mais variados metros, toda a
elegância de agudas alusões, todo aquele esplendor de imagens e comparações que
só na sua língua se acha, se derramavam por enredos dramáticos, sempre novos, e
quase sempre grandemente engenhosos. Buscavam-se na imaginação os mais ricos
tesouros de passados tempos para contentar o povo, como se realmente
existissem: pode-se dizer que nos domínios de tal poesia, como nos de Carlos V,
nunca se punha o sol.
Foi quando os ânimos
mostravam semelhante tendência, que surgiu Lope de Vega, para exercitar a sua
portentosa fertilidade de invenção dramática, e facilidade métrica. Deste
ilustre dramaturgo falaremos no próximo artigo.
***
Lope de Vega tinha o
grandíssimo e principal dote para primar na carreira que seguia: era este dote
o conhecer profundamente o gosto e paixões do povo para quem escrevia: porém do
que nunca ele deu mostras, foi do mais importante e nobre mérito de estimar a
arte e cultivá-la com entusiasmo. O efeito, segundo a vulgaríssima acepção
deste vocábulo, não era só o seu principal objeto, como cumpre que seja para
todo o verdadeiro escritor dramático, mas único — as miras todas pô-las
unicamente em bater neste alvo — e em verdade ninguém o alcançou como ele;
deixando-nos assim o mais notável exemplo de sacrifício de alta e duradoura
reputação a troco de inigualável mas temporária popularidade. Na grande porção
que nos resta das suas inumeráveis composições, o que mais admira é a
inexaurível invenção de incidentes, a variedade de caracteres, o jogo das
paixões, e o mimoso e sutil do diálogo; mas todas estas brilhantes
circunstâncias estão como que afogadas na espantosa exuberância com que
pululam, em cada cena, em cada fala, e até em cada verso.
Cumpre, porém, que digamos
que nem no seu país nem fora dele, teve Lope de Vega modelo que imitasse, ou
rival que excitasse a sua emulação. A Itália não tinha ainda passado da Mandrágora de Maquiavel; nem a
França saído das informes imitações dos antigos: em Portugal só havia os
esboços dramáticos de Gil Vicente, os dramas-novelas de Jorge Ferreira, e as
imitações clássicas de Sá de Miranda e Ferreira; a Alemanha não tinha saído
ainda dos mistérios; e a
Inglaterra, onde já aparecera o divino Shakespeare, era, exceto pelo lado
Político, uma terra incógnita para os escritores espanhóis.
Em 1621, doze anos antes da
morte de Lope da Vega, sobreveio a do triste e devoto Filipe III, a quem
sucedeu um príncipe mancebo inclinado aos passatempos, e mui adito ao teatro.
Filipe IV gostava do trato dos homens de letras, recebia-os na corte, e se
divertia em compor com eles essa espécie de improvisos que então, andavam muito
em moda na Itália: até se lhe atribuem algumas composições dramáticas que
apareceram anônimas; e tal afeição tinha aos dramas nacionais, que não
consentiu que em Espanha entrasse a ópera italiana, que então era muito
estimada em todas as cortes da Europa. Estas circunstâncias aumentaram nova
força ao impulso já dado por Lope de Vega, e trouxeram o mais brilhante período
do drama espanhol. Durante a vida de Lope, grande número de escritores seguiram
as suas pisadas: tais foram os doutores Ramon, e Mira de Mescua; os licenciados
Mexia e Miguel Sanchez; o cônego Tarraga, Guillen de Castro, Aguilar, Luiz
Velez de Guevara, Antônio de Galarza, Gaspar d'Avila, Damian Salústrio del
Poio, e vários outros; mas todos eram meros imitadores de Lope de Vega, e muito
inferiores a ele; no fim deste dramático reinado é que devia aparecer um rival,
que lhe disputasse a primazia.
