Elogio Histórico de Sebastião Xavier Botelho
Honrado com o encargo de
revocar hoje a memória de um nosso ilustre consócio que a morte nos roubou, não
posso deixar de sinceramente lamentar que este Conservatório quisesse que eu, entendimento
humilde, vá bater à porta do sepulcro para através dele citar uma nobre
inteligência, que repousa no seio de Deus, e dizer-lhe — Vem ouvir o processo
da tua glória, o julgamento sobre o modo porque desempenhaste a tua missão
intelectual na terra.
Porque, Senhores, ou muito
me engano, ou é esse o principal, diria quase o único mister que nos incumbe,
aos que fomos escolhidos para falar neste dia e neste lugar dos nossos
falecidos consócios. Em nome das letras, dessa revelação formosa e santa do engenho
humano, nos ajuntamos neste recinto: por elas existimos como corporação: elas
nos fizeram irmãos e iguais. Pelas letras as diferenças voluntárias e incertas
do mundo — as riquezas, o poder, os nomes de avós, se convertem em palavras sem
sentido. A democracia absoluta, sonho impossível, talvez, de realizar na
sociedade civil, torna-se entre nós uma condição de existência. Nas associações
literárias a vida é de certo modo imaterial, e as nossas distinções são
unicamente as da superioridade do engenho. Mas a última instância onde tais
preferências se julgam é o tribunal da posteridade. Só a morte abre de par em
par as portas deste, e é aí que definitivamente se resolve se o nome do que
passou será lançado na herança dos séculos, na memória perene dos homens, ou se
tal nome deve esquecer como esquece o som derradeiro da loisa caindo sobre a
borda do sepulcro, onde foi repousar o que não pode ou não soube conquistar a
imortalidade.
É por este caráter
democrático, de todas as corporações como a nossa, porque alheias inteiramente
às condições da sociedade civil, que me parece não ser nos arquivos desse pobre
mundo das vaidades, a que chamam realidade, onde hajamos de ir buscar
documentos e testemunhos, que provarão muito para outro gênero de renome e
glória, mas que de nenhum modo vem a ponto para as canonizações literárias, no
momento solene em que devemos preparar o processo pelo qual a posteridade tem
de julgar inteligências já livres deste sudário da vida. Antepassados, haveres,
grandeza, cargos, que nos importam? Outra é a nossa missão: temos de perguntar
ao que traçou algumas palavras no livro eterno e imenso da arte e ciência
humana — Que foi o que fizeste? — Que era o que podias fazer? Isto é o que nos
pertence, o resto à sociedade.
O nosso falecido consócio,
que passando na terra escreveu nesse livro uma das suas formosas páginas, foi o
Sr. Sebastião Xavier Botelho. Para se poder avaliar o mérito desta escritura de
que preciso eu? — De lê-la.
Dificultosa é semelhante
leitura; porque as palavras do homem de engenho são concisas e profundas:
soletram-nas a custo os que não possuem esse dom de cima; e, sem humildade
hipócrita, eu sei que pertenço a estes.
A culpa do mau desempenho
será, pois, vossa, Senhores, que medistes erradamente as minhas forças pelos
meus e pelos vossos desejos.
A história intelectual e
íntima do Sr. Botelho divide-se em dois grandes períodos: corre o primeiro
desde a época em que concluiu os seus estudos de jurisprudência na Universidade
de Coimbra até àquela em que importantes e laboriosos cargos, que lhe foram
confiados, o constrangeram a dedicar-se inteiramente ao cumprimento de suas
obrigações, e a deixar os ócios literários da juventude: o segundo abrange o
tempo que discorreu desde esta época até à da sua morte. O primeiro período foi
para ele o do trato e cultura das boas letras: o segundo o do estudo dos homens
e das coisas, da ciência, da história e do governo. No primeiro, o Sr. Botelho
foi poeta: foi o homem do ideal: no segundo foi historiador, economista e político;
foi o homem do mundo real. É nestes dois períodos que eu considerarei as obras
da sua inteligência, e procurarei responder à pergunta — Que serviços fez o Sr.
Botelho ao progresso do espírito humano?
