6/22/2019

D. Maria Pais, a Ribeirinha (Conto), de Conde de Sabugosa



D. Maria Pais, a Ribeirinha

CAPÍTULO 1
Entre as paixões que agitaram com violência a alma essencialmente medieval de D. Sancho I, a menos atendida decerto por cronistas, historiadores, romancistas e poetas, é a sua sensibilidade amorosa.
E contudo, ao vinco impresso nas páginas da história, pelo filho de D. Afonso Henriques, com a empresa da consolidação da incipiente nacionalidade, manifestada nas suas façanhas guerreiras de defesa e conquista do território; e demonstrada nas suas providências administrativas de povoador, de reedificador e de doador de forais, acrescem outras afirmações notáveis da sua personalidade. De fato a quem folhear os registros do povo português, nessa espécie de Livro da Noa, composto de lendas e tradições, versos dos cancioneiros, indicações dos Nobiliários, e revelações dos Livros de Linhagens, deparam-se vestígios interessantes deixados pelo espírito desse Rei na formação de um rudimento de corte polida, intelectual, e pelo eco dos seus amores repercutidos pelas quebradas do tempo, ou perpetuado nos versos daquele cantar de amigo que lhe é atribuído, e que é a mais arcaica manifestação da balbuciante poesia portuguesa.
Embalaram-no desde tamanino as narrativas das façanhas cometidas pelos homens de armas de seu pai, o gigantesco Ibn Enrik — o terror dos mouros; a história pitoresca da escalada da muralha de Santarém; a da tomada de Lisboa com o auxílio dos cruzados; a da fantasiosa aventura de Giraldo sem-pavor que, envolto em rama verde, subira à atalaia da Torre de Évora, e aí, depois de degolar o mouro que a guardava, tomara gloriosamente a cidade.
Criança ainda, ouvira narrar como seu pai, Afonso Henriques, se apoderara de Serpa, Moura, Alcácer, Eivas; e lembrava-se de o ver, já com setenta e um anos, assenhorear-se de Cezimbra e Palmeia.
Recordava-se de o admirar também, leão doente mas não rendido, (depois de ter fraturado o joelho no ferrolho de Badajoz, quando galopava em socorro dos seus) ir aos combates estendido sobre umas andas, às costas de homens, ou levado em um carro pelos caminhos e charnecas. Foi assim também que ele o vira, já carregado com oitenta e um anos, e triste com o seu aleijão, mas sempre robusto e indômito, sair aos mouros, e ele próprio matar e ferir muitos deles no cerco que Albujaque, Rei de Sevilha, pusera a Santarém.
Ele mesmo D. Sancho, quando ainda Infante, empreendera guerra contra os mouros, no impedimento de seu pai, que nele reconhecia "grande ânimo e partes de bom capitão", e por isso o mandou pelo Alentejo contra o Rei de Sevilha, entrando ali com os seus por Triana, onde a matança foi tanta (diz Duarte Nunes do Leão) que pareciam sangue as águas do Guadalquivir!
Fora depois ferido, na empresa do Miramolim contra Santarém, onde D. Afonso Henriques, com noventa anos (!) ainda veio socorrê-lo.
Depois, já Rei de Portugal, realizou a tomada de Silves, o que lhe deu o título de Rei dos Algarves.
Essa empresa dá medida do seu gênio rude, da sua vontade tenaz, do seu coração generoso.
Corria o ano de 1188, e havia já quatro que ele reinava.
Grande era o seu desejo, como guerreiro cristão, de aceder aos convites que os Papas Urbano III, Gregório VIII e Clemente III, dirigiram aos reis e príncipes fiéis, chamando-os às armas para irem à Santa Cruzada contra Saladino, que na batalha de Tiberíades vencera o Rei de Jerusalém, e se apoderara do Santo Lenho.
O alvoroço lançado no ânimo de um príncipe moço, com essa semente trazida de Roma, alvoroço feito de ímpetos guerreiros, de profundas crenças, e de atração misteriosa das aventuras arriscadas, é difícil de conceber hoje.
Era a inebriante sedução da luta nos campos de batalha, onde as hostes combatiam corpo a corpo, na febre carniceira contra os inimigos da Cruz!
Era a ambição de alcançar um nome glorioso entre os desses chefes, príncipes e capitães, que na Itália, em Flandres, na França, Inglaterra e Alemanha se preparavam para irem, ou por terra em direitura à Síria, onde as cidades e fortalezas da monarquia cristã tinham sido tomadas; ou por mar, nessas armadas que, descendo das brumas do mar do norte, vinham de longada pelos portos de Espanha, e pelas costas de Portugal, em demanda do Mediterrâneo, impacientes por desalojarem os infiéis dos lugares santos.
Era a vitória, a visão encantadora do moço soldado em cuja imaginação fervilhavam as narrativas trazidas pelos primeiros cruzados, e que ansiava por encontrar-se galopando à frente dos homens de armas que seu ilustre pai educara nas batalhas, e dos monges guerreiros, nos campos dessa Terra Santa, roubada outra vez à Cristandade.
Era ainda a fé, a mais poderosa alavanca das ações dos homens da idade média, o sopro febril que abrasava as almas rudes, simples, impulsivas e místicas dos esforçados barões feudais.
Tudo, tudo levava a desejar ardentemente ir também na Santa Cruzada combater os muçulmanos da Síria.
Mas... muçulmanos, e inimigos seus tinha-os aqui ao pé da porta a invadirem-lhe o território, a independência da monarquia ainda na infância, a insultarem, com a sua vizinhança, as crenças dos seus vassalos.
Foi o que lhes significaram os cavaleiros das ordens do Templo, e do Hospital, foi o que lhe expuseram os, fidalgos e burgueses, rogando-lhe que desistisse da intenção.
E o moço Sancho I, guerreiro ardente, caráter arrebatado, mas instintivamente patriota e político, cedendo ao que hoje se chamaria a opinião pública e razão de Estado, reprimiu os ímpetos que o arrastavam à aventura longínqua, e resolveu, aproveitando os preparativos iniciados, continuar aqui na Península as conquistas que no anterior reinado se haviam já estendido pelo Al-Gharb.
Perto de quatro séculos depois, um rei moço também, e nobre, e cavalheiroso, seduzido igualmente pela ambição de combater os inimigos da fé, não resistia aos impulsos do seu ânimo, e atropelando conselhos, vencendo resistências, insubmisso a imposições sensatas, ia doidamente, brilhantemente, aventurosamente, rodeado pela fina flor dos descendentes deste primeiros portugueses, que tinham conquistado o território, suicidar-se nas areias de Alcácer Kibir. O moço Rei D. Sebastião havia de ser destroçado pelos descendentes destes sarracenos, que em Silves foram agora vencidos pelo moço D. Sancho.
