Maria do
Carmo, curvada sobre a mesa, folheia os últimos envois de Paquin e
Redfern. Um candeeiro com um largo quebra-luz de seda e rendas lança-lhe sobre
o cabelo uma aureola de ouro. O corpo está mergulhado na penumbra. Na sala, os
moveis tomam aspectos fantásticos. Os espelhos têm um brilho pálido. Gonçalo,
ao entrar, beija a mão que Maria do Carmo lhe estende, sem levantar os olhos
dos papeis.
MARIA DO CARMO
— trinta anos, com dez de casamento. Sem filhos. A vida passa-se-lhe em
visitas, raouts, recepções e bailes. Alguns livros da moda,
recomendados por Marcel Ballot, no Fígaro, e Jean Lorrain, por curiosidade. Interessante
como um enigma, às vezes perversa. Não se lhe conhece um amante, mas indicam-se
muitos. Não toca piano.
GONÇALO — não
tem uma branca, mas no meio da animação, fictícia, vê-se um grande cansaço de
viver, como se tivesse experimentado tudo. Procura por toda a parte, como
um gourmet,
o manjar fino. Epicurista, delicadamente depravado, como um roué da Restauração, ou
um elegante do fim da república romana.
***
— Ainda bem
que veio!... Preciso do seu bom conselho...
— Como sempre,
depois de ter feito alguma tolice?...
—
Impertinente!
— É sempre
assim. Pede-me o conselho depois de não precisar dele! De resto, dá na mesma:
ninguém segue conselhos.
— Não. Tenho
aqui estes dois álbuns. De Paquin... De Redfern... São as últimas criações.
Estou tentada a escolher quase tudo e a não escolher nenhum... Quer acreditar
que tenho dias vazios na minha vida? Dias sem vontade, de uma grande lassidão,
em que nem sequer tenho forças para fingir que sorriu!...
— Ame um
pouco...
— É coisa que
se encomende? Acordo um dia, com a resolução de amar. É logo. O primeiro que me
aparece na Avenida, aquele que melhor dorme em São Carlos, o caixeiro que me
vende as fitas no Martins! Vê-se bem que nunca amou!
— Não amei!
Mas eu não sou, eu amo. É a minha maneira de existir. Um nasce cego;
nasci amoroso...
— Cale-se!
Diga lá, qual destes vestidos prefere?
— Sabe que é
muito difícil escolher um vestido pelos desenhos feitos d'après os
manequins? O mesmo vestido toma aspectos diferentes conforme as pessoas...
— Não faça
filosofia. Olhe este de Paquin: ligeiro, todo em rendas, em coisas leves,
parece feito com flores; o Redfern é mais hierático; mesmo nos vestidos de
baile conserva a raideur dos cortes tailleur. São vestidos
para a Bouro, que parece ameaçar-nos constantemente com a sua coroa de marquesa.
Este?
— Não lhe irá
bem, talvez... O talhe da saia engrossa a sua figura, a que não vão bem...
— O senhor
treslê... Tudo me vai bem... Deixe lá os figurinos... Não sabe nada de
vestidos... É como do coração. Aconselha-me a que ame...
— E dou-lhe um
bom conselho. Nem parece que sou seu amigo.
— Trouxe hoje
a alma de cínico?
— Era a que
tinha mais à mão. Estava ao cimo da gaveta...
— Continuo a
dizer: não percebe nada dos negócios do coração...
— Não há
negócios do coração. O coração dá-se...
— Não; troca-se...
— Para quê?
Não é preciso, no amor, ser-se correspondido. Basta amar. É possível que para a
felicidade seja necessária a permuta...
— O amor é o
choque...
— Muitas vezes
o cheque.
— Que jeu de mots tão
velho! É o choque de duas almas. É preciso que girem bem, no encontro. São duas
eletricidades que se combinam. Conhece a teoria das duas metades da maçã?
— Conheço: é
uma figura de retórica...
— Não é. Andam
duas criaturas por esse mundo, ignorando o seu futuro, achando a vida sem
razão, idiota...
— Escolhe uma
mentira vital, como diz Ibsen. Conheço-lhe o charabia...
— Deixe-me
acabar. Corre mundos, faz tolices, fecha-se dias em casa, até vai ao circo ver
as focas... E nada! Um dia, sem saber como nem porquê, uns olhos encontram-se
com os seus, numa multidão. Há a faísca... Pode ser um santo ou um bandido,
lindo como o Rubempré, estúpido como um tenor, candidato à grilheta ou fútil
como um janota. Fica-se presa; somos dele para toda a vida, ficamos amarradas a
ele, como uma sombra... É assim o Amor, é feito de imprevistos... Não tem razão
alguma de ser, mas é.
— Uma coisa
fatal? Tem que ser?
— Sim.
— Permite-me
que discorde?
— É teimoso.
— Sou. Já viu
alguma discussão dar resultado? O amor é sempre criado por nós. Não amamos
senão a pessoa que queremos amar. É, como tudo, um ato voluntario. Há escolha.
Vemos uma mulher, vinte, trinta vezes, sem nos fazer impressão alguma. Um dia
ela repara em nós. Se é bonita, elegante, calça no Chapelle e veste na Lipman,
pelo menos, a nossa vaidade sente-se satisfeita e começamos a descobrir-lhe
encantos, a criar alguns, a afeiçoá-la ao nosso jeito. Ao conversar com ela,
pomos intenção nas frases ocas que diz, vemos mistério no seu sorriso...
