História da machadinha
Havia um rapaz, muito espertalhão
e bem parecido, que decidiu casar-se. Um seu vizinho, lavrador abastado tinha
uma só filha, e foi essa que ele resolveu pedir em casamento.
O pai e a mãe da rapariga ficaram
muito satisfeitos e ela não ficou menos, porque na verdade o rapaz era perfeito
moço.
Como prova da sua satisfação quis
o lavrador oferecer um copo de vinho ao noivo, e vai daí disse à filha que
fosse buscar à adega um pichel do melhor.
A noiva, toda contente por poder
obsequiar o rapaz, foi pôr o pichel debaixo da torneira, e enquanto o vinho
corria olhou para o teto, onde estava pendurada uma machadinha. Muito
preocupada com isto, pôs-se a pensar:
— Ora eu vou-me casar amanhã; em tendo
um menino, pode vir aqui; a machadinha cai-lhe em cima, e mata-o!
Como tardasse muito, a mãe foi
ver em que estava a demora, e encontrou a rapariga na adega, a olhar para o
teto, e com o pichel já cheio, a deitar por fora.
— Ó filha, que estás tu aqui a
fazer, há tanto tempo?
— Ó minha mãe, eu vou-me casar; hei
de ter um filho; pode vir aqui; desprende-se aquela machadinha que está presa
ao teto; cai-lhe na cabeça e mata-o.
— É verdade, filha, tens razão!
E ficou igualmente a pensar,
deixando o vinho a entornar-se pelo chão.
Como também a mulher se demorava,
o lavrador, em cuidado, disse para o futuro genro:
— Espere aqui um bocadinho, que
eu vou ver o que aconteceu.
Foi à adega e diz-lhe logo a
mulher, à queima-roupa:
— Anda cá ver o juízo que tem a
nossa filha! Já está a pensar no futuro.
— É verdade, meu pai, eu vou
casar; hei de ter um menino; pode aqui vir, e a machadinha é capaz de se
desprender do teto, cair-lhe na cabeça e matá-lo.
— Tens razão, filha. E eu que
nunca pensei nisso! O que é a gente ser esperta como tu!
E ficou-se igualmente a olhar
para o ar, sem ver que a pipa se ia esvaziando pelo chão.
O rapaz, vendo que também o
lavrador lá ficava, receou que houvesse qualquer coisa de cuidado e foi à
adega.
Mal o viram, disseram os pais da
rapariga:
— Venha cá, venha cá, senhor
nosso genro, venha ouvir a esperteza da sua noiva.
O rapaz entrou, e a primeira
coisa que fez foi fechar a torneira e levantar o pichel que continuava no chão.
— Pois é verdade (disse a noiva),
nós vamos casar; havemos de ter um menino que virá aqui. Aquela machadinha pode
desprender-se do teto, e cair-lhe em cima e matá-lo.
— Olhe que é grave (disse o
lavrador embasbacado!)
— É grave, é (respondeu o noivo),
mas fiquem vocês cá a pensar nisso que eu vou correr mundo. Em encontrando
remédio para esse mal, cá venho ter.
E consigo dizia:
— Já não me apanham. Só se
encontrar gente ainda mais parva do que eles.
Pôs-se a caminho, e foi andando,
andando, até que encontrou uma velha a carregar sol às alcofadas, e
perguntou-lhe:
— Ó mulherzinha, que anda a
fazer?
— É que a minha casa é tão
sombria que de inverno nunca lá entra o sol. E eu como gosto muito dele, pois
bem sabe que é o sangue dos velhos, ando a levá-lo para lá.
— Ora que tolice! Dê-me vossemecê
quarenta mil réis, que eu lhe meto o sol em casa.
A velhota, muito satisfeita,
deu-lhe logo o dinheiro. E ele foi para cima do telhado, tirou as telhas, e
deixou-lhe a casa cheia de sol.
Foi-se dali embora, e andou,
andou, até que chegou a uma terra onde toda a gente se levantava ainda de
noite, para irem ao cimo duma serra buscar a madrugada. Punham-se de lá a
berrar até que alvorecia, e então começavam o seu dia de trabalho.
— Ora que tolice vocês estão
fazendo (disse o nosso homem!) Eu tenho um animal precioso que se encarrega de
chamar a madrugada, sem que vocês tenham trabalho nenhum. Comprem-mo por um
conto de réis, e podem dormir descansados que ele se encarregará de os acordar
quando vier o dia.
Os do povo ficaram
satisfeitíssimos, e logo se quotizaram todos para comprar o precioso animal.