As primeiras composições
Poéticas do nosso ilustre consócio foram escritas nos fins do anterior ou nos começos
do presente século: destas nenhuma viu a luz pública: as que se lhes seguiram,
pertencendo pela maior parte à literatura dramática, tiveram o seu primeiro
modo de publicação — o da cena: mas o único penhor de duradouras recordações e
o único fiador da perpetuidade da glória, essa fonte de toda a ciência e
civilização modernas — a imprensa —faltou-lhes como ainda há dez anos faltava
comumente às obras dos nossos bons engenhos que nasciam e morriam sem a
conhecerem; porque dois anjos maus a guardavam, os quais tinham por nome —
censura e ignorância.
Por esses arquivos de
teatros jazem sepultados os dramas do Sr. Botelho, dos quais apenas é
imperfeitissimamente conhecida a tragédia Inês
de Castro, e um pouco melhor a Zulmira,
melodrama de que restam várias cópias.
Zulmira é, como todos os melodramas, uma composição hibrida, monstruosa, e
falsa à luz dramática; mas considerada como um hino aos nobres afetos do
coração humano ela nos revela quanto era poética e formosa a alma do Sr.
Botelho. Poucos versos haverá da época em que foi escrita, a não serem os do
melhor metrificador português —Bocage — nos quais se encontre tanta suavidade,
melodia e arte e ao mesmo tempo tão generosas ideias, tão afetuoso sentir,
expresso muitas vezes com admirável precisão. Não é um drama a Zulmira! — E que importa? Ester é uma elegia; Atália uma epopeia; mas elegia e epopeia
sublimes de um poeta divino!
Mais bem salvas para a
história das letras foram as numerosas versões dramáticas do Sr. Botelho —
amparavam-nas, seus originais, largamente conhecidos no mundo. Além de muitas
óperas de Metástasio e de quatro tragédias de Racine, Berenice, Mitridates, Fedra e Bajaceto, ele transportou para a
cena portuguesa quase todos os mais afamados dramas de Voltaire, como Maomé, Zaíra, Bruto, Mariana, Édipo e Semíramis, aos quais acresceram muitos outros de menos
célebres autores dramáticos.
Já vedes, Senhores, quantas
e quão largas vigílias o mancebo poeta consagrou ao teatro; as suas poesias
volantes sabe-se que foram muitas, mas do naufrágio do tempo apenas salvou a
imprensa a epístola a Bocage, a qual mereceu os extremados louvores que este
grande poeta dá para me servir da linguagem arcádica daqueles tempos, ao vate
Salicilo. Vate Salicilo era o Sr. Botelho, que ainda então os poetas, por
obrigação de seu ofício, se desbatizavam do nome cristão, iam em espírito
pastorear à velha Grécia, e voltavam de lá não poetas, mas pastores e vates.
Procurei, Senhores,
lembrar-vos quão extensos foram os trabalhos poéticos do Sr. Botelho. Resta-me,
todavia, mais dificultosa tarefa, o recordar-vos qual foi a significação
literária deles — o averiguar como e quanto o nosso falecido consócio
contribuiu para os progressos da arte nesta tão poética terra de Portugal.
Poeta elmanista, e um dos
primeiros e mais distintos sectários desta escola, que rainha da poesia, e
dispensadora de glória regeu sem partilha de império os domínios da arte, é no
julgamento dessa escola brilhante que está o seu julgamento. Os juízos
individuais em história literária são tão falsos como em história social: o
indivíduo que vai à frente da sua época, não é mais que a ideia predominante
dela encarnada no homem. Julguemos a ideia, e teremos julgado o símbolo humano
que a representa. Se aquele que passou não a compreendeu, não o chamemos também
ao tribunal da posteridade, e deixemo-lo repousar na paz de seu esquecido
sepulcro.
Mas o pensamento
progressivo que agitou uma geração ou um século não vem só: vem com ele os
pensamentos dominadores das gerações ou dos séculos antecedentes que o
produziram, e vem os que ele gerou. Sem isso o processo será incompleto: errada
provavelmente a sentença. Expressão de uma série contínua e eterna de ideias,
grandes porque veem de Deus, o progredir humano revela o elemento intelectual
de cada uma das nossas transformações sucessivas em todas as fórmulas da vida.