É que este tinha no sangue a par da efervescente ânsia dos avós, a reflexão do homem de Estado, o amor do solo ganho com o seu sangue e dos seus companheiros de armas, de que fora dotado o seu glorioso pai, e o tino político que nunca desamparou sua avó, a linda e amorosa Tareja, sempre rainha através da sentimental aventura com o conde galego.
R que a demais tinha, nas fronteiras ainda indecisas do seu reino, a ameaça continuamente perigosa da vizinhança dos mouros, que ora são desalojados, ora recuperam as cidades e praças fortes.
É que não deixando de combater os infiéis, e de servir assim o Deus, que impelia os cristãos para o Oriente, D. Sancho podia alargar os limites dos seus Estados, e firmar a autoridade da monarquia.
Desistiu da empresa no Ultramar, e, para se dirigir ao Algarve, preparou uma esquadra.
Foi então que, na quaresma de 1189, duas frotas de naus, vindas da Frisa, da Dinamarca, da Holanda e de Flandres, arribaram a Lisboa. E fácil foi a D. Sancho (que logo acorreu vindo de Santarém) convencer os chefes a juntarem as suas forças às portuguesas, para irem juntos tomar Silves — a formosa, a opulenta Cheib, uma das mais importantes cidades, e nesse tempo dez vezes superior a Lisboa.
Mandou desde logo como comandante o Conde D. Mendo de Sousa, Mordomo-Mor — o Sousão — como lhe chamavam. D. Sancho partiu depois com a sua gente por terra.
Contava então trinta e cinco anos. Era de elevada estatura, posto que não um gigante, como seu pai. Belo homem, ia soberbamente vestido. Trajava o manto e saia de escarlata vermelha, com que substituiu à moda mais recente, aquela sobreveste, ou cota de armas de holanda com franja de seda verde, e as armas reais na frente e costas, com que El-Rei D. Afonso Henriques entrava em batalha.
Acompanhavam-no os cavaleiros templários e os da Ordem do Hospital, com os seus mantos brancos; e os da Ordem de Aviz, recentemente criada, com os escapulários negros e os capelos.
Precedia o pendão empunhado pelo Alferes-Mór — o signifer regis — Pedro Afonso, seu irmão bastardo, e seguiam-no pelo extenso sertão entre o mato, o grosso do. exército com os pesados petrechos de guerra e os provimentos que iam abastecer o arraial dos sitiantes portugueses: e os cruzados de diversas proveniências que, havia já semanas, tinham começado o assédio.
Nessa campanha, que é um dos belos quadros da nossa guerra de conquista, os Portugueses pelejavam ao lado dos Ingleses, dos Alemães capitaneados por Ludwig, Landgrave da Turíngia, dos Flamengos, dos Franceses, e dos soldados do conde de Brame. A confusão dos trajos, a variedade de línguas, a diferença de costumes e hábitos eram niveladas e igualadas pelo ardor no combate e ânsia na rapina.
Nessa batalha, o Rei de Portugal foi esforçado guerreiro, foi enérgico e violento perante as exigências cruéis e gananciosas dos cruzados; foi ao mesmo tempo clemente e misericordioso para com os vencidos, concedendo, depois de vitorioso, que aos mouros se lhes deixasse as vidas e aos "estrangeiros da frota todas as riquezas".
A ele D. Sancho ficou a cidade de Silves, e o seu título acrescentado com o de Rei do Algarve.
Do seu caráter enérgico, e até rudeza no castigar, restam-nos vestígios (além da lenda que lhe atribui a frieza de arrancar os olhos aos clérigos que seguiram o partido do Bispo seu contendor) na maneira como dominou os excessos dos cruzados ingleses de Roberto Sa-bdvil, e de Ricardo de Cornwil, homens brutais e ferozes que, saltando em Lisboa, começaram a tratar a população como se fosse tornada de assalto, roubando, saqueando, violando as mulheres dos burgueses, dos judeus e dos sarracenos. Fez descer da alcáçova os seus homens e, fechando as portas da cidade, encofrou nas , masmorras setecentos estrangeiros que foram penhor para poder ditar aos chefes as condições de pacificação.
***
Esse homem, porém, rude e feroz no combate era, além dum sábio administrador — como o provou edificando castelos, reconstruindo povoações arrasadas, atraindo estrangeiros para virem povoar e desbravar terrenos incultos, fomentando a vida local, desenvolvendo as regalias regionais — um sentimental, e até mesmo, como vamos ver, um poeta.
Casou ele, tendo pouco mais de vinte anos, com D. Dulce, a quem alguns chamam Aldonça, outros ainda simplesmente em português — Doce, de Aragão. Era ela a filha de D. Ramon de Berenguer, Conde de Barcelona, e de D. Petronilla, filha e herdeira de D. Ramiro de Aragão. E era irmã daquele Afonso II, rei da Catalunha e Aragão, que andou alguns anos no sul da França, que foi poeta em limosino e em francês, e que se julga ter sido um dos primeiros que mandaram colecionar um cancioneiro de versos provençais.
Seria D. Dulce já viúva de Armengal, Conde de Urgel, quando casou com o nosso D. Sancho, como afirmam alguns escritores?
Parece que não. Mas, viúva ou solteira, formosa, levam-nos a crer que era, a fidelidade de D. Sancho nos primeiros anos do seu casamento, a continuidade na série de nove filhos que dela teve, e até o ciúme feroz que dele se apoderou, segundo se infere da lenda, que a esse respeito correu.
Conta-se que induzido pelos murmúrios pérfidos de algumas vozes de invejosos, picados pelo valimento de um mimoso da corte, valente e galanteador, o Rei chegou a suspeitar da fidelidade de sua mulher, a Regina Dulcia, e a manifestar a intenção de castigar os acusados.
Ficou, porém, inconsolável pela sua suspeita, ao reconhecer a inocência dos dois, e pesaroso por ter dado ouvidos a perversos caluniadores.
Dulce de Aragão estava inocente, e não consta mesmo que, usando dos seus encantos, quisesse vingar-se das empresas amorosas do marido.
Efetivamente parece que ainda em vida da Rainha, encetou D. Sancho uma ligação com D. Maria Aires de Fornelos, que depois fez casar com Gil Vaz de Sousa — o Soverosa — para se unir à provocante e apetitosa Ribeirinha, de romântica memória, a quem adiante nos vamos referir.
A Rainha D. Dulce não teve uma grande influência na sua época, e não ficou na história forte vestígio da sua personalidade. Não deixou o rasto luminoso de mundanidades elegantes na corte, com que algumas Rainhas encheram a cena da vida portuguesa: nem a piedosa memória de algumas da sua igualha, como, por exemplo, suas três filhas, todas beatificadas, e fundadoras de conventos.
