Foi Eça de Queirós, antes de tudo, a
realização viva daquele simples e comovente conceito que um dia vi ornar, como
a mais bela e a mais suave das apoteoses, um modesto pedestal de sábio: É do coração e não do cérebro que nascem os
grandes pensamentos.
Na sua vida de funcionário, ofuscada
pela cintilação candente da sua existência literária, há contudo traços desta
nítida psicologia que jamais o biógrafo deverá deixar de examinar se quiser que
a figura sublime do romancista ressalte, vibrante, em toda a pujança dos seus
múltiplos aspectos de criatura verdadeiramente excepcional. Sabe-se quanto,
durante a temporada de Paris, se tornou proverbial a excelsa bondade da sua
alma e a nobreza estrema do seu coração. Aventureiros e boêmios que o
procuravam no consulado encontravam invariavelmente nele um protetor amigo.
A linha severa e austera daquela estranha
figura de diplomata rígido na aparência, gelado no olhar, irônico, quase
sarcástico no sorriso, não conseguiu nunca perturbar nenhum dos portugueses
que, perdidos na imensidade da confusa Cosmópolis, a ele recorriam em desespero
de causa. Chegavam a procurá-lo pobres espanhóis, italianos, brasileiros, criaturas
de acaso surdidas dos confins da Armênia e da Bulgária, russos, romenos,
judeus, turcos de origem vaga e mais incerta que a cor dos andrajos que
vestiam... Eça de Queirós, diz um cronista do tempo: “quando aparecia algum
necessitado tentava reagir, queria negar-se, mas por fim o seu coração falava
mais alto, e depois de dar uma pequena reprimenda ao intruso, se era
estrangeiro, metia a mão ao bolso e tirava sempre um ou dois francos para o
desgraçado, que nunca em vão implorava uma esmola na sua frente.”
Era de uma sensibilidade de violeta
aquele espírito robusto e fecundo como um roble secular. Exemplar chefe de
família — a maior e mais inestimável de todas as qualidades do homem — atormentava-o,
num indizível anseio, a paixão violenta da cor e do perfume. Adorava as crianças,
as aves, as coisas frágeis e os grandes silêncios claros das paisagens
tranquilas: tinha de ser fundamentalmente bom. Na sua tebaida de Neuilly, sobre
a mesa de trabalho, pendiam sempre algumas flores discretas. Era legionário da Honra;
mais vezes porém lhe sorria na lapela uma violeta ou uma rosa que a fita rubra
da Legião.
Há na sua vida um fato que ficou quase
ignorado e tem todo o sabor das coisas inéditas, porque só uma vez encontro, entre
a extensa cópia de notas e informações biográficas de Eça de Queirós, uma leve
referência ao episódio feita pela pena amiga de Eduardo Prado. Transcrevo, textualmente:
“A Havana, para onde foi mandado como
cônsul, não foi para ele um paraíso. Cuba não tem uma literatura impressionante
e a paisagem tropical não é animada pelas grandes recordações clássicas da
História e da Arte. É uma estufa verdejante que o estrangeiro não chega a amar,
sempre extenuado de calor e da apreensão constante de uma morte inglória pelo vômito
negro. Ali não fez obra de artista e, em tudo quanto mais tarde escreveu Eça de
Queirós, não se vê lembrança daquele pesadelo de palmeiras e orquídeas. Teve porém
a rara sorte de iniciar a sua prática dos homens e das coisas por uma obra de
realidade, de honra e de amor.
Florescia então em Cuba o comércio dos
chineses escravizados, nominalmente portugueses porque era do porto português
de Macau que eles eram levados para os infernos de verdura, de calor e de
sofrimento que eram para eles, as plantações de açúcar da Ilha. Foi Eça de Queirós
nomeado cônsul para regular, inspecionar e, portanto, manter esse comércio. Por
uma disposição fiscal da lei consular, esse comércio era altamente lucrativo
para o cônsul. Aconteceu porém que o cônsul foi Eça de Queirós, que começou uma
campanha oficial contra o comércio dos chineses, que foi, finalmente, abolido.