Esse elemento, essa ideia prolifica, busquemo-la em todos os aspectos da
civilização, que em todos a havemos de encontrar. Nas instituições, e nos
costumes, na ciência, e na arte, lá está escrita — escrita pela mão do anjo do
Senhor, que deixa cair sobre a terra uma lágrima de dó, quando a mão de algum
louco crê que pode apagá-la, ou a voz do insensato se ergue para a desmentir, e
nela desmentir o brado do gênero humano.
É na arte, à qual foi
completamente dedicado o primeiro período da vida literária do Sr. Sebastião
Xavier Botelho, que eu buscarei principalmente o pensamento ou fato intelectual
que caracteriza e explica a sua época e a sua escola, ligando esse fato com os
que o precederam e com os que dele vieram. Oxalá que para animar-me em tratar
um objeto acima de minhas forças me não desampare a vossa indulgência!
Vós sabeis, Senhores, que
durante a primeira metade do décimo sexto século uma grande revolução se operou
e completou no Meio-Dia da Europa. As sociedades feudais e municipais, estas,
no seu crescer, aquelas na sua declinação, deram o último arranco aos pés da
sociedade monárquica. Toda a vida anterior das nações do ocidente desabou após
elas. Entre nós mudou tudo: socialismo, ciência, arte, caráter religioso.
Ninguém curou disso. A robusta e inteligente monarquia desse tempo atirou à
espantosa atividade de nossos avós três partes do mundo para esmagar: cevou-a
em poderio, e saciou-a de glória. Compuseram-se então todos os aspectos da
sociedade a exemplo da unidade monárquica: o senhorio feudal tornou-se
dependência completa: o município delegação: os parlamentos letra morta. A
crônica, essa forma tão viva, tão dramática, tão nacional da história, cedeu o
campo aos Tucídides e Lívios modernos: o platonismo cristão e espiritual,
fugiu, combatendo como os Partos, ante o aristotelismo argumentador e
materialista: as artes plásticas seguiram de longe os destinos de suas irmãs de
Itália, onde as iluminuras aéreas e incorretas dos missais e horas,
desapareciam diante do pincel terreno e correto de Rafael e as catedrais
misteriosas e simbólicas se desmoronavam ao altear do templo de São Pedro,
prostituído à luz por Miguel Ângelo: todas as artes se confessaram vencidas, na
sua imperfeição e rudeza sublimes, pelos monumentos da arte antiga. O próprio
cristianismo se fez intolerante e sanguinário, como o politeísmo romano, o
perseguidor dos mártires — e a inquisição restaurou o pretório. Finalmente a
poesia nacional, balbuciante ainda, retraiu-se ante o fulgor da literatura
latina. As instituições de Roma, a Roma dos imperadores, anularam as nossas
instituições primitivas, e a poesia romana mudou o caráter da poesia moderna. A
sociedade reproduzia o pensamento que guiava o século. Deixou de ser cristã e
nacional, para ser pagã e peregrina. Roma que, viva e possante, não alcançara
subjugar inteiramente este cantinho da Europa, cadáver já, profanado pelos pés
de muitas raças bárbaras, conquistou-nos com o esplendor da sua civilização,
que ressurgira triunfante. Netos dos celtas, dos godos, e dos árabes,
esquecemo-nos de todas as tradições de avós para pedirmos às cinzas de um império,
morto e estranho, até o gênio da própria língua!
Mas essa civilização
violenta, enxertada em árvore de diverso gênero, devia tarde ou cedo ceder o
lugar a outra mais homogênea com as tradições e costumes, com as crenças e hábitos
dos povos modernos. O mundo antigo fora condenado por Deus: a sua condenação
era o evangelho. O engenho humano pode vestir-lhe o trajo dos vivos; mas por
baixo deste estava-lhe sobre o esqueleto mirrado o sudário dos mortos. Mais
tarde ou mais cedo, repito, ele devia voltar à sua jazida.
E a reação não tardou os
anos de três gerações. O seiscentismo foi uma reação.