Entretanto, na sua corte houve festas brilhantes, a que ela assistiu e presidiu; houve até o rudimento das primeiras tentativas cênicas e, para assim dizer, o balbuciar do teatro português.
Efetivamente D, Sancho, além de tourear, de entrar em corridas de cavalos, e de ser grande amador da arte de falcoaria, gostava. de folgar com representações e truanices. Teve ele na sua corte, para o distraírem e à Rainha, mômaros ou histriões de que a história nos conserva a memória.
Foram eles os jograis Bonamis e Acompaniado, que já em 1193, quando El-Rei lhes fez doação de umas terras em Canelas de Poiares, prometem dar em fobom, ou como emolumento — uñu arremedillu — o que significa um entremez, e a que se pode chamar a primeira peça teatral da nossa literatura dramática.
Eram dois irmãos, talvez de origem francesa, como o nome do primeiro indica, e que parece se faziam ajudar, nas suas folias, pelos filhos do segundo.
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Não é de estranhar ver, nos saraus dos paços de Coimbra, e nas salas abobadadas da Alcáçova, junto à Sé, pelas noites de festa real, realizada nos intervalos das Sortidas contra os mouros, os dois jograis e os truões seus companheiros, rimando entremezes ao som das cístulas, das harpas e das doçainas, para divertirem a rainha D. Dulce, as suas donas e donzelas, e os cavaleiros e homens de armas do Rei.
Entre a gente de escol, que através do tempo, tem composto a corte portuguesa, — damas, cortesãos, ricos-homens, monges, bispos, guerreiros, sábios, navegadores e aventureiros, apareceram sempre, e figuraram com aplicações diversas e fortuna vária, esses entes que, pelo prestígio do seu espírito, ou pelas deformidades do seu corpo, tinham por missão afastar da realidade triste da vida as imaginações, povoar de imagens as fantasias, alegrar com ditos agudos as reuniões e saraus, ferir com ironia os ridículos, apodar com chufas as fraquezas de cada um, sublinhar com indiretas alusões as intrigas e mistérios das antecâmaras e alcovas, espalhar chistes, remedar posturas, e, com esgares ou trejeitos, provocar a hilaridade, a alegria, o prazer.
Comediógrafos e comediantes, jograis, truões, chocarreiros, mômaros, maninelos, histriões, farsistas, graciosos, segréis, homens de prazer, bufões, bobos, trejeitadores e caturras, são graduações de uma escala extensa que vai desde o homem de gênio, que se chama Gil Vicente, e que compõe peças de teatro, até ao ente de aspecto grotesco que, a gingar a corcova, agita num tinir argento o cascavel ao som do qual a sua voz de falsete silva apupos insolentes ou obscenos, numa espécie de folia convencional, ferindo ou deleitando as personalidades das raças cultas, que povoam os palácios reais e residências nobres.
Desde que há humanidade, que é o mesmo que dizer, desde que o homem sofre, sentiu ele logo o desejo de fugir de si próprio, espalhando a imaginação pelas visualidades cênicas, que lhe dão a ilusão de uma vida ideal, e sentiu a ânsia mórbida de gozar egoisticamente com as inferioridades alheias. E é por isso que provocam o riso e são elementos de prazer os disparates dos idiotas, o gaguejar dos tolos, as truanices dos corcundas e anões, e as caricaturas humanas simuladas pelos palhaços nos circos e coliseus, onde as multidões de homens vão diariamente pagar com dinheiro o deleite de se verem desfigurados grotescamente.
A tradição mitológica já apresentava Baco, o deus galhofeiro, o inspirador das canções e das danças nos banquetes alegres, como uma espécie de folião possesso da divina loucura, morbus sacer, que assopra uma rajada sobre as cabeças estonteadas pelo vinho.
Erasmo, no seu Elogio da loucura, considera-o o bobo dos deuses a par de Vulcano, Mercúrio, Sileno, e dos sátiros de pé de cabra que fazem rir os habitantes das regiões mitológicas. Em várias passagens da Ramaiana o bobo, encarregado de provocar a alegria, é citado por Valmiki como uma entidade necessária na antiga Índia.
A Pérsia e o Egito divinizaram-no.
Na Grécia com o nome de moroi, em Roma com o de moriones, são os bobos a alacridade dos festins.
Nessa brilhante Roma da decadência não havia banquete sem os inventores de facécias burlescas.
Depois das dançarinas, dos acrobatas, dos macacos amestrados, dos cubisteteres, que marchavam com a cabeça pelo chão e os pés no ar, vinham os bobos — os gelotopoioi — que em grego significa os homens que fazem rir a sociedade.
Esopo, o frígio, que Xantus comprou por sessenta óbulos é, com a sua figura grotesca, a sua cara disforme, e os lampejos de gênio singular que chegaram até nós, um escravo bobo, encarregado de distrair, pertencendo à espécie dos morosophos, loucos ajuizados, que proferem sentenças morais.
Na nossa idade-média, o bobo, com o seu gibão multicor, com o seu saio de guizos pendentes, e gorra asiniauricular, com a palheta, e os tintinábulos do adufe, enche as aulas régias, divertindo, motejando e às vezes lacerando reputações e honras, ou vingando injustiças.
O truão, o chocarreiro medieval, distribuidor de chufas, é, na sua missão de crítico, grosador e zoilo, como os censores romanos, ao mesmo tempo juiz e algoz.
A figura de D. Bibas, personagem de pura imaginação np romance de A. Herculano, sintetiza os caracteres do bufão daquelas eras.
Mas Bonamis e Acompaniado, figuras reais da corte de D. Sancho I, esses não foram somente uns ginastas, não se limitaram a ser simples rimadores, ou foliões.
Jograr lhes chama o pergaminho de doação feita-pelo Rei. E jograis eram mais e melhor do que modestos saltimbancos.
Pelas informações que nos ministra, em três das suas obras, Afonso o Sábio de Castela, a parte mais importante do arremedilho era mímica, mas não decerto uma simples imitação caricatural sem música, nem dança, nem palavras. Era, ao que se supõe, um diálogo burlesco entre dois farsantes; ou representação em que um dos jograis recitava o romance, enquanto outros representavam a ação descrita no texto; ou um noma, isto é, uma ação mímica acompanhada de dança figurada.
Sem entrarmos na minuciosa classificação das variadíssimas espécies de representadores do século XIII, que se encontra nas obras de Afonso X, o poeta e sábio, o qual decidiu que fossem chamados histriones todos os tocadores de instrumentos músicos, inventores aqueles que poetavam, joculatores os saltimbancos e trejeitadores, bufones e cazurros os ínfimos que entretinham o povo, ganhando vil e miserrimamente o sustento nas praças públicas e tabernas, fazendo saltar macacos e cabritos, sigamos nós agora os nossos Bonamis e Acompaniado, na Corte de D. Sancho I.