Foi este Calderón de la
Barca, que, não menos conhecedor do gênio e gosto do vulgo, do que o próprio
Lope, unia a isso o amor pela sua arte, que ao outro faltava. Como as
composições deste grande escritor têm a primazia entre os dramas espanhóis
verdadeiramente nacionais; como elas em nada são inferiores às de Lope, em
variedade, e o seu número mais que o das de nenhum outro, se aproxima do número
das dele; e como, por consequência, nos dão os mais perfeitos monumentos de
cada uma das diferentes espécies de produções dramáticas peculiarmente
espanholas; não há meio nenhum de dar uma ideia clara das formas e gênio do
teatro espanhol na época do seu maior esplendor, senão caracterizando breve mas
distintamente, as várias classes das peças de Calderón. A mais corrente
classificação dos dramas profanos, é para os mesmos espanhóis, a de comedias heroicas, comedias de capa y espada
e comedias de figuron. As da primeira destas classes tinham o mesmo lugar
na literatura dramática, que nas ficções narrativas tiveram as novelas de
cavalaria que, expulsas da prosa pelo D. Quixote, se acolheram ao teatro, onde
por muito tempo foram bem aceitas do público. As da segunda classe, cujo nome
vinha do vestuário que se usava na época em que foram escritas, representavam
os costumes espanhóis desse mesmo tempo; mas, em consequência do grande sabor
de novela que esses costumes ainda conservavam, tinham um aspecto, que a homens
modernos e de outras nações parece ideal. "Isto (observa Schlegel) não
fora possível, se Calderón nos introduzisse no interior da vida doméstica...
Estas peças acabam, como as comédias dos antigos, por casamentos; mas quão
diferente é tudo o que precede a este desfecho!... traça, na verdade os seus
principais caracteres de ambos os sexos no primeiro fervor da mocidade; mas o
alvo a que eles miram, e diante do qual tudo abate bandeiras, nunca em seus
ânimos se confunde com outro qualquer desejo. A honra, o amor e o ciúme, são
sempre os motivos da peça, e o enredo nasce da impetuosa mas nobre luta destas
paixões... Nos caracteres mulheris o sentimento da honra não é menos poderoso
do que nos dos homens: este sentimento rege o do amor, que tem lugar a par
dele, porém não acima dele. A honra das mulheres, segundo o modo de pensar que
transluz nos dramas de Calderón, consiste em amar um homem de reputação sem
mácula, e em amá-lo com perfeita pureza. O amor requer aí inviolável segredo,
até que uma legítima união permitia declará-lo publicamente: este segredo o
salva dos efeitos da vaidade, que poderia misturar nele gabos de favores
concedidos, ou pretensões a eles, e lhe dá a aparência de um voto, que, por
isso que é misterioso, é mais pontualmente observado. No meio desta moralidade
dramática, são, em verdade, admitidas manhas e dissimulações, para fins
amorosos, e a ponto de parecer que recebe quebra a honra: mas, quando essas
manhas vão de encontro a deveres, como, por exemplo, os da amizade, o respeito
mais pundonoroso é constantemente guardado a esses deveres. O poder do ciúme,
sempre vivo, e revelado às vezes de terrível maneira; ciúme não como o dos
povos do oriente, de posse, ou de gozos materiais, mas dos sentimentos
suavíssimos do coração, serve para enobrecer o amor. A perplexidade, que nasce
destes diferentes motivos morais, acaba muitas vezes em nada, e então o
desfecho é grandemente cômico: às vezes, porém, a catástrofe é trágica, e a
honra se converte em uma espécie de destino avesso, para aquele que com ela não
pode cumprir sem aniquilar a própria felicidade, ou tornar-se para sempre
criminoso. Grande número destas peças não têm senão um papel burlesco, o do
criado ou gracioso, que serve principalmente para parodiar os motivos sublimes
das ações de seus amos, o que, por via de regra, faz com muita graça, servindo
raras vezes para instrumento do enredo."
As comédias de figuron, ou de caráter, distinguem-se da
classe de que tratamos no antecedente parágrafo, em o interesse da ação não ser
dividido pelas personagens de um enredo variadíssimo, mas concentrado em um
indivíduo, no qual é personalizado caracteristicamente algum vício ou absurdo.
