Cristo não volta
(Resposta ao "Voltareis, ó Cristo?"
de Camilo Castelo Branco)
Castelo de
Paiva, junho de 1873.
Meu amigo:
Como tem navegado Douro acima e conhece bem as planícies e montanhas que
a uma e outra margem se encontram, umas espraiando-se ao nível da corrente,
outras erguendo-se ameaçadoras e áridas para o céu, não me dispenso de
contar-lhe um caso triste e verdadeiro, porque o presenciei eu, se bem que mal
possa ser cronista, porque estou ainda na comoção da surpresa.
Encontrei-o no Porto, e disse-lhe que tinha de partir para Castelo de
Paiva. Efetivamente parti no dia fixado. Não jornadeei por terra, o que seria
incomparavelmente mais rápido, porque me julguei obrigado, a bem de meus
próprios interesses, a acompanhar o barco carregado por minha conta. Larguei do
cais da Ribeira, cercada meia-noite, para aproveitar a maré até Pé de Moira.
Obedeço a um pedido não declarando o dia. Cerca das onze horas da manhã estava
em Pé de Moira, onde os marinheiros e arrais almoçaram, comendo uns peixes
fritos na barraca de ramas de pinheiro, que o meu amigo conhece, e bebendo pela
tradicional bilha de barro vermelho.
Aí me profetizou o arrais que o termo da viagem seria moroso, porque não
havia vento e o barco ia muito carregado.
Resignei-me.
Armou-se um tolde com a vela, acendi o meu cachimbo, bebi também, e
comecei a ler os jornais que trazia no bolso, disposto a viver sobre água o
tempo que fosse preciso.
Oh! enfadonha coisa este antediluviano processo de locomoção! Digo antediluviano
em razão de Noé se ter salvo embarcado no dia da grande submersão da terra.
Li os jornais de fio a pavio, como se diz não sei se em bom português,
reli-os, decorei-os. Cheguei a devorar os anúncios com uma sofreguidão de
canibal. Engoli e digeri todos os barateiros e todos os precisa-se.
Compreendi então o que há de profundamente triste em precisar; eu
também precisava de chegar a casa o mais breve possível e todavia a terra firme
estava para mim como a água para Tântalo. Vi-a; e tudo se ficava em vê-la.
Foi-me anoitecendo ainda a grande distância de casa. Custou-me a
transigir com a necessidade de passar segunda noite no rio. Que me importava a
mim o luar, a ardentia das águas, as vaporações embalsamadas da natureza? Não
sou poeta; já tive um pouco disso, é verdade, mas
o que mais ambiciono presentemente é dormir na minha cama, comer à minha mesa,
e calçar as minhas botas.
Finalmente não havia remédio senão conformar-me às circunstâncias; o
homem nasceu para joguete; fui pois o que tem sido e há de ser perpetuamente o
meu semelhante.
Cerrou-se-nos inteiramente a noite ao sopé das Vitoreiras. O arrais deu
voz de lançar ferro; os marinheiros iam cansados de tirar o barco à sirga e
logo saltaram em terra para queimar sobre gravetos o seu bacalhau. Puxei do meu
taleigo e comi uma fatia de presunto de fiambre e outra fatia de queijo.
Depois que gregos e troianos se banquetearam com o frugal repasto,
tratou-se de acamar e dormir.
Os marinheiros acobertaram-se com as mantas e romperam, trauteando pelos
narizes, em hinos a Morfeu. Eu é que não nasci pagão; fui remisso em render
culto à tétrica divindade mitológica. Mexi-me, remexi-me, rebuli-me e por mais
de uma vez acendi o meu rolinho de viagem para dar batalha a pulgas, percevejos
e demais bicharia, que passava dos marinheiros para mim e de mim para os
marinheiros.
Cerca das onze horas da noite pareceu-me ouvir de repente o baque de um
corpo em terra, mas um segundo depois não pude duvidar ao ouvir um grito surdo
como o de quem caia contra o solo. Chamei aflitivamente os marinheiros, que
despertaram roncando interrogações.
— Que foi? Que é? perguntaram eles.
— Aí fora caiu gente!
— Quem havia de cair, senhor!
— Ouvi distintamente a queda, e um grito depois.
— Um grito!
— Posso afirmar; ouvi gritar com toda a certeza.