Estes dois pertencem à classe dos segréis, trovadores que peregrinavam de corte em corte. E era a missão de Bonamis e Acompaniado fazerem galhofa e solaz nos Paços de El-Rei D. Sancho I.
Aos seus remedilhos assistem a Rainha D. Dulce e suas filhas, as juvenis Infantas Tareja, Sancha e Mafalda e os filhos — Afonso, o herdeiro do trono; Pedro, o futuro aventureiro, que se celebrizou em Leão, Malhorca e Urgel; Fernando que havia de casar com Madame Joanna, a famigerada Jeanne de Constantinople, opulenta herdeira de Flandres, Alsácia e Hainaut.
Enfileiradas junto das paredes, as donzelas da corte da Rainha sentavam-se em almadraquexas baixas; destacando-se entre elas D. Mayor Pais mulher de Lourenço Viegas, chamada a Dona da Casa Real. Ricos-homens e infanções, cavaleiros das ordens militares e oficiais da Casa do Rei formavam grupos pitorescos com os seus saios de cores garridas, ou com as sobrevestes debruadas de seda, sublinhando com risadas as chocarrices dos jográis, escutando com agrado os sons das cítaras, das guitarras mouriscas, das gaitas e exabebas, e seguindo com olhares concupiscentes os movimentos lascivos das jogralesas, que agitavam pandeiros ou tangiam adufes.
E quase todos punham o seu mais galante esforço em bem cultivar a arte de donear.
Donear, ou falar com as donas, consistia, para aqueles rudes barões, em um misto de cortesanismo, de intenção erótica, de culto sentimental, de práticas trovadorescas, e fora esse costume porventura importado e aclimatado aqui pelos que tinham vindo com a Rainha D. Dulce do Reino de Aragão, onde, como diz o verso:
Os d'Aragon que soen donear.
Doneavam, pois, ali, no sarau da Alcáçova de Coimbra, ou, como hoje se diria, cultivavam o flirt (vocábulo adulterado do francês chanter fleurette) muitos dos mais ilustres homens da Corte.
Era Pedro Afonso, o irmão bastardo do Rei e seu alferes — o signifer.
Era o Conde Mendo de Sousa, o bom Conde, o grande valido do Rei — o maior-domus curiae.
Era (antes da empresa de Silves) Álvaro Martins, a quem D. Sancho muito prezava.
Era o vulto .sagaz do chanceler Julião, cuja figura, vagamente desenhada e nebulosa, enche a história do reinado com a sua influência política e astúcia na arte de governar, que trouxera de Bolonha onde fora aprender Direito.
Era aquele João Soares de Paiva, — o trobador — que se expatriou e morreu em Galiza, apaixonado por uma Infanta de Portugal, talvez alguma das que ali se achavam.
Era p moço Pedro Rodrigues da Palmeira, — o que morreu de amor — que já por esse tempo andaria perdido por D. Maria Pais, filha do Valadares. (Esta D. Maria Pais, quando casou com Martim Pais Ribeiro, irmão da amante do Rei, juntou ao seu nome o apelido de Berredo, talvez para se diferençar da sua sedutora cunhada — a Ribeirinha).
Era Gil Vasques de Soverosa — o Velho — um dos magnates mais poderosos de Além Douro, que acompanhou D. Sancho em muitos feitos de armas. Era ainda a irmã deste, aquela Dona Elvira casada com D. Pay Soares de Valadares, e depois raptada por Vasco Martins.
A alguns destes saraus assistiu também, talvez, Filipe de Alsácia, Conde de Flandres, príncipe, poeta, valente soldado e desvelado protetor de troveiros, o qual, descendo da sua romagem a São Tiago de Compostela ou na sua volta da Palestina, se apaixonou pela linda Teresa Mafalda, a puella de Portugal, com quem, mais ao diante, veio a casar, em Bruges, pomposamente.
Eram, naqueles saraus, presentes muitos outros personagens que davam, com o seu prestígio e beleza, tanto brilho a essas reuniões; de que falam os nobiliários; que os livros de linhagens apontam; e de que os cancioneiros ou livros de trovas se ocupam nos seus cantares.
A esses serões concorriam por certo, D. Maria Aires de Fornelos e D. Maria Pais Ribeiro, que vieram a ser as últimas amantes do Rei.
E nessas noites do Paço, junto à Sé de Coimbra, se deixou ele enfeitiçar, primeiramente, pela Fornelos, a quem não dedicou grande afeto, mas de quem teve dois filhos; e depois pela Ribeirinha, a grande paixão da sua vida e de quem fez uma quase. Rainha.
É dessa trituradora de almas que nos vamos ocupar no capítulo seguinte.

CAPÍTULO 3
Estávamos dizendo que D. Sancho I se deixara seduzir pela Ribeirinha nos Paços, a par da Sé de Coimbra, em noites de sarau, quando o luar batia em cheio nas varandas e terraços da Alcáçova, e iluminava a paisagem mórbida do Mondego, enquanto os rouxinóis namorados pairavam nos salgueiros, as rãs coaxavam idílios amorosos nas represas do rio, e, lá dentro, nas salas, as jogralesas arqueavam provocantemente os corpos nas danças lascivas.
Já assim ele se deixara embarcar na primeira aventura com D. Maria Aires de Fomelos.
Os cronistas, que se referem a este Rei, querem fazer-nos crer, como atrás já vimos, que ele só tomou manceba depois de enviuvar.
Mas os fatos e as datas contrariam os historiadores, e desmentem as suas asserções. É fácil a demonstração.
Um filho da segunda amante, o poeta Gil Sanches (que foi o clérigo mais honrado da Espanha, e viveu em barregania com D. Maria Garcez de Sousa) já poetava em 1211, e outorgou em 1213 uma carta de foro aos moradores de Sarzedas, o que denota maioridade; e, portanto, já era nascido em 1198 ao tempo da morte de Dona Dulce.
Ora, sendo certo que nessa data já tinham acabado os amores com a Fornelos, vê-se que é também certo ter esta "compartilhado o régio tálamo com a Rainha".
Não se sabe se foi bela a Fornelos. Nos "Elogios >dos Reis de Portugal" chamava-se nobilíssima et pulchra concubina, e a douta investigadora do cancioneiro da Ajuda diz, falando dela: a bela Maria Aires de Fornelos.
A sua beleza, porém, não é apregoada pelas tubas da fama, como a sua sucessora de quem os linhagistas, historiadores e troveiros, louvam os encantos e deixam adivinhar o gênero de formosura.