Alguns dos dramas de Calderón,
históricos ou mitológicos, não podem estritamente ser classificados em nenhuma
das três espécies antecedentes. Com a maior verdade aproveitou ele algumas
épocas da antiga história espanhola; mas parece ter tido tamanho aferro ao
gênio da sua nação, que não pode produzir facilmente o caráter das outras. A
antiguidade clássica era ininteligível para ele, e por isso, o já citado
Schlegel observa que a mitologia grega se converte, nas suas mãos, em uma
deleitosa novela, e a história romana em uma hipérbole majestosa. Outra classe
de peças tem Calderón a que ele chama fiestas:
eram estas destinadas para serem representadas na corte em ocasiões solenes.
Posto que tais peças requeressem pompa teatral, frequentes mudanças de cenário,
e até música, todavia podemos chamar-lhes Óperas Poéticas, isto é, dramas, que pelo mero esplendor da poesia,
produziam o mesmo efeito que na ópera moderna produzem as vistas, a música e a
dança. Foi nestas composições que Calderón se entregou inteiramente aos voos da
sua imaginação, podendo dizer-se que nelas as personagens apenas pertencem a
este mundo.
Mas é na classe dos autos sacramentales, ou dramas
religiosos, que o gênio e o espírito de Calderón se desenvolveram com mais
força e formosura. As cerimônias religiosas dos gregos tinham gerado o teatro
grego: as cerimônias do cristianismo deram origem ao teatro moderno. O
princípio fundamental dos espetáculos dramáticos, introduzido ou sancionado
pelo clero, consistia em apresentar ante os olhos dos fiéis, em todas as festividades
eclesiásticas, e dias de comemoração de certos santos, a representação ao vivo
da passagem do Testamento Novo ou do Catálogo dos Santos, que tinha conexão com
essa festividade. Estas representações, que no resto da Europa se denominavam
mistérios, chamaram-se em Espanha, desde o princípio, divinas comédias e autos
sacramentales. Faziam-se com grande pompa, não só nas praças e nas
procissões, mas também nos teatros públicos. Tais dramas, representados em dias
solenes, debaixo da proteção das autoridades civis e eclesiásticas, e em
presença de todo o povo, não só davam ao autor mais proveito, mas também mor
glória. Lope de Vega escreveu alguns centenares destas peças: mas Calderón
tanta vantagem levou aos seus predecessores e contemporâneos, nisto como no
mais, que lhe foi concedido um privilégio exclusivo de compor os autos que se
haviam de representar na capital, monopólio de que gozou durante trinta e sete
anos.
Temos sido talvez mais
técnicos e extensos do que cumpria sobre o espírito e execução dos dramas
espanhóis dos fins do século XVI e princípios do XVII, porque as regras dos
retóricos e pedantes, regras que se desfazem em pó diante de um porquê, — persuadem o vulgo da República
das letras de que qualquer drama, a não ser grego ou romano, ou não trazendo,
pelo menos, pós, casaca de seda e espadim, à moda de Luís XIV, é forçosamente
bárbaro, rude ou absurdo. Este pensar acanhado, enquanto se não derrocar de
todo, torna impossível uma verdadeira regeneração dramática: os portugueses
devem ser em literatura uma só nação com os espanhóis: se quisermos ter
originalidade, nacionalidade, e o que mais é, verdade, estudemos Lope, Calderón
e os seus contemporâneos; não nos envergonhemos de folhear livros por onde
constantemente estudam os mais ilustres escritores dramáticos da Alemanha e da
Inglaterra, apesar de não poderem tirar deles todo o proveito, que nós por
certo tiraremos. Mas voltemos ao nosso assunto.