Instiguei-os, pedi-lhes instantemente que me acompanhassem. Eles
acenderam o seu lampiãozinho e seguiram-me. Fomos marinhando pelas fragas à procura
de agulha em palheiro. Os marinheiros começavam a rir alvarmente e a dizer que
eu era dado a medo de bruxas. De repente pareceu-me porém ouvir gemer. Intimei
silêncio. Os marinheiros trocaram entre si um olhar irônico, que para logo se
volveu crédulo, porque distintamente ouviram um gemido.
— É alma perdida! disse um com voz trêmula.
— É naturalmente corpo perdido, objetei eu. Calem-se. Vamos a ver se nos
orientamos.
Após um longo intervalo, ouvimos gemer do novo, se bem que mais
debilmente. Podemos orientar-nos. Eu marinhei à frente dos homens, arrancando
da mão de um a lanterna. A pequena distância pareceu-me ver um vulto estendido
no chão. Baixei o lampião e reconheci um corpo de mulher. Os marinheiros
estavam atônitos e como que receosos de aproximar-se. Fui eu quem, pousando o
lampião, levantou o corpo. E — surpresa extraordinária! — vi uma bonita mulher,
se bem que mortalmente pálida, nova, franzina, com o rosto ferido,
ensanguentado. Estaria viva ou morta? Não sabíamos. A verdade é que estava fria
como cadáver. Os marinheiros, capacitados de que não era bruxa, ajudaram-me a
transportá-la ao barco. Deitamo-la, aspergimo-la, lavamos-lhe os ferimentos e
nem tempo tivemos — eu pelo menos — para pensar no extraordinário do
acontecimento. Hoje é que eu, ainda que mal, reflexiono e me confirmo que não
há romance que seja absurdo.
***
A formosa desconhecida continuava a estar imóvel e fria, apesar dos cuidados
que lhe prodigalizamos e que, atentas as nossas circunstâncias, não podiam ser
completos.
Sabe que eu não sou piegas nem romântico, — o que significa o mesmo,
porque o romanticismo é a pieguice do espírito — mas confesso-lhe francamente
que me horrorizaram a solidão, a escuridade, a massa negra das águas e a massa
negra das serras, o desamparo do homem entre a água que é fria e a rocha que é
dura, entre ambas que são mudas e surdas, — finalmente, o desagasalho, a impossibilidade
de encontrar socorro!
Como o Douro me pareceu diferente daquele extenso e caudaloso rio nosso
conhecido, meu e seu, quase sempre plácido, povoado de barcos, animado de
cantares, marginado de casinhas e campanários que de longe a longe se
penduram das fragas, numa palavra, acidentado de tons variados e por mais de
uma vez festivos!
Ordinariamente, quando se viaja, tem-se saúde. Vem a gente a ler no
barco, a fumar, a conversar os marinheiros, a incitá-los a que cantem ao
desafio, a comer a sua canja e a beber a sua pinga!
Nada nos apavora então! Quando o barco passa por baixo das Vitoreiras, e
se vê lá no alto, ameaçando eternamente despegar-se, aquela enorme avalanche
negra, informe, nem sequer lembra que os fraguedos, que se encastelaram um dia,
por uma evolução da natureza, podem rolar e precipitar-se alguma hora, por
outra evolução imprevista. Contenta-se a gente com ouvir da boca dos marinheiros
uma tradição do sítio.
— Ali, dizem eles, é que os homens traídos trazem as mulheres a
despenhar-se.
Eles não dizem isto por estas palavras, mas digo eu. E a gente
facilmente acredita que haja homens que se deem ainda o incomodo de jornadear
por algumas horas para despenhar as mulheres adulteras, que já estão
despenhadas, e que haja mulheres, que depois de conhecerem o vício, tenham a
virtude de se deixar morrer!
A viagem pelo Douro, de dia, em boa disposição de espírito e corpo, tem
alguma coisa de idílio, de Arcádia, de crendice, coisas impossíveis de
encontrar hoje em qualquer outra parte. É uma espécie de Pantana, onde o
carneiro assado parece saltar-nos aos dentes, e a borracha trepar-nos aos
beiços, e onde a gente, olhando para as mãos, encontra cinco facas e cinco
garfos! Onde é hoje que se pode encontrar a realidade deste ideal de Pantana, a
não ser numa viagem pelo Douro? Quem é hoje que come com a mão, desde que
o Monteverde publicou o Manual enciclopédico, e nos exames do liceu
se ensina a dar ao queixo, quer dizer, a comer com as mandíbulas?
Mas como o quadro muda de noite, santo Deus! quando terra, céu e água
são escuros, e está ao pé de nós um corpo frio, imóvel, quando o nosso espírito
pergunta a si mesmo, para resolver um mistério, se aquela mulher, formosa e
inanimada, gentil e desconhecida, será morta ou viva!