Há aí acaso quem duvide de
que ele era uma revolta, senão contra a essência da arte romana, decerto contra
as formas exteriores dessa arte? Bem sabeis, Senhores, que não é difícil
prová-lo, e que entre a poesia anterior ao renascimento e a dos seiscentistas
há alguns caracteres análogos, e muitas tendências semelhantes. Não direi
quais, porque melhor o conheceis que eu— e porque preciso de aproximar-me
rapidamente à época em que viveu para honra das letras o Sr. Sebastião Xavier
Botelho.
Qual foi a origem do
seiscentismo? A história literária diz-nos que foram Marino, Gôngora, e não sei
quem mais. É uma daquelas falsidades históricas, que nascem do curto pensar. Nunca
um ou alguns homens puderam assim mudar nem a mínima das fórmulas sociais, em
cujo número a arte decerto não é a última. São as gerações arrastadas e
agitadas por ideias que nasceram e se derramaram insensivelmente, que fazem
semelhantes transformações. Esses cabeças de escola são o verbo da ideia, são
os intérpretes do gênero humano — e mais nada.
O seiscentismo foi uma
resolução que falhou, uma tentativa de restauração da nacionalidade em
literatura, que não sendo acompanhada pela restauração social completa do modo
de existir português anterior às influências romanas, ficou aleijada e
raquítica, e substituiu a uma arte antinacional, mas judiciosa e brilhante,
outra falsa e além disso ridícula.
A célebre Arcádia, e a
influência que esta corporação teve nas letras foi uma nova reação literária, e
o dogmatismo em que se restauraram as doutrinas romanas, posto que reflexas já
de Itália e de França, foi ainda mais intolerante e absoluto que na época do
renascimento. O seiscentismo acabou às mãos dos árcades, que restabeleciam o
predomínio da arte antiga e revocavam o pensar e o estilo dos poetas do tempo
de D. João III e D. Sebastião, ao passo que o Marquês de Pombal procurava
restaurar a esquecida robustez da monarquia com a austeridade dos seus
princípios administrativos, e com a ação vigorosa do seu governo de ferro.
A monarquia do Marquês de
Pombal era anacrônica em política: a restauração da arte romana era anacrônica
em literatura. Ambas deviam necessariamente passar — e passar rápidas. Assim
aconteceu. Além do anacronismo havia em ambas ainda outro elemento de
dissolução. A fórmula política nunca fora tão absolutamente monárquica: a
fórmula literária nunca fora tão mesquinhamente romana. Nunca o motu-proprio
fora tão cabal explicação de todas as leis: nunca os nomes e exemplos de
Aristóteles e de Quintiliano, de Horácio e de Virgílio, substituíram tão
completamente o raciocínio na crítica. Mas o Marquês de Pombal começava por
discutir com a aristocracia e com a teocracia, e a Arcádia com o seiscentismo;
os homens do futuro tinham portanto também o direito de discutir com eles. É o
que tem feito e fará o nosso século.
A Arcádia derrubara a
poesia seiscentista: cumprira com sua missão. Depois dogmatizou e morreu. Foi de
inanição. Esta sociedade, tão ativa, tão beligerante, tão ruidosa nos seus
começos — expirou, e nem sequer o mundo literário deu tino disso. Era que a
Arcádia nunca propriamente vivera, porque nunca representara uma ideia
progressiva.
Foi depois dela que floresceu
Bocage e a sua escola, um de cujos luminares era o Sr. Sebastião Xavier
Botelho. Resta-me trazer à vossa memória o lugar desse poeta e dessa escola nos
anais da arte.
Bocage vinha depois de duas
restaurações clássicas, ou romanas; assistira ao derradeiro clarão da segunda,
e fora educado por ela. Os seus primeiros poemas são moldados pelos dos árcades,
mas já nesses poemas há mais inspiração, porque Bocage nascera e não se fizera
poeta, com se haviam feito aqueles, se excetuarmos Garção. As variedades que
gradualmente apareceram no seu estilo e pensar foram mui pouco distintas, salvo
na metrificação em que escureceu completamente os árcades, e na tendência,
visível nas suas melhores composições, para substituir a mitologia pagã pela
alegoria, o que deveu talvez à influência dos poemas descritivos franceses, a
que o materialismo e a incredulidade do século XVIII tinham reduzido a poesia
daquela nação.