É digno de notar-se, que,
durante o mais belo período do teatro espanhol, o conselho de Castela se
atrevesse a propor como condição para se reabrirem os teatros que tinham estado
fechados por causa de vários lutos da corte, desde 1644 até 1649, que os dramas
que se houvessem de representar se limitassem a objetos edificativos, sem
mistura das profanidades do amor; e que, por consequência, todos aqueles que
até então se tinham representado fossem proibidos, nomeadamente os de Lope de
Vega, que tão prejudiciais tinham sido à sã moral. Felizmente o bom gosto do
monarca, concorde com o do público, fez com que fosse rejeitada a proposta dos
austeros conselheiros.
Durante a longa carreira de
Calderón, apareceu Moreto, que dotado de menos força inventiva e menos fervor
de imaginação, se distinguiu principalmente por aperfeiçoar melhor as comédias
de figuron ou de caráter.
Como exemplo, tais são os seus dramas — O
lindo D. Diogo, e O marquês de
Cigarral, espécie de D. Quixote, endoidecido à força de ler e reler, sem
descanso, os pergaminhos de sua casa, e os costados da sua árvore genealógica.
Por este lado, pode-se crer que Moreto foi um dos modelos de Molière, entre
cujas peças, com efeito, se encontra uma fraca imitação do marquês de Cigarral. Nesta mesma época
viveu outro poeta dramático, cuja fama enquanto vivo não igualou a celebridade
de que goza depois de morto e que, por um acaso extraordinário foi desconhecido
aos mais eminentes críticos, como Signorelli, Sismondi e Schlegel: era este um
frade da Trindade, chamado Fr. Gabriel Teles, que, com o suposto nome de Tirso
de Molina, pôs em cena um grande número de dramas, que depois foram coligidos e
publicados por um sobrinho seu. Menos engenhoso do que Calderón, e menos
delicado, excede, todavia, os outros poetas do seu país em certa agudeza
malédica. Pouco lhe importam as regras, ou a verossimilhança, com tanto que lhe
venham a pelos gracejos pungentes e maliciosos, usando de uma linguagem, às
vezes licenciosa, e de pensamentos que mostram tão pouco respeito às potências
da terra como às do céu. Nada poupa, uma vez que esse objeto lhe desagrade ou
possa mover a riso. Há só um escritor a quem ele deva com exação ser comparado,
e com quem, com efeito, tem muitíssima parecença: é este o moderno dramaturgo
francês Beaumarchais. E assim como este autor foi o verdadeiro pai de Fígaro,
do mesmo modo (fato certamente curioso) Fr. Gabriel foi o primeiro que pôs em
cena a famosa história de D. João e a Estátua (El combidado de Piedra) aproveitando-se da lenda inventada, segundo
dizem, pelos franciscanos de Sevilha para explicarem o desaparecimento do
verdadeiro D. João Tenório, que, conforme também alguns querem, fora por eles
assassinado em vingança dos muitos vexames que lhes fazia.
No próximo artigo
mencionaremos mais alguns dramaturgos espanhóis desta época, e concluiremos a
história do teatro espanhol com a notícia dos escritores mais modernos.
***
O período brilhante do
teatro espanhol encerra-se na primeira metade do século XVII. O gosto do
monarca, da corte e da nação, tinha lançado um grande número de homens de
letras nesta carreira, que então era a mais honrosa e lucrativa. Assim, além
dos eminentes escritores mencionados no antecedente artigo, apareceu um enxame
de dramaturgos de segunda ordem, a cuja frente devemos colocar Francisco de
Rojas, que tinha todos os dotes de Moreto, mas que o excedia nos defeitos. Seguiam-se
a este Guilen de Castro, Ruis de Alarcon, La-Hoz, Diamante, Mendoza, Belmonte,
os irmãos Figueroas (que escreviam conjuntamente, como os modernos autores de
farsas francesas), Cancer, Enciso, Salazar e Candamo, os quais, posto que
nenhum criasse uma escola sua, produziram ao menos importantes composições
teatrais.