E não haver um sal que se lhe dê a respirar! um espelho para lhe receber
o hálito, se ainda o tem! uma voz que nos anime! um espírito que compreenda a
nossa tribulação! porque os marinheiros do Douro são os puros cadeirinhas do
rio! Fazem tudo mecanicamente; têm força: puxam por ela. Perdão, pelo que eles
puxam é por nós, pelo barco, e por eles mesmos. Podiam ter nascido bois, e
nasceram homens. Também os cadeirinhas podiam ter nascido burros de carga e
nasceram galegos. Que a natureza emendasse a mão em qualquer feitura humana,
compreende-se, porque também aquele artista, que estava a fazer o demônio
calcado pelo arcanjo, mudou de tenção, por quebrar os chifres ao demônio, e
aproveitou a escultura para fazer um santo deitado.
O que é certo é que a natureza humana, tirante os marinheiros de Riba Douro
e os cidadãos de Riba Minho, é tão nobre, tão dedicada, — e perdoe-se-me a
vaidade de a estudar em mim mesmo — que logo me esqueci da urgência de abreviar
a viagem, de descarregar em Castelo de Paiva os meus gêneros, e concentrei
todas as minhas atenções naquela mulher que não conhecia, que vagueava a
desoras por uma serra, com risco de rolar ao Douro, sozinha com a sua
ideia, que era provavelmente uma grande dor.
Permita-me — entre parêntesis — que chame à dor moral uma
ideia e não um sentimento. Isto é filosofia minha. Quando se acorda pela manhã,
e se lembra a gente do sofrimento da véspera, é que continua
a sentir o que na véspera sentiu. E que tal! aprova? Eu quando
fui de uma vez ao Porto, acompanhar o meu patrício Barros que ia fazer concurso
para uma cadeira de filosofia num liceu do sul, e ouvi argumentar um tal
Albuquerque de óculos verdes, adquiri a convicção de que também podia ser
filósofo, mais pelo que ouvi ao Albuquerque do que pelo que ouvi ao Barros.
A verdade é, meu amigo, que a nossa alma verga ao perigo como o aço ao
joelho.
Pusessem no meu barco um ferrabrás, um mata-mouros, um espadachim, ao pé
daquela mulher, e ainda que esse estentor não tivesse esposa, nem filha, nem —
ó prodígio! — tivesse mãe, ele sentiria o que eu senti, a abnegação das
situações anormais, a ânsia de valer a quem está carecido de socorro, a
necessidade de saber se aquela mulher estava morta ou viva!
Cobri-a com todas as mantas que havia no barco, as dos marinheiros e as
minhas, a ver se provocava a reação; lembrei-me de que tinha aguardente comigo,
friccionei-lhe os braços e os pés, e, ao agasalhá-la, ao conchegar-lhe a roupa,
senti que tinha no bolso papeis.
Bem podia ser que ali estivesse a chave do enigma.
***
Com quanto eu seja um pouco preguiçoso em escrever, e ainda ontem lhe
tenha enviado a segunda carta sobre o extraordinário caso das Vitoreiras, não
posso resistir à tentação de voltar hoje ao assunto para lhe comunicar que por
carta recebida agora do correio do Porto fui ameaçado de não sei que medonhos
perigos no caso de prosseguir na verídica história da morta ou viva.
Em nenhum ato da minha vida blasono de valente, mas também não é meu
costume recuar por cobarde. Continuarei pois a narrativa encetada, em proveito
da humanidade, porque, repetindo o que dizia na primeira carta, é uma tremenda
lição. E depois que ideia se fará no Porto da policia de Castelo de Paiva?
Julgarão isto sertão de feras, serra deserta, região ignorada? Eu não sei. O
que posso afirmar é que a tenebrosa carta nem me cheirou a certidão de
óbito, nem estou em terra onde a supradita carta, dado que eu fosse
simplesmente poltrão, pudesse converter-se em realidade impunementemente.
Não, meu amigo, eu protesto contra todas as mordaças açaimadoras de
escândalos. Isto assim não pode ser, — que triunfe sempre o forte e sofra
sempre o fraco. Bem sei que é costume recatar os escândalos e, quando muito,
publicá-los desfigurados. Mas — erro imperdoável! — o escândalo é muitas vezes
a lição e algumas vezes pode ser a cura. É preciso que se espalhe, que se
discuta, que se comente, com vagar, como eu estou fazendo, para que a
precipitação não cegue o entendimento.