Mas é, Senhores, sob outro
aspecto que importa considerar este homem extraordinário para avaliar a missão
da sua escola, e saber qual transformação o aparecimento dela veio produzir na
arte.
Na literatura dos árcades,
como nas literaturas de época de D. João III e da época de Augusto; a poesia
tinha sido essencialmente cortesã, aristocrática, altiva. Os pastores da
Arcádia nunca assistiram aos mais sublimes espetáculos do universo, nunca
sentiram no coração essas paixões violentas que devoram as existências. Que
sabiam eles dos campos de batalha, das sedições, dos grandes crimes e das
grandes virtudes? Eles ignoravam o que são lágrimas de desterro, o que são
contentamentos de tornar a ter Pátria. Ódios, fanatismos Políticos, ânsia de
glória popular, ambições, misérias humanas, não existiam para eles. Os mares e
os seus terrores, as solidões profundas das serranias, o ruído das torrentes, o
sibilar dos ventos por gandras bravias, não imaginavam o que fosse. As procelas
enfim da natureza, e as mais terríveis ainda do espírito em que parece
deleitar-se o poeta deste século grave e triste, porque o converteram à
melancolia e ao cogitar profundo os seus destinos solenes — tudo isso era
alheio à suave existência dos bons árcades. Sacerdotes, magistrados, e
servidores do estado, o seu monte Menalo era uma sala adornada de sedas e rases;
a sua lira ou rabil uma pena muitas vezes dourada; as suas inspirações uma
vasta erudição. Assim os afetos e imagens dos seus poemas vacilavam entre a
frieza e trivialidade, e a exageração e mentira — porque para eles as paixões e
a natureza estavam nos livros. Os livros foram o seu universo.
Bocage porém não era árcade.
Era um homem do povo que alimentava no espírito todas as paixões violentas, e
muitas vezes frenéticas e desregradas do vulgo; e como o vulgo, ajuntava a
feios vícios nobres e generosas virtudes. Era o trovador que improvisava os
seus mais admiráveis versos no meio das multidões, à luz do sol ou dos astros
da noite, nas orgias das cidades, nas festas campestres — em todos os lugares,
a todas as horas. Depois de Camões, Bocage foi o nosso primeiro poeta popular;
como Camões, foi pobre, foi criminoso, e foi malfadado; adormeceu, como ele,
muitas vezes no balouçar das vagas do oceano, e como ele orvalhou de lágrimas o
pão do desterro, e veio morrer na Pátria sobre a enxerga da miséria. Semelhante
ao inferno do Evangelho passou pela terra abandonado, pobre, nu; mas como os
antigos romeiros trovadores, alegrou ou comoveu os ânimos das classes não
privilegiadas, às quais três séculos tinham feito esquecer que a poesia era
também e principalmente para elas.
Bocage é o tipo mais
perfeito da sua escola, e de feito devia sê-lo. Ela popularizou a arte, porque
poetou principalmente para o povo, e embalou ao mesmo tempo com as melodias da
linguagem, com o sonoro do metro, essas almas rudes mais atentas à harmonia da
forma que ao poético do pensamento.
Feita assim a poesia plebeia,
duas consequências deviam seguir-se desse passo gigante — a liberdade literária
e o aparecimento do teatro. A poesia popular rejeita como o povo, quando começa
a pensar e deixa de querer, todas as leis que se fundam em autoridade ou
tradição e não em conveniências; e o drama é a forma mais completa da arte
quando esta se faz burguesa. Não aconteceu todavia assim: a razão disso é óbvia.
