6/04/2019

História da machadinha (Fábula), de Ana de Castro Osório



História da machadinha

Havia um rapaz, muito espertalhão e bem parecido, que decidiu casar-se. Um seu vizinho, lavrador abastado tinha uma só filha, e foi essa que ele resolveu pedir em casamento.

O pai e a mãe da rapariga ficaram muito satisfeitos e ela não ficou menos, porque na verdade o rapaz era perfeito moço.

Como prova da sua satisfação quis o lavrador oferecer um copo de vinho ao noivo, e vai daí disse à filha que fosse buscar à adega um pichel do melhor.

A noiva, toda contente por poder obsequiar o rapaz, foi pôr o pichel debaixo da torneira, e enquanto o vinho corria olhou para o teto, onde estava pendurada uma machadinha. Muito preocupada com isto, pôs-se a pensar:

— Ora eu vou-me casar amanhã; em tendo um menino, pode vir aqui; a machadinha cai-lhe em cima, e mata-o! 

Como tardasse muito, a mãe foi ver em que estava a demora, e encontrou a rapariga na adega, a olhar para o teto, e com o pichel já cheio, a deitar por fora.

— Ó filha, que estás tu aqui a fazer, há tanto tempo?

— Ó minha mãe, eu vou-me casar; hei de ter um filho; pode vir aqui; desprende-se aquela machadinha que está presa ao teto; cai-lhe na cabeça e mata-o.

— É verdade, filha, tens razão!

E ficou igualmente a pensar, deixando o vinho a entornar-se pelo chão.

Como também a mulher se demorava, o lavrador, em cuidado, disse para o futuro genro:

— Espere aqui um bocadinho, que eu vou ver o que aconteceu.

Foi à adega e diz-lhe logo a mulher, à queima-roupa:

— Anda cá ver o juízo que tem a nossa filha! Já está a pensar no futuro.

— É verdade, meu pai, eu vou casar; hei de ter um menino; pode aqui vir, e a machadinha é capaz de se desprender do teto, cair-lhe na cabeça e matá-lo.

— Tens razão, filha. E eu que nunca pensei nisso! O que é a gente ser esperta como tu!

E ficou-se igualmente a olhar para o ar, sem ver que a pipa se ia esvaziando pelo chão.

O rapaz, vendo que também o lavrador lá ficava, receou que houvesse qualquer coisa de cuidado e foi à adega.

Mal o viram, disseram os pais da rapariga:

— Venha cá, venha cá, senhor nosso genro, venha ouvir a esperteza da sua noiva.

O rapaz entrou, e a primeira coisa que fez foi fechar a torneira e levantar o pichel  que continuava no chão.

— Pois é verdade (disse a noiva), nós vamos casar; havemos de ter um menino que virá aqui. Aquela machadinha pode desprender-se do teto, e cair-lhe em cima e matá-lo.

— Olhe que é grave (disse o lavrador embasbacado!)

— É grave, é (respondeu o noivo), mas fiquem vocês cá a pensar nisso que eu vou correr mundo. Em encontrando remédio para esse mal, cá venho ter.

E consigo dizia:

— Já não me apanham. Só se encontrar gente ainda mais parva do que eles.

Pôs-se a caminho, e foi andando, andando, até que encontrou uma velha a carregar sol às alcofadas, e perguntou-lhe:

— Ó mulherzinha, que anda a fazer?

— É que a minha casa é tão sombria que de inverno nunca lá entra o sol. E eu como gosto muito dele, pois bem sabe que é o sangue dos velhos, ando a levá-lo para lá.

— Ora que tolice! Dê-me vossemecê quarenta mil réis, que eu lhe meto o sol em casa. 

A velhota, muito satisfeita, deu-lhe logo o dinheiro. E ele foi para cima do telhado, tirou as telhas, e deixou-lhe a casa cheia de sol.

Foi-se dali embora, e andou, andou, até que chegou a uma terra onde toda a gente se levantava ainda de noite, para irem ao cimo duma serra buscar a madrugada. Punham-se de lá a berrar até que alvorecia, e então começavam o seu dia de trabalho.

— Ora que tolice vocês estão fazendo (disse o nosso homem!) Eu tenho um animal precioso que se encarrega de chamar a madrugada, sem que vocês tenham trabalho nenhum. Comprem-mo por um conto de réis, e podem dormir descansados que ele se encarregará de os acordar quando vier o dia.

Os do povo ficaram satisfeitíssimos, e logo se quotizaram todos para comprar o precioso animal.