Este caso da morta ou viva tem surpreendido muita gente, mesmo em
Castelo de Paiva. Era eu a única pessoa que estava na confidência dele, porque
fui a única testemunha ocular. A princípio julguei dever guardar segredo. Ao
cabo, porém, de muitas noites de insônia, resolvi dar-lhe publicidade. Sabido
apenas por mim, não aproveitaria a ninguém; divulgado, algum proveito
poderá-levar à sociedade.
Há que tempos se anda aí a falar da emancipação da mulher! Mentira,
hipocrisia, infâmia!
A sociedade lança mão da tese-emancipação para mais escravizar a mulher,
como os governos costumam exibir o rótulo melhoramentos materiais quando
tentam vexar os povos com novos tributos.
Querem estes filósofos de má morte emendar a natureza. A mulher não
nasceu para senhora nem para escrava; a mulher é
companheira. Como esta palavra está a dizer, ela deve compartir conosco
alegrias e dores, risos e lágrimas, flores e espinhos. Falar-lhe em
emancipação é supor que havemos sido déspotas ao ponto de lhe roubarmos a
liberdade relativa que lhe devíamos ter dado, e que lhe queremos restituir; é
proclamar a nossa própria vileza; é arrogar-nos fatuamente a importância de
libertadores do gênero humano. Escravizá-la é aviltar nossos filhos até à
condição de filhos de escrava e julgarmo-nos nós mesmos nas circunstâncias de
nossos filhos.
Não há emancipação nem escravidão: o que deve haver simplesmente é
sociedade conjugal.
Portanto eu, filósofo montanhês, estarei sempre na brecha para atacar
qualquer das duas falsidades, qualquer dos dois extremos, que são viciosos, estando
pois a virtude mais uma vez no meio-termo.
Estas cartas são um brado ardente contra o aviltamento da mulher, cuja
honra se quer sujeitar a um capricho, esquecendo-nos de que desonrando-a a ela
nos desonramos a nós mesmos. Não façamos da mulher a guitarra com que nos
recreamos durante uma serenata e que ao romper do dia, ébrios de mau vinho e
mau prazer, atiramos pela janela fora. Quem a recolherá depois de a ver no
monturo? O trapeiro, apenas. E todavia a guitarra era mimosa, quando suspirava
ao luar; tinha uma voz doce e melodiosa que despertava vagos pensamentos na
alma; podia ainda murmurar cadências se continuasse a ser dedilhada por mãos
delicadas. Mas nós, que a princípio mal pousávamos os dedos nas cordas, que a
julgávamos intermédio entre a nossa alma e a natureza, porque era ela, a
guitarra, que estava falando por nós e respondendo pela natureza, deixamos por
último cair em cheio a mão sobre o frágil instrumento e fizemos estalar uma
corda, que precedeu o estalar de todas as outras.
Pois a corda que estalou chamava-se — honra; depois dela estalaram todas
as outras, que se podem chamar — pundonor, brio, fé. A mulher, quando chega a
este destino da guitarra, já não tem pundonor, porque não se peja de haver
caído; não tem brio, porque não pensa em reabilitar-se; não tem fé, porque já
não acredita na própria reabilitação nem na reabilitação das outras.
Vai, como a guitarra partida, para o muladar do trapeiro ou para a loja
do adelo.
Ou morre ou se vende.
Não, filósofos da filosofia de Maomé, que sustentais o crê ou
morres, não, em nome de nossas mães, de nossas irmãs, de nossas esposas, de
nossas filhas, havemos, nós, os que temos dignidade e coração, de quebrar aos vossos
pés essas duas lâminas de aço cortante que limitam o vosso pérfido dilema. E como
o havemos de fazer? Desvendando a mulher, avisando-a, apontando-lhe o exemplo.
Meu amigo, — perdoe-me esta dissertação que era precisa, depois de lhe
haver anunciado a recepção de uma carta ameaçadora, e previna os seus leitores
de que eu daqui em diante entrarei diretamente no assunto.
***
Quer que lhe explique o meu demorado silêncio?
Dias depois de publicada a terceira carta, recebo pelo correio outra de
letra desconhecida.