Os desastres que
sobrevieram à monarquia espanhola nos últimos anos do reinado de Filipe IV,
juntos com uns poucos de lutos públicos, que fizeram fechar por muito tempo os
teatros, deram o primeiro golpe na arte dramática espanhola. Em 1665 a morte
daquele príncipe, que tinha sido o seu mais zeloso protetor, foi o sinal da
queda rápida e inteira do teatro. O sucessor de Filipe IV, o parvo Carlos II,
era ainda criança; e a rainha regente assinalou o princípio da sua
administração com um decreto, ditado, sem dúvida, pelo seu diretor espiritual o
jesuíta Nitar, e, por certo, único nos anais dramáticos. Ordenava a rainha no
citado decreto, que todas as representações cessassem até seu filho ter idade
de se entreter com elas. Posto que esta extravagante ordem não pudesse ser
executada à risca, todavia é claro quão grande efeito devia produzir numa
época, em que a literatura só podia progredir debaixo do patrocínio dos
grandes, e em que o teatro, só com a especial proteção do monarca podia
resistir aos repetidos ataques do conselho de Castela. Para vermos o que daqui
resultou poremos em contraste dois fatos notáveis. De um memorial, dirigido a
Filipe IV em 1632, pelo ator Ortiz, se vê que havia então em Espanha mais de
quarenta companhias de cômicos, e que estas companhias davam a soma de mil
atores; e que se tinham edificado tantos teatros, que poucas cidades ou vilas
notáveis havia que não tivessem o seu. No ano, porém, de 1679, quando Carlos II
casou com uma infanta de França, na festa do casamento, não foi possível reunir
mais de três companhias para virem representar na corte.
Neste período de decadência
e desprezo um único escritor trabalhou por amparar o vacilante teatro: Solis, o
eloquente historiador da conquista do México, dedicou também ao teatro a sua
brilhante imaginação, polida agudeza, e vigoroso estilo. Deixou-nos vários
dramas dignos do período a que sobreviveu; especialmente um deles que intitulou
Amor al uso, tem grandíssimo mérito.
Com Solis pode-se dizer que
expirou o teatro verdadeiramente espanhol. A subida ao trono de Filipe V, tendo
dado valia ao gosto francês, e introduzido (ao menos na corte) os hábitos e
costumes da corte de Luís XIV, fez que os espanhóis, depois de terem sido os
mestres e precursores dramáticos dos franceses, se contentassem de se converter
em humildes imitadores e copistas deles. É verdade que, durante o século XVII,
algumas tentativas fizeram para restabelecer o drama nacional, Zamora,
Canizares, Luzan e Jovelanos; mas estas honrosas tentativas só alcançaram
transitório aplauso; e para achar uma obra original (mencionando, todavia,
os sainetes de Ramon de la
Cruz) cumpre chegar, no princípio do século atual, a Moratin, o engraçado e
elegante autor do Café, do Barão, etc., e ao Sr. Martinez de la
Rosa, autor de — A mãe no baile, e a
filha em casa.
A descrição que fizemos das
várias espécies de composições dramáticas do tempo de Calderón, mostra que no
antigo drama espanhol a tragédia clássica, posto que menos que a comédia
clássica, podia ter amplo e efetivo lugar. Todavia, enganados, segundo parece,
pela palavra comédia, que na
língua espanhola teve sempre uma significação tão geral como a palavra
alemã spiel ou a
inglesa play, muitos críticos de
nota, principalmente franceses, falaram da total falta de tragédias no teatro
espanhol, como de um fenômeno singular e inexplicável. Tão enraizadas estavam
nos ânimos de tais críticos as distinções clássicas, com que os haviam educado, que assim o afirmavam com
toda a gravidade, embora admitindo ao mesmo tempo, que "o elemento trágico
predominava em grande número das mais afamadas peças do teatro espanhol".
Mas que é este predomínio senão o único meio de distinguir a tragédia da
comédia, único que existe na essência da natureza humana e da arte dramática?
Segundo este sistema mais racional de classificação, o antigo teatro espanhol,
pela própria confissão dos críticos de que falamos é grandemente abundante na
tragédia. Noticiemos agora brevemente as poucas amostras de obras dramáticas,
que na Espanha apareceram mesmo com a denominação de
tragédias.