É certo que a Foroelos, ainda depois de dar dois bastardos ao Rei, encantou o Soverosa de quem teve mais filhos.
Não tem, porém, na história o lugar que D. Maria Pais ocupa.
A Ribeirinha foi inspiradora, e foi procriadora de poetas.
Como tal é imorredouro o seu vestígio nos fastos da literatura portuguesa.
Filha de Pay Moniz e de D. Urraca Nunes Bragançoa, e irmã de Martim Pais, casado, como já vimos, com outra Maria Pais, por quem um poeta morreu de amor, a Ribeirinha, a quem o Livro Velho das Linhagens chama a mulher d'El-Rei, foi bela, e encarnou no seu corpinho miúdo todas as temíveis faculdades de sedução e de perfídia,
O seu poder de encanto é atestado pelas paixões que ateou, não só no Rei, como em outros que dela se aproximaram.
E, das qualidades secretas da sua fisiologia amorosa é indício a alcunha que deram à sua filha e do Baticela, a quem chamaram — a das coxas quentes — ... talvez por herança materna.
Os documentos que a citam dão-lhe o epíteto de formosa.
Mas apenas um nos indica o gênero da sua beleza,
Branca de pele, e de fulvos cabelos, parece ter sido a Ribeirinha, se acreditarmos as palavras de um poeta seu apaixonado que diz quê ela é branca e vermelha.
No mundo non me sei parelha
mentre me for como me vay
ca já moiro por vos — e ay
mia senhor branca e vermelha
queredes que vos retraya
quando vos eu vi en saya.
Mao dia me levantei
que vos enton non vi fea.
O poeta autor destes versos é Pay Soares parente da Ribeirinha. Declara-lhe ele que "morre por ela", e que a não viu feia quando a surpreendeu em saia (ou este dizer signifique quando a viu apenas com a sub-veste, ou com vestido luxuoso). E acrescenta na segunda estrofe da mesma cantiga:
E, mia senhor, des aquel di ay
me foi a my muyn mal
e vos, filha de do Paay
Moniz e bem vos semelha
d'aver eu por vos guarvaya
pois eu mia senhor, d'alfaya
nunca vos ouve nem ei
vali d'ua correa.
Sobre a interpretação desta enigmática estrofe e da palavra guarvaya têm apresentado engenhosas interpretações filólogos, investigadores e eruditos. Querem; ver nesses versos uma vaga alusão ao exalçamento próximo de D. Maria Pais, e a um prêmio simbólico que-ele trovador esperava receber nesse ensejo em conformidade com certos usos antigos palacianos.
A guarvaya (ou guarnaya de guarnir) era, ao que parece, uma sobreveste de escarlata fina, luxo permitido por via de regra só ao Rei, e parentes mais próximos.
E desse fato querem alguns autores deduzir que este epitalâmio medieval celebraria um prenúncio de introdução da Ribeirinha na câmara régia, e que o manto escarlatino teria sido prometido pela noiva morganática ao trovador que festejasse as suas bodas.
Não nos parece que este trovador Pay Soares, irmão de Pedro Velho de Taveirós, outro poeta (quantos não enxameavam em volta da Ribeirinha!) tivesse a intenção de celebrar na sua cantiga a situação da favorita declarada de El-Rei e a sua exaltação ao sólio da mão esquerda.
Do sentido das palavras de Pay Soares destaca-se claramente a impressão dos seus amores, sente-se que o pobre poeta andava doidamente apaixonado pela perturbadora rapariga.
É o calor e o tom das palavras do nobre troveiro que nos levam a crer que ele não obedece a um simples impulso de donear ou ao encargo de cumprir uma missão de poeta estipendiado, quando lhe diz: morre por ela; e que desde o dia em que a viu, quando ela estava de saia, e que a achou tão linda, não conhece no mundo ninguém tão infeliz como ele. Esta lamúria de bardo amoroso parece-me salvar a dignidade do homem.
Seria mais fácil de explicar a qualidade de sentimento de Pay Soares pela Ribeirinha, e as relações entre os dois, se tivéssemos a significação da palavra guarvaya, e o simbolismo dessa alfaia.
Admitindo, porém, que guarvaya seja a veste de escarlata, que, segundo o costume de França, se dava aos trovadores em paga dos seus cantares, o que se deve entender é que Pay Soares diz, num sentido figurado, à mulher de quem gosta, que ela nunca lhe correspondeu, pois nunca lhe concedeu nem sombra de retribuição. (Pois eu minha senhora, nunca houve nem hei de vós alfaia), isto é, o pano de escarlata que se dava aos poetas: nem mesmo, acrescenta ele, o valor de uma correia, talvez o atacador, parte mínima da veste, como quem diz: nem uni fio!
Pobre poeta! O que é fora de dúvida é que esta cantiga revela claramente a paixão que a ruiva Ribeirinha, amante do Rei, inspirara ao poeta seu parente. Do seguimento dessa paixão não nos dá conta o trovador, nem se encontra qualquer indicação no cancioneiro.
Outra loucura amorosa que ela despertou, não se manifesta em versos sentimentais. Tem uma entenda ação dramática e após o lance romântico do rapto da favorita viúva, o desfecho é trágico com a morte do seu adorador Lourenço Viegas, como adiante referiremos.
Grande foi também a paixão que ao Rei D. Sancho ela inspirou.
Revela-se desde o começo, na generosidade com que ele, econômico, amigo de acumular morabitinos, quase avarento (tão apertado nas suas despesas, que obrigava os clérigos a sustentarem-lhe os cães de caça, falcões e açores), fez doações e mercês à nova amante logo no ano de 1198.
Outro indício ainda do encantamento exercido no ânimo do Rei pelos feitiços dessa mulher, e da sedução com que a sereia franzina domina o ânimo rude, bravo e duro do guerreiro medieval, é a admoestação que de Roma o Papa envia, e a imposição do Bispo de Coimbra a D. Sancho, para que expulsasse a Pitonisa, que o impedia, a ele Bispo, de frequentar o Paço.
De Roma, Inocêncio III, na bula, que lhe dirigiu, a 25 de Fevereiro de 1112, referindo-se às queixas do Bispo de Coimbra, exortava-o a que abandonasse a feiticeira que todos os dias consultava. (Consultar era um eufemismo casto com que o pudor da Cúria velava as proezas amorosas do Rei).
Alexandre Herculano, que, tendo tratado na sua História, do reinado deste Monarca, e apreciado com superior critério a fisionomia moral de D. Sancho, acentuando bem a importância do seu papel no desenvolvimento da vida municipal, deixa, contudo, na sombra, com propositado desdém, tão natural no austero historiador, a sua psicologia sentimental, e artística, e apenas consagra algumas frases a este episódio, tomando à letra as expressões da bula do Papa, e não lhe dando a verdadeira interpretação.