Abro e leio:
"Ilustríssimo senhor:
Vejo que é um homem esforçado e brioso, para quem todas as ameaças são
nulas. Perdoe-me o havê-lo compreendido mal, tomando-o como pusilânime. Lance
tudo à conta do meu desespero de me ver justamente acusado em muitos relanços
das suas cartas, e falsamente incriminado noutros. Foi uma infâmia, que a sua
magnanimidade perdoará, e que o meu arrependimento redimirá. Peço-lhe porém —
se alguma confiança lhe mereço ainda depois de perdoado — que me ouça, antes de
continuar as suas cartas, para que, melhor informado, possa conhecer as
particularidades da verídica narrativa. Um inconveniente obsta porém à
minha ida a Castelo de Paiva: é o ser uma terra muito pequena e açular eu a
curiosidade do público ocioso com a minha presença aí, depois da publicação das
suas cartas.
Nesta conjuntura não será grosseira impertinência pedir-lhe um
sacrifício por amor da imparcialidade com que quer ser juiz na minha causa?
Pois bem, ao magistrado que me tem de julgar perante a opinião pública, e que
deve escutar com igual benevolência réu e queixoso, exoro, suplico vivamente
que se digne marcar sítio onde me possa dar audiência para ouvir da minha
justiça.
Não receie ciladas. Se não fosse realmente um homem corajoso,
lembrar-lhe-ia que prevenisse a autoridade da hora e local da entrevista."
Respondi imediatamente:
"Ilustríssimo senhor:
Tenho de ir a Penafiel depois de amanhã. Portanto, se não quer ser
visto, espere-me às onze horas da noite na capela de São Roque.
Não receio ciladas. Deixemos a autoridade em paz."
Fui.
Efetivamente pude orientar-me melhor nos episódios que precederam o caso
das Vitoreiras, o que de nenhum modo quer dizer que eu modificasse
absolutamente o meu primeiro juízo.
Ainda assim cumpre-me restabelecer a verdade dos fatos.
Da parte dele não houve a mínima culpa no incidente
daquela noite. Foi sim um grave erro da sua parte, o erro de ceder à loucura de
um momento, que deu lugar a esse ato de desespero da formosa desconhecida.
Ele, porém, não estava avisado da fuga, como pude verificar pelo
confronto dos depoimentos de ambos.
O que é certo é que o vi chorar...
Nunca o seu coração está tão endurecido que não tenha a sensibilidade
que refrigera com lágrimas as dores íntimas.
Todavia aguardemos o desfecho dos acontecimentos, esperando, como o Dr.
Pangloss, que tudo seja pelo melhor no melhor dos mundos.
Isto até aqui, meu amigo, foi para si.
Daqui em diante vai prosseguir a narrativa, reatando-se no ponto em que
ficara, como se não se houvera dado este episódio que acabo de referir, e que
todavia me permitirá ser mais explicito.
Senti, disse eu na segunda carta, que a desconhecida tinha no bolso
papeis.
Só ali podia estar a chave do que para mim era enigma.
Mas, ao mesmo passo, um escrupulosito: Ser-me-ia permitido ler essa
correspondência?
E logo a contrapor-se ao escrupulosito uma reflexão: Não a traria ela consigo,
prevendo que as suas debilitadas forças lhe faltariam no caminho, para
esclarecimento de quem quer que a encontrasse morta ou viva?
Resolvi ler os papeis.
Eram um maço de cartas, atadas com torçal vermelho.
À primeira vista, fiquei perplexo.
Reparando melhor, dei tino de haver entalado, entre o torçal e o rolo,
um bilhete.
Esse devia ser o esclarecimento desejado.
Era, em verdade.
Dizia simplesmente isto:
"Chamo-me F., da casa de... vou para..., fugida à justa punição de
meu pai e apenas confiada na proteção do pai de meu filho, que deve nascer se a
morte não surpreender a mãe nesta ousada resolução.
Tu, que me leres, perdoa-me.
Se és pai, põe todos os teus cuidados na guarda de tuas filhas: se és
mulher, e estás descida a iguais abismos, vê no espelho da minha desgraça a
profundeza do teu erro."
Tinha-se feito a luz.
Aquela mulher era filha de um homem respeitabilíssimo que há muitos anos
se soterrara numas serras do Douro depois de haver percorrido o mundo, semeando
dinheiro e anedotas, batendo os melhores cavalos, balouçando-se nos melhores
tílburis, jogando, bebendo, reptando, apostando nas corridas, atirando aos
pombos, pompeando nas águas de Spa, debruçando-se num camarote da Grande Ópera,
merecendo referências a Júlio Janin, enchendo o mundo, o folhetim, o romance e
até o teatro.
Há quem diga que o nosso conhecido Antony, transportado do
lar desonrado para a cena igualmente desonrada, fora apenas uma copia desenhada
pelo crayon ultrarromântico de Alexandre Dumas numa hora mais ultrarromântica
que o próprio crayon.