O espertalhão deu-lhes um galo
que trazia para farnel, e foi-se andando, déu-em-déu, com mais aquele
dinheirinho ganho à custa dos tolos.
Continuou a sua marcha, até que
chegou a uma terra onde viu muita gente reunida no adro. Indagou do que se
tratava e soube que havia um casamento e um grave problema para resolver: era
costume naquele povo irem as noivas para dentro da Igreja montadas numa égua.
Ora acontecia que aquela noiva era tão alta que não cabia na porta, e assim
estavam na dúvida se deviam cortar as pernas à égua, se a cabeça à noiva.
— Não é preciso nada disso (disse
o rapaz). Deem-me um saco de dinheiro que eu remedeio tudo.
Prontificaram-se a dar-lhe o que
pedia, e ele deixou-se estar no adro à espera do cortejo.
Quando viu chegarem os noivos com
os seus padrinhos e convidados, foi direito à égua, levou-a até à porta da
Igreja, e, mandando a noiva baixar a cabeça quanto pudesse, deu duas pancadas
nas ancas do animal, que entrou como um raio pela igreja dentro. E tudo se fez
sem perigo para a noiva nem para a cavalgadura.
O povo todo aclamou o grande
homem, que se foi embora, dizendo com os seus botões que o número de tolos era
maior do que julgava.
Seguiu a viagem até que chegou
defronte duma grande casa toda fechada, tendo à porta uma grande quantidade de
raspas de cortiça, para amortecer o barulho dos passos.
Julgou que estivesse alguém
doente, e bateu à porta, de vagar, para saber o que era. Veio uma criada, nos
bicos dos pés, perguntar o que queria.
— Eu sei alguma coisa de
medicina, e então, como vi tudo fechado, lembrei-me que estivesse aqui algum
doente que precisasse dos meus serviços.
— Pois veio em boa hora, porque a
minha senhora está de cama há quarenta anos. Nasceu um menino, chamado Sancho,
e como não sabíamos o que fazer, deixamo-los estar na cama até agora.
— Pois vamos lá ver esse menino
Sancho (disse o rapaz).
A criada abriu-lhe a porta, e
pé-ante-pé subiram a escada e chegaram ao quarto onde estava uma senhora já
velha, deitada numa cama, e noutra, em forma de berço, um barbaçanas dum homem,
também meio velho. A mãe disse ao visitante que o seu filho era muito esperto:
— Ainda se não tinha levantado da cama e já dizia que se chamava Sancho, batia
as palmas e fazia outras gracinhas próprias duma criança de poucos meses.
O rapaz fez que observava
atentamente o velho-criança, e afirmou:
— Vendo bem, o menino Sanchinho
já tem idade para se levantar. Deixem-no, por meu conselho, brincar por toda a
casa.
E saiu espantado com tanta
estupidez, não sem receber os agradecimentos e a paga dos seus conselhos.
Já de volta para a terra natal,
resolvido a casar, pois mais parvos do que a noiva e os pais dela, encontrara
tantos, passou por uma herdade onde viu, à porta, uma porca muito gorda a comer
bolota.
Era um animal bonito e manso. E
muito naturalmente o rapaz fez-lhe uma festa. Mas qual não foi a sua admiração,
ouvindo uma voz que lhe dizia, de dentro de casa:
— Ai, o senhor conhece a minha
porca?!
Vendo que tinha nova toleima pela
proa, respondeu o rapaz gracejando, já morto de riso:
— Pois não havia de conhecer!
Esta porca é minha prima!
— Então como se chama o senhor?
— Sou o Maio-longo.
— Ai, o senhor é que é o
Maio-longo? Então vou dar-lhe a carne ensacada, que meu marido me disse que se
havia de guardar para o Maio-longo.
Deu-lhe o enchido todo que estava
guardado e perguntou-lhe donde vinha.
— De Salvaterra (respondeu o
rapaz).
— Debaixo da terra? Então há de
lá ter encontrado o meu primeiro marido. Chamava-se Jacob Marcim.
— Lá o vi. Andava muito roto e
pobre, coitado!
— Ai que desgraça! E eu que tenho
aí uma arca cheia de roupa dele! Se o senhor fosse capaz de lha levar?!
— Pois não! Para lhe fazer favor,
levo-lhe o que quiser, respondeu o finório, que assim estava a enriquecer à
custa dos tolos de boa fé, o que sucede mais vezes do que se imagina.
A mulher foi buscar um grande
saco e encheu-o até não poder levar mais, com roupa do defunto. E quando o
entregou ao viajante, com muitas recomendações para o morto, disse-lhe:
— Mas, antes que eu seja
confiada, sempre lhe pergunto: o senhor o que veio aqui fazer?