Estamos presos. — Um belo dia, porém, por qualquer motivo, torna-se útil acabar
com o pesadelo da mulher que aparece em toda a parte: sai das brasas do fogão,
a que nos aquecemos, da pagina que lemos, do fumo do cigarro, do papel em
branco em que vamos escrever ao nosso procurador. Repara-se um pouco nela.
Descobre-se o primeiro defeito. Exageramo-lo para o grotesco. E da deusa
perfeita também as flores e fica uma caração que faz rir.
— Uma
teoria...
— Não é,
creia. Acontece-me isso duas ou três vezes por ano. Sabe que ando sempre com
uma paixoneta... ou mais. Levo oito dias a fazê-las cair do peito.
— E vive
feliz?
— Inteiramente
feliz. Saber contentar-se não é a suprema sabedoria? Para que se inventou
o flirt?
— O flirt? Que
horrível coisa? É a "sombra chinesa" do Amor...
— É melhor. É
o perfume. Os delicados contentam-se. É preciso comer uma flor? Não, basta
respirar-lhe o aroma. Ora essas conversas, meio sentimentais, a um canto, ditas
em voz baixa, sublinhadas pelos olhos que toda a alma ilumina, são como o roçar
de asas que fossem flores. Há o ligeiro premir dos dedos, sob os leques, certos
tremores de lábios, como se os beijos neles esvoaçassem, uma
concentração de todo o ser, que parece boiar no éter, leve... As frases
não se arrastam, num espasmo. Têm palpitações, lançam-se numa curva larga, até
desaparecer em estrela. Não conhece o flirt. Todo o ser é livre e vai entregar-se,
rendido... Cada palavra toma um sentido misterioso... Vou-lhe contar um flirt... Estava na
Suíça.
—
Internacional?
— Cosmopolita.
Num desses cantos, que ultimamente o Cook estraga, na Engadine. Paisagem de gelo,
hotel de gente podre...
— De chique?
— De chique.
Conheci uma americana, deliciosa como um fruto acre, que vivia fora da coterie swell. O
americano vai-se tornando terrivelmente rasta. Trinta anos? Talvez... Mas trinta anos frescos,
sem rugas, viúva depois de dois meses de escasso matrimonio com um formidável brasseur d'affaires de
Nova York, cérebro em ebulição permanente que acabou numa neurastenia aguda.
Íamos passear sós, pelo gelo. Sentávamo-nos nos pontos de vista que o Bœdeker
não indica, paisagens tristes de tanta brancura, sem uma mancha. Fugíamos
dos five-ó-clock,
das parties bulhentas
em complicada companhia. Comecei a amá-la. Tínhamos lido os mesmos livros,
sobre eles falávamos: gostávamos das mesmas músicas, desse Schuman cheio de
cor, dolente e envenenado; preferíamos aos flamengos gordurosos e aos
espanhóis sombrios, o delicado mistério dos Vinci, a graça fina e brilhante de
Rafael.
A falar de
quadros e de romances, as nossas almas tocavam-se, porque um sentido novo
brilhava em cada palavra; e parecia que cada frase terminava num beijo. Às
vezes, levemente, as nossas mãos tocavam-se. Era rápido e delicioso. Desse
contacto ficava uma lembrança, como de um perfume. Amor platônico? Não.
Um flirt.
Sem arroubamentos. Sempre a Alma livre, sempre o beijo a tremer na boca, sem
cair... Uma ou outra vez, compreende, por esquecimento...
— Compreendo.
Sem malícia...
— Essa mulher
tinha realizado todo o meu sonho! De resto acontece-me isto muitas vezes. O
sonho varia com as mulheres que nos interessam. Mas essa parecia realizar tudo.
No seu corpo ambíguo, de egípcia, parecia conservar-se, como um fruto no gelo,
uma adolescência eterna. As suas mãos finas, pesadas de tantos anéis em que
Vever pusera todo o seu gênio estranho, floriam gestos de uma carícia delicada
e terna. A sua alma, que parecia ter visto tudo, ainda sentia a vida com
frescura. As horas que passei junto dela! O perfume, uma mistura sábia
d'Houbigants, então dernier bateau, perturbava... Longe dela, não pensava
noutra coisa. Recordava-me dos gestos, os pequenos detalhes da toilette e da
conversa, um rosar de pele sob as rendas, uma palavra, um grain de beauté, que
tinha na nuca. Sabe como acabou? Ela propôs-me casar. Fechei me no quarto,
horrorizado. Casar, eu? Uma mulher que me julgava capaz disso! Era preciso
abater esse amor orgulhoso, que crescia no meu peito. Que defeito tinha ela? A
princípio não vi nenhum... Fui procurando. Tinha, às vezes, quando falávamos em
francês, erros de gramática deliciosos. Comecei a achar ridículo essa ignorância.
Daí passou para os vestidos, para o corpo, o peito chato, sem ancas... Tudo
caiu. Essa mulher pareceu-me horrorosa... Comecei a troçar dela, do seu bas-bleuismo... Por fim
ela resolveu partir. Lembro-me perfeitamente. O gerente do hotel levou-lhe um enorme
ramo de bluets, os raros amigos também lhe levaram flores.
Todo o carro estava cheio de flores. Sentou-se entre elas, afagava-as, cortara
algumas para cheirar. Chorara. Ainda me deitou um molho, que tinha beijado. O
carro partiu, como se fosse um açafate. E a sua face branca era como uma flor
triste... Não tive pena. O amor já caíra. A gente ou gosta ou não gosta,
conforme quer. — Vamos fazer um flirt para experimentar?
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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