O espertalhão deu-lhes um galo que trazia para farnel, e foi-se andando, déu-em-déu, com mais aquele dinheirinho ganho à custa dos tolos.

Continuou a sua marcha, até que chegou a uma terra onde viu muita gente reunida no adro. Indagou do que se tratava e soube que havia um casamento e um grave problema para resolver: era costume naquele povo irem as noivas para dentro da Igreja montadas numa égua. Ora acontecia que aquela noiva era tão alta que não cabia na porta, e assim estavam na dúvida se deviam cortar as pernas à égua, se a cabeça à noiva.

— Não é preciso nada disso (disse o rapaz). Deem-me um saco de dinheiro que eu remedeio tudo.

Prontificaram-se a dar-lhe o que pedia, e ele deixou-se estar no adro à espera do cortejo.

Quando viu chegarem os noivos com os seus padrinhos e convidados, foi direito à égua, levou-a até à porta da Igreja, e, mandando a noiva baixar a cabeça quanto pudesse, deu duas pancadas nas ancas do animal, que entrou como um raio pela igreja dentro. E tudo se fez sem perigo para a noiva nem para a cavalgadura.

O povo todo aclamou o grande homem, que se foi embora, dizendo com os seus botões que o número de tolos era maior do que julgava.

Seguiu a viagem até que chegou defronte duma grande casa toda fechada, tendo à porta uma grande quantidade de raspas de cortiça, para amortecer o barulho dos passos.

Julgou que estivesse alguém doente, e bateu à porta, de vagar, para saber o que era. Veio uma criada, nos bicos dos pés, perguntar o que queria.

— Eu sei alguma coisa de medicina, e então, como vi tudo fechado, lembrei-me que estivesse aqui algum doente que precisasse dos meus serviços.

— Pois veio em boa hora, porque a minha senhora está de cama há quarenta anos. Nasceu um menino, chamado Sancho, e como não sabíamos o que fazer, deixamo-los estar na cama até agora.

— Pois vamos lá ver esse menino Sancho (disse o rapaz).

A criada abriu-lhe a porta, e pé-ante-pé subiram a escada e chegaram ao quarto onde estava uma senhora já velha, deitada numa cama, e noutra, em forma de berço, um barbaçanas dum homem, também meio velho. A mãe disse ao visitante que o seu filho era muito esperto: — Ainda se não tinha levantado da cama e já dizia que se chamava Sancho, batia as palmas e fazia outras gracinhas próprias duma criança de poucos meses.

O rapaz fez que observava atentamente o velho-criança, e afirmou:

— Vendo bem, o menino Sanchinho já tem idade para se levantar. Deixem-no, por meu conselho, brincar por toda a casa.

E saiu espantado com tanta estupidez, não sem receber os agradecimentos e a paga dos seus conselhos.

Já de volta para a terra natal, resolvido a casar, pois mais parvos do que a noiva e os pais dela, encontrara tantos, passou por uma herdade onde viu, à porta, uma porca muito gorda a comer bolota.

Era um animal bonito e manso. E muito naturalmente o rapaz fez-lhe uma festa. Mas qual não foi a sua admiração, ouvindo uma voz que lhe dizia, de dentro de casa:

— Ai, o senhor conhece a minha porca?!

Vendo que tinha nova toleima pela proa, respondeu o rapaz gracejando, já morto de riso:

— Pois não havia de conhecer! Esta porca é minha prima!

— Então como se chama o senhor?

— Sou o Maio-longo.

— Ai, o senhor é que é o Maio-longo? Então vou dar-lhe a carne ensacada, que meu marido me disse que se havia de guardar para o Maio-longo.

Deu-lhe o enchido todo que estava guardado e perguntou-lhe donde vinha.

— De Salvaterra (respondeu o rapaz).

— Debaixo da terra? Então há de lá ter encontrado o meu primeiro marido. Chamava-se Jacob Marcim.

— Lá o vi. Andava muito roto e pobre, coitado!

— Ai que desgraça! E eu que tenho aí uma arca cheia de roupa dele! Se o senhor fosse capaz de lha levar?!

— Pois não! Para lhe fazer favor, levo-lhe o que quiser, respondeu o finório, que assim estava a enriquecer à custa dos tolos de boa fé, o que sucede mais vezes do que se imagina.

A mulher foi buscar um grande saco e encheu-o até não poder levar mais, com roupa do defunto. E quando o entregou ao viajante, com muitas recomendações para o morto, disse-lhe:

— Mas, antes que eu seja confiada, sempre lhe pergunto: o senhor o que veio aqui fazer?