— Ora não sabe! Vim convidar a
minha prima porca para assistir ao meu casamento.
— Ah, sim!? Então espere um pouco,
que eu a vou vestir. E não quero que vá com as mãos a abanar; há de levar a sua
prendinha aos noivos.
Foi buscar um cântaro cheio de
azeite, outro com água-mel, e um cesto com queijinhos. Depois foi pôr um
capotinho de seda cor de castanha, à porca; deitou-lhe ao pescoço o seu cordão
de ouro e, mandando aparelhar a égua, recomendou ao rapaz que levasse a prima
sempre montada e com todo o cuidado. Logo que o casamento se fizesse que lha
tornasse a mandar, porque ia ter muitas saudades da sua querida porquinha.
O rapaz tratou de se pôr a andar,
apressado, receando que viesse o dono da herdade. Efetivamente pouco depois
voltava este a casa e, não achando a porca no sítio costumado, perguntou onde
estava.
A mulher, muito satisfeita,
informou-o:
— Foi com um primo que a veio
convidar para assistir ao casamento dele.
— Um primo?! Tu és tola, mulher.
As porcas não têm primos.
— Não digas tal. A nossa tem um e
bem galante, que até se chama Maio-longo. Por isso lhe entreguei a carne
ensacada e os presuntos, que tu me disseste que guardasse para ele.
— Ó mulher, tu estás doida
varrida?! Eu disse-te que guardasses a carne para o Maio-longo, porque assim se
costuma chamar ao mês de Maio, por ser o que tem os dias maiores, e por isso
nos leva a comer mais.
— Então porque não me explicaste
bem tudo isso? Agora já não há remédio para o meu engano. Dei tudo ao homem que
me disse chamar-se Maio-longo, e fiquei descansada.
— De onde veio esse homem?
— Veio de uma povoação debaixo da
terra.
— Ora adeus, não há povoação com
esse nome.
— Isso é que há. Até lá esteve
com o meu primeiro marido, que andava muito rotinho, coitado! E com tanta roupa
que cá deixou, vê lá se não corta o coração! Por isso lhe entreguei tudo quanto
cabia num saco.
— Já vejo que és uma parva, que
te deixaste enganar por um intrujão! Para onde foi esse homem?
— Foi pela estrada abaixo.
— Bem, manda-me aparelhar a égua
para ir atrás dele. Quero perguntar-lhe se anda por cima ou por baixo da terra.
— Ó homem, não te amofines, mas a
égua foi também para levar a porquinha, e depois do casamento voltar com ela.
— Ó mulher, isto é demais! Nunca
vi tanto disparate junto!
E, montado no cavalo em que tinha
vindo, partiu a galope, em procura do Maio-longo.
O cavalo não estava folgado, mas
depressa apanharia quem tivesse de caminhar levando a pesada carga da porca e
dos seus presentes. Assim esperançado, o lavrador ia galopando e olhando.
Começou a descer um monte e, ao
fim de algum tempo, encontrou um homem deitado à sombra de um sobreiro, perto do
caminho.
Sem pensar na grande parvoíce que
fazia em confiar na informação de um desconhecido, perguntou-lhe se por ali
tinha visto passar um sujeito a cavalo e com uma porca muito gorda, que roubara
a uma boa mulher.
— Vi, sim senhor. Meteu-se por
esta encosta abaixo.
Ora o homem, que não era outro
senão o noivo da menina da machadinha, quando o lavrador começou a descer o
serro, foi buscar a égua e a porca e os sacos e bilhas, que escondera quando o
vira ao cimo do monte e, montando, partiu a toda a pressa, por caminho
contrário ao que indicara.
Como ficaria o lavrador quando
reconhecesse que também fora enganado, ele que se julgava muito fino, pode bem
imaginar-se!
O espertalhão chegou à sua terra,
arrecadou o que trouxera da viagem, e foi procurar a noiva a quem perguntou se
já tinha remédio para o perigo da machadinha.
— Não, ainda não sei como há de
ser!
— Sei eu. Vamos lá todos à adega.
— Foram. E ele, subindo então a cima duma
pipa, tirou a machadinha e entregou-a à noiva, para a livrar de cuidados. Ela
ficou radiante de contentamento, assim como os pais, que diziam que não havia
nada como viajar para a gente aprender!
O rapaz tratou de apressar o
casamento porque, na verdade, mais parvos do que a noiva e os sogros encontrara
muitos, e reconhecera que quanto mais gente se vê mais tolos se conhecem.
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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
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