Boscan, que primeiro
introduziu na Espanha o estilo italiano de versificação, dizem que traduzira
uma das tragédias de Eurípedes, tradução que se perdeu. Também pelos anos de
1520 Fernão Peres de Oliva, voltando da corte de Leão X, onde vira representar
a Sofonisba de Trissino,
escreveu duas imitações do teatro grego, — a Vingança de Agamenon, tirada da Electra de Sófocles, e a Hécuba,
imitação de Eurípedes. Estas tragédias, escritas em elegante prosa, ficaram
desconhecidas fora das universidades, e até há razão para crer que nem aí foram
representadas. Em 1570, João de Malara deu ao teatro de Sevilha várias
tragédias, de objetos bíblicos, como Absalão, Saul, etc.; e em Madrid, que então fora
escolhida para capital do reino, um frade, chamado Jerônimo Bermudez, tomando o
nome suposto de Antônio da Silva, publicou duas tragédias, que merecem fazer-se
delas especial menção. São ambas fundadas na célebre história de D. Inês de
Castro. A primeira, intitulada Nise
Lastimosa, é uma imitação da Castro do nosso Antônio Ferreira: a segunda,
intitulada Nise Laureada, que
tem por ação a vingança, que o infante D. Pedro, quando subiu ao trono, tomou
dos assassinos da sua amada, e a coroação do cadáver de Inês, é mais original
que a primeira, mas inferior a ela no enredo e desenlace. Estas duas peças,
dividida cada uma delas em cinco atos, entressachados de coros, são as
primeiras tragédias regulares, que em verso castelhano se escreveram. Por este
mesmo tempo, em Valência, onde o primeiro teatro, edificado em 1526, era
pertença de um hospital, foram representados vários dramas, ainda mais
notáveis, compostos por Cristóvão de Virues, de quem já falamos, e por Andres
Rei de Artieda. Virues oficial militar, era um dos cabeças da grande escola
que, desde o seu princípio se gloriara de menoscabar as restrições aristotélicas. Foi a sua primeira produção La Gran Semiramis, ação que ao mesmo tempo tratava, em Itália,
Murio Manfredi. Todavia, Virues, em vez de fazer a peça em cinco atos ao modo
grego, dividiu-a em três jornadas,
nas quais meteu toda a vida de Semíramis, passando-se o primeiro ato na
Bactriana, o segundo em Nínive e o terceiro em Babilônia. Compôs depois, sempre
com o mesmo desprezo das unidades, as tragédias da Cruel Cassandra, Átila
Furioso, Infeliz Marcela,
etc. A que intitulou Elisa-Dido,
e que ele anunciou como escrita conforme
al arte antigua, é com efeito, a única, em que as regras são inteiramente
respeitadas. O consocio de Virues na antiga guerra contra os preceitos
clássicos, Juan de la Cueva, depois de traduzir o Ajax de Sófocles, publicou em Sevilha duas tragédias
originais; uma fundada em certa tradição popular, e intitulada —Los Siete Infantes de Lara, a outra
tirada da história romana e reunindo dois objetos trágicos, a morte de Virginia
e a de Apio Caudio, sendo La Cueva o primeiro que pôs em cena estes sucessos,
tantas vezes aproveitados depois. Entretanto no teatro de Madrid as tragédias
de Bermudez eram substituídas pelas de Lupércio de Argensola, as quais
Cervantes louva mais do que elas merecem. O próprio autor do D. Quixote escreveu então a sua Numancia, tragédia a mais clássica que,
porventura, tem o teatro espanhol, porque é aquela em que mais transluz a
simplicidade e pureza do drama grego, posto que o espírito cavaleiroso de
Cervantes apareça quase sempre debaixo dessas formas antigas.
É claro que o espírito
romântico predomina sobre o clássico, até nas produções declaradamente trágicas
do teatro espanhol antigo. Todavia, quando a subida de Filipe V ao trono
submeteu o gosto nacional à influência do de Paris, não só os poetas trágicos
franceses foram traduzidos em língua castelhana, mas também os poetas espanhóis
fizeram várias tentativas para os imitar. No número destas se devem contar
a Virginia e o Ataulfo de Montiano.