Assim, diz ele: "rude soldado, não nos deve parecer estranho que fosse crédulo e supersticioso, como nessa época o eram ainda os espíritos mais alumiados. Tinha o Rei uma feiticeira, ou mulher de virtude daquelas em que ainda hoje crê o vulgo, a quem consultava todos os dias".
Julgamos, porém, mais verossímil que a designação de pitonisa seja circunlóquio intencional empregado pelo Pontífice para designar a favorita.
A esta interpretação se inclina o erudito autor da "História da Administração", o Sr. Gama Barros, que se expressa assim: "Talvez que a suposta feiticeira fosse a amásia do Rei, Maria Pais, cuja preponderância no ânimo de Sancho desagradasse ao prelado queixoso".
E é desta mesma opinião D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, que diz: "A última amiga logrou ascendente tão extraordinário, e prolongado sobre o gênio impetuoso do envelhecido monarca, que os Bispos do Porto e Coimbra, por ele perseguidos, considerando-o perigoso e hierático, levantaram -celeuma. Aos ouvidos do Papa chegou a queixa de que uma feiticeira ou agoureira — pitonisa no latim curial — era quotidianamente consultada pelo Rei de Portugal. Essa feiticeira branca e vermelha, na pobre descrição daquele poeta áulico que pretendia obter vestes de escarlata, como distintivo da sua posição privilegiada, é, conforme tenho narrado, não só mãe do trovador Gil Sanches, mas também a inspiradora das mais antigas composições galaico-portuguesas".
Destas composições a que mais importância tem talvez para a história da literatura portuguesa é o lindo Cantar de amigo, atribuído ao próprio D. Sancho, e que é uma das mais arcaicas poesias portuguesas.
Supõe-se efetivamente que o rei o fizera para que a Ribeirinha o cantasse, quando ele se ausentava de Coimbra, e quando, galgando ,1 cavalo as ásperas penedias da Serra da Estrela, ia vigiar os trabalhos de construção da cidade da Guarda, que então reedificava com intuitos militares e administrativos.
Diz assim o formoso Cantar:
Ay eu coitada como vivo
en gran cuidado por meu amigo
que ei alongado! muito me tarda
O meu amigo na Guarda.
Há nestes quatro versos uma tão deliciosa cadência rítmica, que a gente julga estar vendo a garbosa flexura do corpo da Ribeirinha, acompanhando-se na cístula, quando ensaiava, na presença do Rei, a comédia das saudades.
E têm esses versos um tal sabor do torrão pátrio, e já um tão vivo sentimento do gênio da língua, que então ainda estava no período balbuciante; há neles tal vernaculidade que, sendo, apenas, um cantar de amigo, podemos considerá-lo não só cronologicamente os primeiros, mas no seu valor artístico o mais belo lampejo métrico nas auroras da poesia portuguesa.
Por que são atribuídos esses versos ao Rei D. Sancho I?
O professor Constantino Corviseri trabalhando em Cagli (Itália), na livraria do Conde Paulo Antônio Brancutti, encontrou um códice que o celebre filólogo Angelo Colocci mandara copiar no século XVI de outro mais antigo.
Neste cancioneiro o notável humanista, entre as muitas notas trasladadas de fontes boas, escreveu: "Registo outro rolo (isto é, rótulo, ou folha membranácea enrolada) das cantigas que fez o muy nobre Rei Dom S ancho de Portugal, e diz: ay eu coitada como vivo".
Este interessante problema de arqueologia literária é tratado com grande autoridade por D. Carolina Micaélis, nas suas Investigações, e adorada a hipótese pelo distinto professor o Sr. Mendes dos Remédios, na terceira edição da sua história da literatura.
Também na última edição do romance de Rebelo-da Silva — Ódio velho não cansa — os editores anunciavam uma nota do Dr. Teófilo Braga, relativa aos versos de D. Sancho, mas não chegou a ser apensa no segundo volume.
Admitindo-se como indiscutível a afirmativa que atribui ao Rei esta cantiga, que ele teria composto, na intenção de pôr nos lábios da sua leviana amante uma melopeia amorosa, indicativa de inquietação e saudade,e de sugerir-lhe no coração ansiedade pelo seu regresso, dão-nos esses versos um documento importante da psicologia complicada, e da cultura intelectual do monarca.
Ciumento já na mocidade, como o indica a cena com a Rainha, a que nos referimos, e morbidamente ciumento até mesmo do futuro, como nos revela a cláusula do testamento em que, já velho, lega à amante Vila do Conde e outras terras, com a condição de se não casar, não é de estranhar que ele imponha, nos seus cantares, cuidosas queixas para que a amante as entoe, enquanto ele se achar alongado nas alturas da Guarda.
Fundou El-Rei D. Sancho, ou para melhor dizer, reedificou essa cidade, quando já tinha mais de cinquenta anos, no intuito de a opor à fronteira e vizinha Ciudad Rodrigo na Extremadura leonesa.
O seu instinto militar, ao deixar a época ativa das guerras de conquista, para empreender, forçado pelas fomes e calamidades publicas, a repovoação e guarda do Reino, descobriu vestígios da antiquíssima Ward — ou Gard — e as ruínas de um castelo, que lhe indicavam ter já sido aproveitado, como atalaia e baluarte na defesa, por outras gerações anteriores; e logo avaliou a importância estratégica daquela posição difícil de acometer, de onde se descobre a extensão de vinte léguas.
O enérgico Sancho que então começou a correr o Reino, desde uma a outra província, indo em cavalgadas numerosas de Coimbra ao Porto, a Guimarães ou a Lamego, e regressando dali pela Idanha ou pela Covilhã a Santarém, no trabalho de fundar aldeias, vilas, castelos, demorava-se forçosamente mais entre as agruras do cume dos Hermínios nessa região desoladora, de uma paisagem cinzenta e triste, tão propícia a pensamentos sombrios e apreensões dolorosas.
Espicaçavam-no então as saudades da amante que deixara em Coimbra na sua ociosidade de sultana; e, ou o alanceassem porventura dúvidas pungentes da sinceridade do seu afeto, ou o lisonjeassem íntimas convicções da sua ternura e fidelidade, e do desejo que ela teria de o ver regressar, um ou outro desses estados de alma levá-lo-ia a formular as trovas, que então lhe fornecia, para entoar durante as suas ausências na Guarda, como sendo a concreção das queixas saudosas que ele desejava crer, ou realmente cria sentidas pelo coração da Ribeirinha.