***
Finalmente, ao recolher de uma das viagens ao estrangeiro, casou com uma
senhora da primeira sociedade lisbonense. Quase o surpreendeu o ser amado.
Não conhecia o amor senão da capa dos livros e dos vaudevilles.
O casamento era para ele apenas uma comedia que vira em França e na qual homem
e mulher se davam excelência e cumprimentavam ao jantar. Pensava pouco mais ou
menos em observar o regime matrimonial da comedia, mas completamente se
enganou, porque, sentindo-se amado, começou de encontrar no amor tesouros que
lhe eram desconhecidos desde a mocidade. Atravessara o mundo, sem atravessar a
família: não conhecia o amor, porque só na família o ha. A alegria das festas,
fora do lar, irradia como a espuma do champagne à luz de candelabros,
mas entorna-se e dissipa-se como ela.
Supunha ele haver-se apaixonado uma vez, aos vinte anos. A 2 de
abril de 1829, fazendo a primeira viagem a Paris, ouvira cantar a Malibran, que
era então a rainha da opera, num concerto matutino dado na rua Taitbout, em
favor dos órfãos adotados pela "Sociedade de moral cristã." Ficara
doido, embriagado, e logo obteve uma apresentação à cantora, que o recebeu
ao dessert.
Nessa mesma noite cantava a Malibran o papel de Desdêmona no teatro dos
Bufos. O teatro trasbordava de espectadores; a receita do espetáculo subiu ao
algarismo de 18 mil francos.
Não obstante ser imensa a multidão, a cantora pareceu enxergá-lo e
distingui-lo com um sorriso, — destes sorrisos que as mulheres de teatro
espalham como bilhetes de benefício...
Isto acabou de enlouquecê-lo. Todo o teatro tinha visto: a Malibran
sorrira-lhe!
Nesse mesmo ano foi a cantora a Londres. Acompanhou-a, seguindo por toda
a parte o rastro de glória que ela abrira ao passar por entre a admiração
britânica.
Em janeiro de 1830, estavam ambos em Paris: ela e ele.
Foi nesse mês e ano que Paris a ouviu cantar o segundo ato do Matrimonio
segreto, com as duas maiores notabilidades cantantes da época, — a Sontag e
a Damoreau-Cinti.
A vida do nosso touriste foi, durante o tempo que
seguiu a Malibran, uma serie de viagens, — as mesmas que ela fazia, — de ceias,
de piqueniques, de
prazeres, que acabavam sempre ao amanhecer, porque os falsos sorrisos
desmascarar-se-iam à luz da manhã, e, digamo-lo também, foi um inferno de
ciúme.
Ele tinha tamanha emulação de quem lhe dava a ela um broche, como de
quem lhe dava simplesmente um bravo. Isto, meu amigo, acho eu desarrazoado; mas
diga-me se não tenho razão, visto que vive em terra onde há teatros.
Ora o nosso herói, que, para maior facilidade, chamaremos X, julgava-se
perdidamente amado, e perdidamente namorado.
Duplo erro!
O que lhe sustentava essa rosada ilusão eram as flores, as luzes, os
cristais, as ovações, as perolas e os sorrisos da Malibran, o público, as
ceias, os bailes, toda essa vida exteriormente sedutora, apenas arquitetada
sobre este pedaço de vidro, que no mundo se chama a glória.
Mas — desapontamento horrível! — o pedacinho de vidro quebrou, cessaram
as cintilações prismáticas, e o castelo encantado desabou.
Foi nesse mesmo ano de 1830 que a Malibran atou com o celebre violinista
Beriot as íntimas relações que os tornaram inseparáveis.
Foi numa ceia que ele soube a fatal notícia por intencional chocarrice
de um conviva.
Esteve para erguer-se e reptar Beriot, mas Beriot era um homem serio, e
não o havia ofendido.
Desistiu.
Amuou, corou, empalideceu, começou a tornar-se ridículo.
Malibran, que fez reparo no despeito do seu admirador, levantou-se e
apresentou-lhe a Lablanche, que estava à mesa.
Coruscou no cérebro de X a ideia da vingança. Começou a galantear a
Lablanche, a ponto de que em 1832 percorreram todos a Itália: Malibran,
Lablanche, Beriot e X.
Já viu o meu amigo mais doida mocidade, mais desbaratada vida, e ao
mesmo passo tamanha nudez d'alma ainda mesmo na época em que o corpo se envolve
na ampla capa de D. Juan?
