6/21/2019

Eça de Queirós e Flaubert (Resenha)



Eça de Queirós e Flaubert

Conservam dele uma piedosa lembrança os amigos íntimos, deslumbrados ainda pelo fulgor do seu espírito tão vivo e tão suave, tão irônico e tão delicado, saudosos eternamente desse companheiro inolvidável, cuja conversa, dizem, criava obras-primas tão belas como as suas melhores páginas. Mas o que não é já uma comovente e estreita veneração de devotos familiares, é esta unânime simpatia da gente nova, que nos seus livros parece ter aprendido a admirar a beleza das coisas, a anotar os ridículos alheios, a tornar mais sutis as suas sensações de arte e até, para muitos, a talhar figurinos de esnobes na elegância desdenhosa dos seus tipos aristocráticos.

Eça de Queirós não era um escritor popular, como também nunca o foi o seu grande mestre Flaubert. Não tinha o estilo retórico, a emoção fácil, a estrutura poderosamente vulgar, a imaginação violenta dos autores prediletos das multidões. O seu público, excetuando alguns mocinhos na crise da puberdade, que vão procurar a página célebre do Primo Basílio, é um público vasto mas escolhido, de artistas, de homens de letras, de homens de gosto.

A Língua Portuguesa sofreu, no século XIX, sobretudo pela influência de Eça de Queirós, uma renovação profunda de ritmos e de expressões. A linguagem de Castilho, tão fria e tão fastienta de metáforas acadêmicas, e a dura, cadenciada e rígida prosa de Herculano, já tinham quebrado, ainda que de um modo imperfeito, os moldes clássicos. Garrett, que, na nossa trilogia romântica, foi o mais artista e mais maleável, criou uma linguagem leve, um pouco afetada, um pouco diluída e prolixa, por vezes, mas duma correntia limpidez e graça, que mais tarde, em Júlio Diniz, degenera, quase sempre, num insuportável ramerrão familiar. Camilo deixou páginas maravilhosas, mas a própria riqueza do vocabulário o sufocava, muitas vezes, numa abundância enorme e confusa.

Eça de Queirós, depois dum extravagante e curiosíssimo período de ensaios, cria uma linguagem absolutamente nova na literatura portuguesa. As Prosas Bárbaras, a Campanha Alegre, a sua colaboração de O mistério da Estrada de Sintra, com o seu lirismo convulso, as suas guinadas de sarcasmo e fantasia lúgubre, os seus ritmos claudicantes, a sua prosa turva e irregular, se não deixam prever o sóbrio e harmonioso discípulo de Flaubert, representam já o esforço duma imaginação bizarra, indisciplinada, esfuziante, imprevista, em cuja lucidez há um toque de ironia e de loucura, de nevrose e melancolia. O Mandarim é talvez a sua obra-prima, escrita quase aos quarenta anos. Mas já quinze anos antes, nas fantasias das Prosas Bárbaras, se encontram, imperfeitas, mal esboçadas ainda, as supremas qualidades de artista reveladas naquele conto excepcionalmente belo.

A segunda maneira da prosa de Eça de Queirós caracteriza-se principalmente no Crime do Padre Amaro, em O Primo Basílio e em Os Maias. A tumultuosa espontaneidade dos primeiros anos de escritor disciplina-se. O que o seu estilo perde em exuberância, adquire-o em vigor. Sente-se nesses livros, principalmente, a influência de Flaubert. A paisagem, o desenho dos personagens, a narrativa, os detalhes, os próprios entrechos derivam diretamente do autor de Madame Bovary, da Educação Sentimental, da Lenda de S. Julião o Hospitaleiro e da Tentação de Santo Antônio.

Reconhece-se sem dificuldade, numa simples leitura superficial, a influência exercida por estas obras no Primo Basílio, em Os Maias, no São Cristóvão e no Santo Onofre. Para exemplos, basta lembrar a semelhança dos quadros de Os Maias e da Educação Sentimental. Em ambos se pronunciam as frases: Meus senhores, ouçam-me, eu tenho experiência! — A religião é um freio! —É como corpo de mulher! Em ambos há a ideia de fundar um jornal. E ainda os episódios nas duas corridas de cavalos; os dois bailes de máscaras, a propósito dos quais se invoca o testemunho dum “urso” e duma “tirolesas”; Cisy e Dâmaso, um tendo o cartão no chapéu, outro um véu; a avó de Cisy e o tio do Dâmaso, que morrem; ambos eles tendo um ideal de elegâncias; os dois duelos; Le Flambart e a Corneta do Diabo; o agradecer da gorjeta: — Merci, Monseigneur! que Eça de Queirós traduziu no Primo Basílio por: — Muito obrigado, senhor conde! — Fumichon e o França do Crime do Padre Amaro, querendo estrangular Proudhon, depois de terem tomado o seu café e os seus licores... “E estrangulava. Depois do conhaque, o França era uma fera”. Il l’étranglerait. Après les liqueurs, surtout, Fumichon ne se connaissait plus.

Estas inferências, num escritor medíocre, levariam ao plagiato. Um grande escritor, como Eça de Queirós, liberta-se do que há de mesquinho nelas, pela brilhantíssima originalidade das suas obras.

Numa carta a Teófilo Braga, publicada nos Quarenta anos de vida literária, Eça de Queirós diz, pouco mais ou menos, agradecendo uma crítica sobre O Primo Basílio: “Sinto que possuo a técnica de romancista, como ninguém, mas faltam-me os assuntos”. Não sei se algum crítico, numa intenção malévola, como a que filiou absurdamente a inspiração do Crime do Padre Amaro na Faute de l'abbé Mouret, se lembrou alguma vez de acentuar a influência de Flaubert não só na orientação da escola e processos de estilo, mas nas pequeninas cópias de minúcias e frases. Era fácil, ainda que injusto, explorar essas imitações superficiais, que em nada atenuam a originalidade dos seus romances.

Que importa a semelhança de Madame Bovary e de O Primo Basílio, se Eça de Queirós nos evoca, por uma forma tão perfeita, o meio lisboeta, os seus tipos, as suas cenas, os episódios familiares e da rua? A criada Juliana é uma figura que nunca mais esquece; e o seu relevo é talvez mais vivo, mais impressivo ainda que o do conselheiro Acácio, do Sebastião e do Paula dos móveis. Em Os Maias também a série dos quadros, embora semelhantes a alguns da Educação Sentimental, tem esse acentuado cunho alfacinha que é uma das caraterísticas e, ao mesmo tempo, uma acanhada limitação da sua obra, quando o artista troca a ampla visão dos sentimentos humanos pela troça de cronista desenfastiado, em caricaturas efêmeras.

Flaubert escrevia os seus livros entremeando as obras de imaginação com as de observação. Eça de Queirós assim fez, em parte. Nos livros de imaginação tem ele, talvez, as páginas mais belas e mais duradouras da sua obra. O Mandarim e A Relíquia são, na prosa portuguesa, duas obras-primas. Há, nas páginas de pura imaginação, um brilho de iluminura, uma suave e festiva riqueza de ritmo e de cor, um relevo incomparável, que lembram a frase de Gautier caracterizando a prosa de Hugo, “a um tempo pintada e esculpida”. Quem esquecerá jamais, depois de a ler uma vez, essa cena do pavilhão de Madame Camiloff, em que, no ar perfumado e cálido, perpassa como que o arrepio sutil dum desmaio amoroso?...

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CÂMARA REIS
"Eça de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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