A revolução literária que a
geração atual intentou e concluiu, não foi instinto: foi resultado de largas e
profundas cogitações; veio com as revoluções sociais, e explica-se pelo mesmo
pensamento destas. Mas nem Bocage, nem os poetas que o imitavam ou seguiam suas
doutrinas, se doutrinas havia nessa escola, curavam d'averiguar teorias
estéticas; porque os tempos da grave discussão ainda não eram vindos. Poetas
inspirados deixavam-se ir ao som das suas inspirações, viviam numa espécie
d'excitamento intelectual; o estro,
em que tantas vezes falam, era uma realidade, e o improviso a forma comum em
que davam vulto aos seus pensamentos e afetos. Esses engenhos ardentes
respiravam numa atmosfera de entusiasmo, de ebriedade poética. Semelhantes à avezinha
que solta o seu gorjeio como o aprendeu da natureza e do gorjeio paterno, eles,
no seu poetar espontâneo, aceitavam sem exame as regras que lhe ensinara a
Arcádia. E que podiam fazer os pobres poetas peões senão curvar a cabeça ao
voto dos mui eruditos e cortesãos pastores do monte Menalo?
Por isso a escola bocagiana
preparou só metade da revolução artística: trouxe a poesia dos corrilhos e
salões aristocráticos para a praça pública; mas não a fez nacional. Esta
dificultosa empresa estava em grande parte guardada para um poeta tão romano em
intenções e desejos, quanto português na índole do seu engenho. Francisco
Manuel foi quem acabou o que Bocage começara, completando pela nacionalidade o plebeísmo
da arte. Feito isto, seguia-se a revolução — e um poeta mancebo, desterrado
como Francisco Manuel, rasgou a bandeira romana e hasteou a portuguesa. Os
poemas — D. Branca e Camões —foram o sinal da revolta. As tradições da Arcádia
estavam irremissivelmente condenadas.
Foi esse incompleto da
escola elmanista que impediu nascesse no meio dela um teatro original. Deste
houvera sido o fundador o Sr. Sebastião Xavier Botelho, se as suas tendências,
o seu agudo engenho, e contínua aplicação a semelhante gênero de literatura
fossem ajudados e acompanhados pelo espírito da época, e pelo caráter da escola
a que pertencia. Debalde com a paciência e tenacidade de poeta, que são as
maiores deste mundo, não levantou ele mão de uma empresa que era impossível
levar a cabo, e em que tinha ficado vencido o incansável Manuel de Figueiredo e
Garção, o poeta da Arcádia. A nacionalidade não existia ainda, e nacionalidade
e teatro não há separá-los. O teatro é para as multidões, e o povo não entende
senão quem lhe fala na sua linguagem e sobre as suas coisas; das suas tradições
e crenças, ou das suas paixões e da sua vida atual.
Assim, com a lógica do
gênio, o Sr. Botelho vira qual era a consequência da revolução literária para
que ele contribuía; conhecera que feita popular a poesia, e tirada dos
aposentos de senhores e poderosos, ou do seio das academias para ser lançada no
mundo — porque ela é do mundo, devia tomar a forma mais adequada aos seus novos
destinos; mas não viu, porque não podia ultrapassar as ideias do seu tempo, que
a transição era incompleta. Foi por isso que se enganou nos meios, e pensou que
trazendo à nossa cena as sublimes poesias líricas, épicas, e elegíacas,
chamadas tragédias de Racine, e as dissertações dialogadas de filosofia incrédula,
chamadas tragédias de Voltaire, o teatro ressurgiria; mas o teatro deixou-se
ficar morto, porque não era a voz da individualidade nacional, que o revocava à
vida.
Eis aqui, Senhores, a luz a
que eu vejo a escola literária, a que pertenceu o Sr. Botelho no primeiro
período da sua vida intelectual, e como me parece deve ser julgado ele próprio
nas obras do seu engenho. A essa escola cabe um honrado lugar na história do
progresso humano, ao Sr. Botelho toca especialmente o ter sentido, ou antes
adivinhado, que, tornada popular a poesia, devia o drama vir a ser a sua mais
completa expressão. Se não logrou seus desejos, segredo foi de cima. Não quis
Deus que essa mente gigante viesse ajudar-nos a evangelizar a nova religião da
arte com a eloquência da palavra, e com a mais veemente ainda, de obras dignas
da imortalidade.