Um benefício recebeu porém desse divagar pelos prazeres ruidosos.
Saturou-se do mundo. Felizmente, a sua vinda a Lisboa facilitou-lhe o único
meio de conhecer a única coisa que desconhecia, — a família. Entrou no lar pela
porta do casamento quando pela janela saia a extravagância ainda desgrenhada
das ceias e de charuto na boca.
A propósito de charuto, meu amigo: dê-me tempo de fumar um.
***
Continuemos a falar do pai da nossa gentil desconhecida.
Acabei o charuto: podemos conversar por um pouco.
O amor completou a regeneração que a experiência do mundo principiara.
Casou.
No coração da esposa encontrou tesouros de raras virtudes. Alvoreceu-lhe
em torno uma aurora de tão doce luz, que pela sua mesma suavidade desbancava as
cintilações cristalinas das ceias, e os clarões que iluminavam em cena a figura
da Malibran.
Toda a gente o presumia ainda rico: a verdade era que a realidade não
correspondia à opinião pública.
Havia gastado como um príncipe russo. A capa de D. Juan não tem bolso,
de modo que enquanto as mãos tangem o bandolim da aventura vai o dinheiro
caindo no chão.
Casado, encarou com mais gravidade no seu futuro, e achou que não podia
aguentar-se nas pompas de Lisboa.
O casamento tem quase sempre isso de bom: desperta a consciência
adormecida pela crápula.
Pediu informações aos feitores, e as informações confirmaram a suspeita.
Chamou à puridade a esposa e disse-lhe:
— Perdoa-me, anjo, se te vou magoar com a minha primeira confidência,
mas devo-te a verdade toda. Eu não sou tão rico como geralmente se supõe.
Gastei muito, quase esbanjei na sociedade o patrimônio da família. Quero porém
que tu vivas feliz, e para atingir a tua felicidade apenas encontro abertos
dois caminhos: ou o trabalho honesto ou a tranquila solidão. Se desejas viver
no estrangeiro, poderei obter uma embaixada; mas se preferes viver no meu e teu
país, temos que recolher-nos à província, e viver na doce tranquilidade que o
mundo da capital não conhece. Só te peço que sejas franca. Decide, e a tua
vontade será-lei.
A resposta foi esta:
— Partiremos amanhã para o teu solar. A felicidade está onde a gente a
tem; tê-la-emos lá. A vida no estrangeiro seria a prolongação da tua mocidade;
ora eu tenho direitos incontestáveis ao teu coração. Quero-o, pois. E onde
melhor o possuirei do que na solidão do lar, onde, fechada a porta, seremos nós
os únicos habitantes do nosso mundozinho de felicidade? Vamos lá, meu amigo.
Nem sabes como me sinto alegre! Quanto mais te distanciares do passado, menos
ciúmes terei dele. Vamos lá.
Foram.
O solar, construção coeva dos primeiros tempos da monarquia, era
mais acervo de ruínas que palácio de nobres. As pedras haviam-se desconjuntado,
e a hera marinhava pelas fendas até ensombrar as janelas. Nos longos corredores
havia a escuridão sinistra dos cárceres. As salas, denegridas pelo tempo, eram
de uma vastidão que punha medo. A mobília, tão deteriorada como o edifício,
tinha o aspecto fúnebre de fantasmas que à meia-noite se fossem sentar
encostados às lousas do cemitério. Os grandes contadores de pau preto
negrejavam a pequenos intervalos como ossadas de gigantes carbonizadas em forja
de ciclopes. Por entre a escuridão e o silêncio da casa algum pipilar de andorinhas,
que penduraram o ninho entre as ruínas. Também às vezes no cemitério, no meio
da côncava sombra dos chorões, assim chilreiam uns passarinhos que fogem quando
apresentem gente, porque estão habituados ao sossego das campas.
As sombras da casaria deserta apavoraram a noiva de X. Uma noite uma
coruja fora piar a uma das janelas do solar. A pobre senhora estremeceu e
chorou.
Acudiu o marido a abraçá-la meigamente.
— Tinha sido melhor, disse ele, optarmos pelo estrangeiro. Isto aqui é
triste. Ainda se as andorinhas se não calassem de noite...
— São os nossos únicos amigos, respondeu a dama. Se esta casa não é
completamente sepulcro, a elas o devemos. Mas, meu amigo, as andorinhas me
bastam para conforto. Eu chorei porque estava triste; não foi que tivesse medo.
Não te inquietes...
— Não, anjo, não. É preciso sairmos daqui...