Depois deste ato de desinteresse, partiu para a terra proverbial do interesse. Correu
os Estados Unidos...”
Eduardo Prado fixou assim uma nota, e
das mais vibrantes, da extraordinária candura de alma desse homem bom e suave
como Cristo. No que erra porém Eduardo Prado é na convicção expressa de que o
exílio de Cuba ficasse sem influência na obra do artista. O episódio dos
chineses escravizados constituiu nem mais nem menos que a remota sugestão do Mandarim, de que já em 1880 se publicava
a 2ª edição. É flagrante o paralelo. E senão, peguem no livro, analisem aquele
Teodoro, o enguiço, como lhe chamava
a esplêndida D. Augusta, — burocrata magro, que entrava sempre as portas com o
pé direito, tremia dos ratos e corcovava... Teodoro não é mais que uma
autocaricatura felicíssima de humorismo. Eça tinha com efeito o espírito constantemente
nublado de vagas superstições; entrava com o pé direito em casa dos amigos e
desculpava-se do ridículo desse gesto ponderando que nos devíamos submeter, sem
refletir, ao impulso misterioso das "Coisas"...
A sua situação de cônsul na Havana
assemelhou-se num dado instante à do homem diabolicamente tentado a matar o
Mandarim que não conhece, que o não interessa, e que lá longe, no fundo da
China, ante a paisagem remota e diáfana de uma tarde serena entretêm os longos
ócios de velho na tarefa pueril de soltar às brisas o seu papagaio de papel. E
matá-lo comodamente, sem um esforço, sem uma repugnância, com a consoladora
certeza de lhe herdar os copiosos bens...
Eça, cônsul de Portugal em Cuba,
poderia ter feito ali uma fortuna imensa se a bondade infinita da sua alma lhe não
tivesse abafado no espírito o gérmen satânico da cobiça. Não, nunca! Ele
repudiava vigorosamente a suntuosidade ao preço horrível por que lha ofereciam
os fazendeiros da ilha. O seu coração de santo, onde havia sempre uma benção
para todas as misérias e um protesto para todas as injustiças, como nos seus
lábios um sorriso irônico de desdém para todos os ridículos, não se deixou
vencer pela tentação. Podia calar-se, não auxiliando a infâmia. Fez mais:
protestou. E na prosa oficial dos seus relatórios consulares insistiu
longamente sobre a desgraça dos pobres homens que trabalhavam como escravos, de
sol a sol, no inferno dos engenhos, para que mais ouro se amontoasse nos cofres
dos fazendeiros bestiais. Tomando decididamente partido ao lado do “china”,
chegava nos seus ofícios para o ministério dos estrangeiros a justificar-lhes
os crimes:
“Sucede com efeito às vezes, escrevia
Eça de Queirós ao ministro em 17 de maio de 1873, que nos engenhos há assassinatos
misteriosos de mayoraes, a que os “chinas”
não são alheios; mas estes excessos não se podem filiar na índole, porque vêm
da desesperação. À desesperação se deve atribuir também, ainda que há neste
fato muita influência das superstições religiosas, os numerosos suicídios de
colonos. Assim é, excelentíssimo senhor, que em todos os exemplos da servidão
humana, eu não conheço, a não ser o fellah
no Egito e na Núbia, ninguém mais infeliz que o coolie. E se a justiça não é uma mera categoria de razão, a
condição dos colonos na América Central não é compatível com a dignidade desta
época.”
Deste episódio que detalhada e
documentadamente hei de referir um dia, nasceu o Mandarim. Não é original, bem sei, a forma simbólica por que o
problema foi posto em equação. A literatura francesa forneceu-lhe a fórmula da pergunta,
submetida pelo seu enorme talento à colorida análise do romance; foi porém no
seu nobilíssimo procedimento de homem de coração que encontrou a resposta: Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as
nossas mãos: nunca mates o Mandarim!
---
HERMANO
NEVES
"Eça
de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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