Vistes, Senhores, o nosso
falecido consócio — lidando por honrar as letras portuguesas, e restaurar o
teatro; viste-lo consagrando à poesia os anos próprios dela porque são os do
imaginar; vê-lo-eis agora aplicando na idade madura a meditação, a energia do
seu vigoroso talento, e a experiência alcançada no serviço da Pátria, a estudos
positivos, ao desenvolvimento das mais graves questões sociais. O poeta
afetuoso, delicado, harmonioso, converteu esse engenho de que a natureza tão
prodigamente o dotara, à filosofia política, e nesta nova carreira do mundo
positivo, quase posso dizer, escureceu a reputação que anteriormente adquirira
no mundo da idealidade.
Foi na sua demorada
residência na banda oriental das nossas desprezadas colônias africanas, como
governador de Moçambique e dos vastos territórios adjacentes, que o Sr. Botelho
coligiu os apontamentos e notícias para a sua Memória estatística sobre os domínios
portugueses na África Oriental. Juiz incompetente, nada direi, Senhores, quanto
à matéria do livro: escrito por um homem da capacidade do Sr. Botelho, e talvez
em grande parte naquelas mesmas províncias, fácil é de supor qual seja o seu
valor intrínseco. Violentamente acometida a obra em um dos principais periódicos
literários de Inglaterra, a Revista de Edimburgo, tal e tão cerrada de razões e
provas foi a resposta do Sr. Botelho, que não houve mais replicar, não sei se
com quebra do orgulho inglês. Acerca da doutrina do livro, é esta em meu
entender a mais cabal defensão.
O que porém, naquele
precioso volume chega a causar uma dessas invejas que não desonram, porque são
nobres e honestas, é o estilo e a linguagem dele. Tão sua tinha feito o Sr.
Botelho esta formosa língua portuguesa, tão elegante e fluente é o seu
descrever e narrar, que dificultosamente lhe levarão vantagem os nossos
principais prosadores. Há no livro do Sr. Botelho uma circunstância que muitos
têm notado: páginas inteiras das relações dos naufrágios, principalmente das
que escreveu o célebre Diogo do Couto, se acham aí reproduzidas textualmente.
Estas páginas, o mais exercitado leitor do Couto não será capaz de as
distinguir entre as do nosso ilustre consócio, tão irmão-gêmeo é o seu estilo e
linguagem com os daquele admirável historiador. Ou esse aparente plagiato fosse
uma prova incontestável, que o Sr. Botelho nos quisesse dar, de que o seu
talento e saber o igualavam com os nossos melhores clássicos, ou fossem
reminiscências involuntárias (que não precisava ele d'alheios haveres para ser
abastado) é indubitável que tal circunstância basta para caracterizar a alteza
a que chegara como prosador aquele de quem como poeta dissera Bocage:
O solene idioma, o tom dos numes,
A voz que longe vai, que longe sobe,
Que soa além do mundo, além dos tempos.
A voz que longe vai, que longe sobe,
Que soa além do mundo, além dos tempos.
Esta importante Memoria foi
coordenada e concluída no período que discorreu desde 1828 até 1833, em que o
Sr. Botelho esteve inteiramente afastado dos negócios públicos. Precedeu pois a
sua composição aos opúsculos Políticos do nosso falecido consócio, por isso a
mencionei primeiramente. Estes opúsculos são, a Carta a Sua Majestade I. o
Duque de Bragança, impressa em Londres em 1833, e as Reflexões Políticas
publicadas sucessivamente no seguinte ano. Escritos com a singeleza e sincera
liberdade de homem que sentia bater dentro do peito um coração português, esses
opúsculos são, literalmente considerados, uma nova coroa para o Sr. Botelho
pela gravidade do estilo e pelo pensar profundo que neles transluz. Versam
sobre importantes sucessos da época em que foram publicados. Nesse tempo de
paixões violentíssimas, tais escritos pareceram talvez revelar em seu autor
demasiado apego às coisas do passado, e ainda hoje assim pareceram a muitos.