Subsequentemente, durante o
alumiado ministério do marquês de Arauda, Fernandez Moratin, Cadalso e Garcia
de la Huerta renovaram essas tentativas: o primeiro escreveu Hormesinda, o segundo D. Sancho Garcia e o terceiro Rachel, mas estas obras, posto que
valiosas, principalmente a última, não eram suficientemente notáveis para
haverem de naturalizar uma casta de dramas tão nova em Espanha. No princípio
deste século tentou o mesmo gênero, com melhor sucesso, D. Nicásio Álvarez de
Cienfuegos, habilmente ajudado pelo talento do célebre ator Isidoro Maiquez, de
algum modo discípulo de Talma, e não indigno de seu mestre, posto que mais se
aproximasse da versatilidade maravilhosa do ator inglês Garrick, porque não só
era feliz nos papéis trágicos, mas também em quaisquer outros, sem excetuar os
de truão e bobo.
Depois de Cienfuegos, que
deixou um Idomeneu, um Pitaco e uma Zoraida, apareceram dois outros poetas
trágicos, que cremos, vivem ainda ambos. Um deles, Quintana, é autor de uma
tragédia intitulada Pelayo,
fundada na história desse antigo campeão da causa perdida da independência
espanhola contra os árabes triunfantes, peça, em verdade, nobre e patética, da
qual os modernos espanhóis, obrigados como seus avoengos a repelir o domínio
estranho, costumavam repetir as passagens mais enérgicas, marchando para os
combates. O outro, Martinez dê-la-Rosa, há pouco primeiro ministro de Isabel
II, é autor de uma peça também patriótica, intitulada A Viúva de Padilla, fundada na memorável luta das cidades
municipais da Espanha contra a agressão tirânica de Carlos V. Esta tragédia, a
primeira de tal gênero, que Martinez dê-la-Rosa compôs, foi feita e
representada em um teatro, construído para isso em Cadiz, quando os franceses
tinham esta cidade cercada. O mesmo autor compôs uma Morayma um pouco ao modo da Merope de Voltaire, e um Édipo, representado depois em Madrid,
no qual, diz um dos mais entendidos críticos da literatura espanhola (Mr.
Viardot) ele trabalhou por ser original, tratando um objeto já tratado por Sófocles,
Sêneca, Corneille, Voltaire, La-Motte e Dryden.
Pelo que respeita a
presente estimação teatral, que se faz dos antigos dramaturgos espanhóis no seu
próprio país, devemos observar que, enquanto Lope de Vega está
desterrado nas bibliotecas, e enquanto Calderón e Moreto raras vezes sobem à
cena, Tirso de Molina, de quem já falamos, aparece mais frequentemente no
teatro que outro qualquer antigo escritor dramático. Fernando VII gostava muito
dos ricos gracejos do
licencioso frade; e esta declarada predileção fazia calar o gênio vidrento e
pundonoroso de certas autoridades, cuja sanha podiam excitar os motejos do
frade contra os grandes. A comédia de Tirso, intitulada D. Gil el de las calzas verdes era
a de que el-rei mais gostava; e por isso a câmara municipal de Madrid não
deixava de a mandar representar nos dias de gala.
Posto que a representação dos Autos
Sacramentales fosse suprimida em 1765, todavia o advento e a quaresma,
e especialmente a Semana Santa, ainda se festejavam há poucos anos nas igrejas
com tais representações; levantava-se no coro uma espécie de tablado, sobre o
qual se representavam os passos da paixão de Cristo, e em que as numerosas
personagens que sucessivamente figuravam na peça, se apresentavam com os vestuários
da idade-média, quais se deviam usar na origem destas representações, como sambenitos,
máscaras pretas, farricocos, cotas, camisolas, e, numa palavra, toda a
vestiaria de uma procissão de auto
da fé.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1839, e publicado em: Opúsculos, tomo IX, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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