Eça
de Queirós e Flaubert
Conservam dele uma piedosa lembrança
os amigos íntimos, deslumbrados ainda pelo fulgor do seu espírito tão vivo e
tão suave, tão irônico e tão delicado, saudosos eternamente desse companheiro
inolvidável, cuja conversa, dizem, criava obras-primas tão belas como as suas
melhores páginas. Mas o que não é já uma comovente e estreita veneração de
devotos familiares, é esta unânime simpatia da gente nova, que nos seus livros
parece ter aprendido a admirar a beleza das coisas, a anotar os ridículos
alheios, a tornar mais sutis as suas sensações de arte e até, para muitos, a
talhar figurinos de esnobes na elegância desdenhosa dos seus tipos
aristocráticos.
Eça de Queirós não era um escritor
popular, como também nunca o foi o seu grande mestre Flaubert. Não tinha o
estilo retórico, a emoção fácil, a estrutura poderosamente vulgar, a imaginação
violenta dos autores prediletos das multidões. O seu público, excetuando alguns
mocinhos na crise da puberdade, que vão procurar a página célebre do Primo Basílio, é um público vasto mas
escolhido, de artistas, de homens de letras, de homens de gosto.
A Língua Portuguesa sofreu, no século
XIX, sobretudo pela influência de Eça de Queirós, uma renovação profunda de
ritmos e de expressões. A linguagem de Castilho, tão fria e tão fastienta de
metáforas acadêmicas, e a dura, cadenciada e rígida prosa de Herculano, já
tinham quebrado, ainda que de um modo imperfeito, os moldes clássicos. Garrett,
que, na nossa trilogia romântica, foi o mais artista e mais maleável, criou uma
linguagem leve, um pouco afetada, um pouco diluída e prolixa, por vezes, mas
duma correntia limpidez e graça, que mais tarde, em Júlio Diniz, degenera, quase
sempre, num insuportável ramerrão familiar. Camilo deixou páginas maravilhosas,
mas a própria riqueza do vocabulário o sufocava, muitas vezes, numa abundância
enorme e confusa.
Eça de Queirós, depois dum extravagante
e curiosíssimo período de ensaios, cria uma linguagem absolutamente nova na
literatura portuguesa. As Prosas Bárbaras,
a Campanha Alegre, a sua colaboração
de O mistério da Estrada de Sintra,
com o seu lirismo convulso, as suas guinadas de sarcasmo e fantasia lúgubre, os
seus ritmos claudicantes, a sua prosa turva e irregular, se não deixam prever o
sóbrio e harmonioso discípulo de Flaubert, representam já o esforço duma
imaginação bizarra, indisciplinada, esfuziante, imprevista, em cuja lucidez há um
toque de ironia e de loucura, de nevrose e melancolia. O Mandarim é talvez a sua obra-prima, escrita quase aos quarenta
anos. Mas já quinze anos antes, nas fantasias das Prosas Bárbaras, se encontram, imperfeitas, mal esboçadas ainda, as
supremas qualidades de artista reveladas naquele conto excepcionalmente belo.
A segunda maneira da prosa de Eça de Queirós
caracteriza-se principalmente no Crime do
Padre Amaro, em O Primo Basílio e em Os Maias. A tumultuosa espontaneidade dos primeiros anos de
escritor disciplina-se. O que o seu estilo perde em exuberância, adquire-o em
vigor. Sente-se nesses livros, principalmente, a influência de Flaubert. A paisagem,
o desenho dos personagens, a narrativa, os detalhes, os próprios entrechos
derivam diretamente do autor de Madame
Bovary, da Educação Sentimental,
da Lenda de S. Julião o Hospitaleiro e da Tentação de Santo Antônio.
Reconhece-se sem dificuldade, numa
simples leitura superficial, a influência exercida por estas obras no Primo Basílio, em Os Maias, no São Cristóvão
e no Santo Onofre. Para exemplos,
basta lembrar a semelhança dos quadros de Os
Maias e da Educação Sentimental.
Em ambos se pronunciam as frases: Meus
senhores, ouçam-me, eu tenho experiência! — A religião é um freio! —É como
corpo de mulher! Em ambos há a ideia de fundar um jornal. E ainda os episódios
nas duas corridas de cavalos; os dois bailes de máscaras, a propósito dos quais
se invoca o testemunho dum “urso” e duma “tirolesas”; Cisy e Dâmaso, um tendo o
cartão no chapéu, outro um véu; a avó de Cisy e o tio do Dâmaso, que morrem;
ambos eles tendo um ideal de elegâncias; os dois duelos; Le Flambart e a Corneta do
Diabo; o agradecer da gorjeta: — Merci,
Monseigneur! que Eça de Queirós traduziu no Primo Basílio por: — Muito
obrigado, senhor conde! — Fumichon e o França do Crime do Padre Amaro, querendo estrangular Proudhon, depois de
terem tomado o seu café e os seus licores... “E estrangulava. Depois do
conhaque, o França era uma fera”. Il
l’étranglerait. Après les liqueurs, surtout, Fumichon ne se connaissait plus.
Estas inferências, num escritor
medíocre, levariam ao plagiato. Um grande escritor, como Eça de Queirós, liberta-se
do que há de mesquinho nelas, pela brilhantíssima originalidade das suas obras.
Numa carta a Teófilo Braga, publicada
nos Quarenta anos de vida literária,
Eça de Queirós diz, pouco mais ou menos, agradecendo uma crítica sobre O Primo
Basílio: “Sinto que possuo a técnica de romancista, como ninguém, mas faltam-me
os assuntos”. Não sei se algum crítico, numa intenção malévola, como a que
filiou absurdamente a inspiração do Crime
do Padre Amaro na Faute de l'abbé
Mouret, se lembrou alguma vez de acentuar a influência de Flaubert não só
na orientação da escola e processos de estilo, mas nas pequeninas cópias de
minúcias e frases. Era fácil, ainda que injusto, explorar essas imitações
superficiais, que em nada atenuam a originalidade dos seus romances.
Que importa a semelhança de Madame Bovary e de O Primo Basílio, se Eça de Queirós nos evoca, por uma forma tão
perfeita, o meio lisboeta, os seus tipos, as suas cenas, os episódios familiares
e da rua? A criada Juliana é uma figura que nunca mais esquece; e o seu relevo
é talvez mais vivo, mais impressivo ainda que o do conselheiro Acácio, do Sebastião
e do Paula dos móveis. Em Os Maias
também a série dos quadros, embora semelhantes a alguns da Educação Sentimental, tem esse acentuado cunho alfacinha que é uma
das caraterísticas e, ao mesmo tempo, uma acanhada limitação da sua obra,
quando o artista troca a ampla visão dos sentimentos humanos pela troça de cronista
desenfastiado, em caricaturas efêmeras.
Flaubert escrevia os seus livros
entremeando as obras de imaginação com as de observação. Eça de Queirós assim fez,
em parte. Nos livros de imaginação tem ele, talvez, as páginas mais belas e
mais duradouras da sua obra. O Mandarim
e A Relíquia são, na prosa
portuguesa, duas obras-primas. Há, nas páginas de pura imaginação, um brilho de
iluminura, uma suave e festiva riqueza de ritmo e de cor, um relevo
incomparável, que lembram a frase de Gautier caracterizando a prosa de Hugo, “a
um tempo pintada e esculpida”. Quem esquecerá jamais, depois de a ler uma vez,
essa cena do pavilhão de Madame Camiloff, em que, no ar perfumado e cálido,
perpassa como que o arrepio sutil dum desmaio amoroso?...
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CAMARA REYS
"Eça
de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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