Todavia, confesso-vos, Senhores, que não vejo eu aí senão novos motivos de
venerar a memória do nosso ilustre consócio, e de admirar a sua consumada
prudência, e o seu amor de Pátria. É um filho extremoso que treme e desmaia
vendo aplicar a seu pai velho e inferno, medicina violenta, que pode salvá-lo
ou arremessá-lo ao túmulo. E quem ousaria condenar receios e hesitações de um
filho, nesse arriscado momento?
A época de 1833 foi a única
época revolucionária porque tem passado Portugal, neste século. Nem antes, nem
depois, quadra tal epíteto aos sucessos Políticos do nosso país; porque só
então foi substituída a vida interina da sociedade por uma nova existência. As
forças sociais antigas desapareceram para dar lugar a novas forças;
destruíram-se classes; criaram-se novos interesses, que substituíram os que se
aniquilaram: os elementos Políticos mudaram de situação. — Podia esta mudança
fazer-se lentamente e sem convulsões dolorosas, ou cumpria que a revolução
fosse rápida e enérgica? Nem saber, nem vontade tenho eu para o resolver. O Sr.
Botelho julgou que o mais conveniente método era o primeiro; disse-o
sinceramente, e procurou prová-lo. Eis a substância do que nesses opúsculos
pode parecer menos progressivo a esses cujo espírito vai após o futuro. Mas, na
verdade, nem um só dos grandes princípios de reforma, que então se converteram
em fatos, foi combatido pelo Sr. Botelho. A questão que ele tratou era a do
tempo, e era a prudência quem movia a sua pena. As diligências para conter o
rápido desabar das velhas instituições e costumes, era dever dos homens, cuja
idade grave e capacidade extraordinária abonava d'experimentados. Inquieto e
ardente é por natureza o espírito da mocidade neste século de grandes ideias e
de grandes transformações. Aos velhos, aos que, melhor que nós mancebos,
conheceram a sociedade que expirou, incumbe apontar-nos o que ela tinha
respeitável e bom, e o que há em nossas opiniões exagerado ou perigoso, e a nós
incumbe escutá-los com respeito. Esses homens falam-nos com a mão sobre o
coração, porque entre eles e o julgamento de Deus, e da posteridade medeia só a
grossura de uma loisa. Eles nos admoestam encostados à borda da sepultura, e
raro será que até lá a hipocrisia ou a lembrança de mesquinhos proveitos
acompanhem os que viveram sem mancha uma larga vida. Solenes e venerandas julgo
eu as palavras da velhice, porque a velhice é uma espécie de sacerdócio, e
quando o ancião se ergue para soltar um brado de reprovação, se escutarmos esse
brado, ele poderá contribuir mais para o verdadeiro progresso do que se os
últimos homens da sociedade extinta saudassem covardemente a vitória das novas
ideias; se caminhando para a morte, imitassem os gladiadores de Roma, nos
circenses do triunfo, que nesse momento supremo saudavam os Césares vencedores
com aquelas horríveis palavras: "Salve, Cezar! Os que vão morrer te
saúdam!" Arriscar-se-ia com isso a ser despenho o nosso progresso, e ao
despenho segue-se ou o perecer no abismo, ou um doloroso retrogradar.
Considerados a esta luz, os
opúsculos Políticos do Sr. Botelho não são mais que o complemento de dilatados
trabalhos encaminhados constantemente ao aperfeiçoamento intelectual dos seus compatrícios.
Poeta na mocidade, bem mereceu da arte: historiador e estadista na idade grave,
mais bem mereceu da Pátria por escritos próprios dessa época da vida. Nós que o
tratamos, que o vimos no meio de nós, que com saudade nos lembramos do seu
mérito, fazemos-lhe inteira justiça. Far-lha-á também a posteridade — e mais
completa; porque se como homem da arte e da ciência tão honrado nome deixou
entre nós, que será para o mundo, que além dessas razões de lhe venerar as
cinzas, tem a rica herança dos exemplos de virtudes domésticas, de amor de
Pátria, de serviços ao estado, enfim de um nobre proceder — como homem, como
pai de Família, e como cidadão? Os vindouros, que não nós, porão o cimo e
remate ao formoso monumento da sua glória. — Disse.
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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1842, e publicado em: Opúsculos, tomo IX, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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