E se o assaltavam pressentimentos dos desígnios ambiciosos do Baticela, o fidalgo galego que, mais ao diante e depois de viúvo, a desposou (pressentimentos que talvez influíssem na redação do testamento) ou se o deixavam apreensivo suspeitas da nascente paixão de Gomes Lourenço Viegas, um dos seus homens de armas (que a raptou violentamente logo em seguida à morte do Rei), punha de parte as negras ideias, e comprazia-se em pensar, por entre as escarpas da rude montanha, que a linda ausente nas salas dos seus aposentos junto à Alcáçova, onde ele, quando em Coimbra, a ia consultar quotidianamente, estaria a essa hora salmodeando ao som da cítara o cantar que dizia:
Ay eu coitada como vivo
En gran cuidado por meu amig
o
Não foi de certo única a cantiga de Sancho I à Ribeirinha. E, a ela ou a outras, decerto o Monarca compôs mais cantares, conforme indicam os próprios dizeres da rubrica de Colocci que na copia do velho códice escreveu por sua mão: "Registo outro rolo das cantigas que fez o muy nobre rey D. Sancho", o que indica (pelo plural empregado) que no antigo cancioneiro havia outras do monarca. E também o atesta o conhecimento da gaya ciência que os versos deste cantar revelam. .
Quem o compôs não era leigo na arte de bem dizer.
A alguém ocorrerá dúvida acerca da autenticidade destas composições, e do talento poético de D. Sancho.
E parecerá talvez estranho que, se ele tão sonoramente trovou, não interpretasse nos seus versos o sentimento próprio, e compusesse cantigas para serem cantadas pela Ribeirinha.
Nada confirma a pouco cultura de espírito que lhe atribui Alexandre Herculano quando diz:
"Sancho, porém, posto que bom soldado, nem igualava o seu antecessor em talentos militares, porque homens como Afonso I são raros, nem supria essa inferioridade de gênio com a cultura superior do entendimento".
E mais adiante acrescenta: "Esta última circunstância, e a pouca educação literária de D. Sancho..."
Ora, bem pelo contrário, (perdoe-nos a memória do grande historiador), conquanto violento e áspero, não foi D. Sancho avesso às manifestações de espírito, e deu bastas provas de o ter esclarecido.
Atestam-no, além dos seus talentos militares, que o próprio Herculano não nega, a maneira como fortificou as fronteiras do País, e como organizou as ordens de cavalaria, esse monarquismo militante que era a grande força das monarquias cristãs.
Além disso Sancho, tendo; percebido a influência dos colonos e prelados francos, chamados por ele e por seu pai, enviava eclesiásticos nacionais à Itália, para, em Bolonha, estudarem direito, e a, Montpellier para estudarem medicina.
A influência de Sancho na vida da nação e nas relações com Roma e com o clero, atribuídas ao chanceler Julião, não é devida à exclusiva, tutela do magister, mas sim a uma assídua colaboração dos dois.
Essa colaboração ininterrupta, durante os vinte e sete anos do seu reinado, com o sagaz e astuto, o instruído Julião, demonstra o apreço pela estatura moral do homem, e a perfeita comunhão de ideias entre os dois, o que é uma prova, de capacidade intelectual do monarca.
Advirta-se também que o seu espírito estivera em contato com a gente da corte de Saboia, donde viera sua mãe a Rainha D. Mafakla, filha de Amadeu II, que trouxera o gosto da poesia cavalheiresca dos trovadores.
Ele próprio casado com D. Dulce, filha de Raimundo de Berenguer, Conde da Provença e irmão do primeiro Rei da Catalunha e do Aragão, que era poeta eminente, tanto em limosino como em francês, de certo sé familiarizara com essas línguas.
Além de que, por ser neto do Conde Don Anric, falava de certo o francês, e compreendia o suficiente das línguas d'Oc para apreciar as obras dos trovadores, e entender-se com os chefes dos cruzados, nas suas entrevistas e convívio na guerra.
Vimos também como ele apreciava os jograis, o que denota estima, e talvez aptidão para a arte que eles cultivavam.
Não é pois de estranhar que na Península, onde monarcas e cortesãos poetavam, o nosso D. Sancho, mordido de amor pela Ribeirinha, entoasse a canção que a figura cheia de saudades.
Enquanto a ser posto esse cantar na boca da mulher a quem queria, não é motivo de espanto, nem destoa de muitos outros cantares d'amigo que traduzem, embora compostos por trovadores masculinos, os sentimentos das raparigas apaixonadas, e os lamentos das saudosas amantes.
Muitos dos cantares do mais fecundo e talentoso trovador da nossa época provençalesca, o Rei D. Diniz, cujas composições ainda hoje têm a frescura e o encanto, que só o talento pode tornar duradouras, são figuradas em bocas femininas.
Diz assim uma das mais belas cantigas do Rei poeta:
Ay flores! Ay flores ao verde pyno
Se sabedes novas do meu amigo
Ay Deus, e hu é?
Ay flores! Ay flores do verde ramo
Se sabedes novas do meu amado
Ay Deus, e hu é?
Se sabedes novas do meu amigo
Aquel que mentiu do que pôs comigo
Ay Deus, e hu é?
Se sabedes novas do meu amado
Aquel que mentiu do que m'ha jurado
Ay Deus, e hu é?
E noutra canta desta maneira:
Poys que diz meu amigo
Que se quer hir comigo,
Poys que d'el praz,
Praz a mi. bem vos dipo,
E este é o meu solaz.
Nada portanto se opõe a que seja de D. Sancho o cantar d'amigo que se encontra no cancioneiro Colocci-Brancutti, e por ventura outros que decerto existiam no antigo códice.
Compô-lo ele talvez pelos anos de 1199 logo depois daquele eclipse de sol "que começando entre a sexta e a noa se fez tudo negro como pez e o dia de mui claro que era se tornou noite aparecendo lua e estrelas". No seu espírito supersticioso faria o fenômeno grande impressão, e dispô-lo-ia a sentimentalismos melancólicos, atribuindo à Ribeirinha gran cuydado por o saber afastado nos trabalhos da fundação da Guarda.
***
Bastantes anos durou esta ligação com a formosa filha do Moniz, irmão daquele Martim Moniz que defendeu a porta do castelo de Lisboa.
Quando o Rei morreu, em 1212, ainda essa ligação durava, posto que ele já se achasse doente havia mais de um ano.
Correspondia ela ao afeto que o Rei, já velho, lhe dedicava?
Seria arriscado afirmá-lo, impossível garanti-lo.
A Ribeirinha tinha um coração insondável, e a sua fisionomia moral é enigmática.
Vamos avaliar uma das feições da sua alma recordando aquele episódio, que nos conta o Nobiliário da Conde D. Pedro.