— Ora não sabe! Vim convidar a minha prima porca para assistir ao meu casamento.

— Ah, sim!? Então espere um pouco, que eu a vou vestir. E não quero que vá com as mãos a abanar; há de levar a sua prendinha aos noivos. 

Foi buscar um cântaro cheio de azeite, outro com água-mel, e um cesto com queijinhos. Depois foi pôr um capotinho de seda cor de castanha, à porca; deitou-lhe ao pescoço o seu cordão de ouro e, mandando aparelhar a égua, recomendou ao rapaz que levasse a prima sempre montada e com todo o cuidado. Logo que o casamento se fizesse que lha tornasse a mandar, porque ia ter muitas saudades da sua querida porquinha.

O rapaz tratou de se pôr a andar, apressado, receando que viesse o dono da herdade. Efetivamente pouco depois voltava este a casa e, não achando a porca no sítio costumado, perguntou onde estava.

A mulher, muito satisfeita, informou-o:

— Foi com um primo que a veio convidar para assistir ao casamento dele.

— Um primo?! Tu és tola, mulher. As porcas não têm primos.

— Não digas tal. A nossa tem um e bem galante, que até se chama Maio-longo. Por isso lhe entreguei a carne ensacada e os presuntos, que tu me disseste que guardasse para ele.

— Ó mulher, tu estás doida varrida?! Eu disse-te que guardasses a carne para o Maio-longo, porque assim se costuma chamar ao mês de Maio, por ser o que tem os dias maiores, e por isso nos leva a comer mais.

— Então porque não me explicaste bem tudo isso? Agora já não há remédio para o meu engano. Dei tudo ao homem que me disse chamar-se Maio-longo, e fiquei descansada.

— De onde veio esse homem?

— Veio de uma povoação debaixo da terra.

— Ora adeus, não há povoação com esse nome.

— Isso é que há. Até lá esteve com o meu primeiro marido, que andava muito rotinho, coitado! E com tanta roupa que cá deixou, vê lá se não corta o coração! Por isso lhe entreguei tudo quanto cabia num saco.

— Já vejo que és uma parva, que te deixaste enganar por um intrujão! Para onde foi esse homem?

— Foi pela estrada abaixo.

— Bem, manda-me aparelhar a égua para ir atrás dele. Quero perguntar-lhe se anda por cima ou por baixo da terra.

— Ó homem, não te amofines, mas a égua foi também para levar a porquinha, e depois do casamento voltar com ela.

— Ó mulher, isto é demais! Nunca vi tanto disparate junto!

E, montado no cavalo em que tinha vindo, partiu a galope, em procura do Maio-longo.

O cavalo não estava folgado, mas depressa apanharia quem tivesse de caminhar levando a pesada carga da porca e dos seus presentes. Assim esperançado, o lavrador ia galopando e olhando.

Começou a descer um monte e, ao fim de algum tempo, encontrou um homem deitado à sombra de um sobreiro, perto do caminho.

Sem pensar na grande parvoíce que fazia em confiar na informação de um desconhecido, perguntou-lhe se por ali tinha visto passar um sujeito a cavalo e com uma porca muito gorda, que roubara a uma boa mulher.

— Vi, sim senhor. Meteu-se por esta encosta abaixo.

Ora o homem, que não era outro senão o noivo da menina da machadinha, quando o lavrador começou a descer o serro, foi buscar a égua e a porca e os sacos e bilhas, que escondera quando o vira ao cimo do monte e, montando, partiu a toda a pressa, por caminho contrário ao que indicara.

Como ficaria o lavrador quando reconhecesse que também fora enganado, ele que se julgava muito fino, pode bem imaginar-se!

O espertalhão chegou à sua terra, arrecadou o que trouxera da viagem, e foi procurar a noiva a quem perguntou se já tinha remédio para o perigo da machadinha.

— Não, ainda não sei como há de ser!

— Sei eu. Vamos lá todos à adega. — Foram. E ele, subindo então a cima  duma pipa, tirou a machadinha e entregou-a à noiva, para a livrar de cuidados. Ela ficou radiante de contentamento, assim como os pais, que diziam que não havia nada como viajar para a gente aprender!

O rapaz tratou de apressar o casamento porque, na verdade, mais parvos do que a noiva e os sogros encontrara muitos, e reconhecera que quanto mais gente se vê mais tolos se conhecem.

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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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