Morrera Sancho em Coimbra e fora levado a enterrar na capela mor de Santa Cruz.
Logo a seguir à morte do monarca D. Maria Pais, a Ribeirinha, retirava-se para as suas terras de Vila do Conde.
Ia a cavalo, triste, anojada, e lacrimosa. Vestia de branco, que era o luto da época, e acompanhavam-na seu irmão Martim Pais Ribeiro, e outros cavaleiros, que a escoltavam.
Ao passarem perto de Avelãs, no termo de Anadia, saiu-lhes ao encontro Gomes Lourenço Viegas, trisneto de Egas Moniz, que se deixara apaixonar pela ruiva amante do Rei, quando a vira nos paços de Coimbra.
Pitoresca e emocionante devia ter sido a cena, cara-teristicamente medieval, do encontro entre os dois grupos no campo de Avelãs; os de Gomes Lourenço Viegas tentando ajudá-lo no rapto, e os de Martim Pais defendendo a posse da gentil irmã do cavaleiro.
E presenciando esse estranho espetáculo, transida de medo, tomada de espanto, destacava-se nas suas vestes alvas a Ribeirinha, cujo poder de sedução fatal tantos dramas fazia nascer. Dentro da sua alma, naquele momento, atropelavam-se as visões das cenas dilacerantes que precederam e seguiram a morte do Rei; os doestos e represálias da corte, que durante anos custosamente suportara o valimento concedido à favorita; as apreensões do futuro; e agora ali, os encontrados sentimentos da vaidade feminina lisonjeada por se ver assim apetecida por esse Gomes Lourenço, que era brilhante cavaleiro, e do orgulho ferido pelo atrevimento com que ele à viva força a queria filhar.
Bateram-se os dois cavaleiros, e os respectivos homens de armas.
Gomes Lourenço embora ferido e chagado, conseguiu, num esforço heroico apossar-se da Ribeirinha, e galopando a unhas de cavalo, orgulhoso e triunfante, com a sua preciosa presa, fugiu com ela, internando-se no Reino de Leão.
Receava ficar em terras portuguesas, porque a poderosa parentela da Ribeirinha de certo lhe disputaria a posse da rica e poderosa donatária de tantas terras e honras.
E não se enganava porque, entretanto, Martim Pais Ribeiro, o irmão dela, ardendo em despeito, em ódio, em desejo de vingança, dirigiu-se ao Rei de Portugal, D. Afonso II, queixando-se do agravo recebido, e pedindo que fosse reparado o dano.
O Rei D. Afonso, ou porque se tratava de um ultraje feito à mãe dos seus irmãos bastardos, ou porque desejasse regularizar uma situação que julgava escandalosa, dada a categoria dos personagens, ou porque a família de Martim Pais tivesse mais influência do que a de Lourenço Viegas, deu a Martim Pais uma carta para o Rei Fernando de Leão rogando-lhe que estranhasse a Lourenço o seu mau feito, e o emprazasse a voltar a Portugal.
Martim Pais, senhor da carta do Rei, e saboreando antecipadamente a vingança, abalou para o Reino de Leão, onde a irmã continuava na posse do raptor. O Rei Fernando atendeu-o, e mandou chamar à sua presença o apaixonado Gomes Lourenço, intimando-o a que partisse com Maria Pais para Portugal.
Começou então um drama de perfídia e de dissimulada malícia, que as frias palavras do Livro do Linhagens deixam claramente adivinhar.
Resistiu primeiramente Gomes Lourenço a repatriar-se, arriscando-se, se tal fizesse, a ser vítima dos parentes de Maria Pais.
Ela, porém, empregando toda a ciência de sedução, e explorando a amorosa credulidade daquele que tanto se expusera para a possuir, logrou demonstrar-lhe que, esquecida da violência por ele usada, e rendida pela paixão ardente que essa louca empresa manifestava, se deixara enternecer, e compartilhava já o sentimento que ele lhe dedicara. Cumpria portanto, acrescentava a enleante sereia, regressarem a Portugal, e ela lhe prometia o perdão do Rei, a conciliação com seu irmão, e o casamento que ele ambicionava.
Foi fácil de convencer, como apaixonado que era! Vieram a Castelo Rodrigo, onde nesse momento estava o Rei de Portugal.
Ela, logo que chegou ao campo em que se achava D. Afonso, deixou-se cair da hacaneia em que jornadeara, e lançou-se a chorar aos pés do Rei reclamando justiça.
Então em grande alarido e abundantes lágrimas, narrou, simulando aflita vergonha, como ele a tomara por força, e lhe fizera violência, e a roussara e a levara para fora de Portugal, e a tivera presa no Reino de Leão...
Compreende-se o dramático assombro de Gomes Lourenço Viegas ao escutar as queixas da pérfida Ribeirinha, tão contrárias às promessas e juras proferidas entre beijos enganosos.
Compreende-se a catástrofe sentimental que naquele momento lhe aniquilou o coração, com a derrocada de todas as suas ilusões e esperanças, e a consciência da sua ingenuidade nascida na paixão, que o alucinara.
Absorto, mal respondia às perguntas do Rei.
Não negou o que ela afirmara.
Era verdade que a roussara por amor. Era verdade que a tivera presa. Mas invocava o próprio testemunho de Maria Pais que prometera que com ele casaria logo que viessem para Portugal!
Ela interrogada, não hesitou em declarar que tudo o que dissera e prometera tinha unicamente por motivo, trazê-lo ali à presença do Rei, para ser corrigido o mal que recebera, pois doutra maneira não podia ser vingada!
E a felina criatura instou com o Rei para que fosse implacável e fizesse justiça!...
O Nobiliário, registrando em poucos períodos, esta trágica cena, termina sobriamente, sem comentários: "El-Rey mandou-o matar, e ela casou depois com João Fernandes de Lima — o bom, e tiveram descendência".
Casado com este fidalgo galego, já viúvo, a quem também chamavam-no Baticela, a Ribeirinha ainda teve dele mais três filhos, além dos quatro que já tinha.
Viveu até depois dos noventa!
***
E já havia muito tempo que o Rei D. Sancho dormia no seu modesto túmulo da Capela-Mor de Santa Cruz, de onde mais ao diante o Rei D. Manuel o tirou para o encofrar no soberbo mausoléu em que hoje se encontram os seus ossos; já de há muito parara o coração que tanto batera pela Ribeirinha, e se consumira o cérebro que a sua imagem tanto ocupou, quando levaram para o Mosteiro de Grijó a velhinha que fora na mocidade, radiante de beleza, uma quase Rainha, que ateara paixões, que desencadeara tempestades sentimentais, que foi mãe de poetas, e que fica na história como a musa inspiradora da mais remota lírica portuguesa!

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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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