— Para o estrangeiro não, não?
— Sossega, filha. Pois que estes montes te amedrontam menos que
estas paredes, e que te resignas ao sacrifício, ficaremos. Limitar-nos-emos a
mudar de casa. Amanhã tratarei de ajustar a edificação de um prédio que tenha
em conchego o que aqui perdemos em vastidão. Bem vês que mais nos aproximaremos
ainda. Eu quero ouvir a tua voz a todo o instante. E depois, como sabes, o
berço das crianças costuma ser pequenino, e tu vais ser mãe. A nossa nova casa
será pois o berço de nosso filho. Escolho o laranjal. O vento que passar
agitando as folhas embalará o berço... Queres?
— Se quero!
***
Construída a casa ao centro do laranjal, entrava a felicidade pelas
janelas com os murmúrios e os olores de fora.
Ficara deserto o solar na eminência em que assentava. Negrejava como o
cavername de navio naufragado sobre rochas. Eram as ruínas do passado, os
escombros do feudalismo que dormiam o seu sono de séculos; o cottage do
laranjal era alegre como a liberdade extensiva a nobres e plebeus: — aos
nobres, porque já lhes não pesava a tarefa de mandar; aos plebeus, porque já
não eram servos de gleba.
As corujas invadiram as ruínas em competência com as trepadeiras que
bracejaram desafogadamente, e as pávidas visões da esposa de X ficaram lá
sepultadas para nunca mais a perturbarem enquanto costurava o enxovalzinho da
criança que ia nascer.
O fidalgo pasmava do poder regenerador da família, que lhe tinha raspado
da alma a última lepra da extravagância. Não via mais mundo do que aquele. Andava
a toda a hora a olhar para o berço vazio, ansioso de ver sobre o travesseiro o
relevo de uma cabeça pequenina. Não faltava já o lençol de rendas nem a coberta
de damasco: o que faltava era a criança. Pusessem ali dentro uma alma, e a
felicidade ficaria completa.
Chegou finalmente o dia de se realizar o venturoso sonho. Desdobrou-se a
cobertazinha adamascada, acamaram-se as rendas para não magoar o corpinho
delicado, e ali dormiu a criança o primeiro sono velada pelo pai que nem ousava
beijá-la para não a magoar.
Aos cinco anos a criança tinha já um portezinho senhoril que era de
namorar os olhos. Muito redondo o vestidinho; os cabelos anelados e
auri-luzentes; o pequenino corpo escondido na fita que lhe servia de cinto.
E chilreava, e esvoaçava, como se tivesse a casa por gaiola.
À medida que a pequerrucha ia crescendo, crescia com ela o amor
paternal. Sorriam de a ver sorrir, e choravam de a ver chorar.
O grande receio era de que morresse.
Esta é a loucura de todos os pais.
Querem roubar à tirania da morte uma vida que lhes não pertence.
Esquecem-se de si mesmos para se absorverem numa existência que não lhes é
essencial, mas complementar.
Não a eduquem à revelia, deixando-a entregue aos instintos bons e maus
que nascem com ela. Visto que o filho é o complemento dos pais, completem-se
pelo filho.Adaptem-no, quanto possível, à sua maneira de pensar e sentir; façam
dele a coda da santa melodia chamada família. Não se riam de que a criança faça
aquilo que eles nunca fizeram. Não lhe aplaudam o bater com o pezinho no chão,
o desfolhar as flores que lhe são defesas, o mexer nos objetos que devem
respeitar. Bater com o pé no chão é a princípio um movimento mecânico, nervoso.
Com o decorrer do tempo corresponde ao movimento uma ideia má e um mau
sentimento. Então esse ato já não é mecânico simplesmente; é a manifestação da
raiva, do desespero, do ódio. A esta perniciosa educação é preferível a morte.
As plantas novas tomam o jeito que lhes dão. Deixem crescê-las sem enleá-las,
que elas assombrarão todo o pomar.
Ora o amor é cego, e não vê nada para fora de si.
Foi isto o que aconteceu.
A criança cresceu com a mulher. Os pais, para que outro amor lha não
roubassem, deram de mão a todas as visitas de gente moça. As únicas relações
que se conservaram foram as do voltarete: eram duas. O capitão-mor tinha
cinquenta e cinco anos; tinha além disto reumatismo e óculos azuis. O outro
parceiro era um morgado de quarenta anos, que estivera em Paris com o pai da
menina e servira de capa a varias escaladas. Tinha casado e
parecia um homem morto. O casamento tem tanto de bom como de mau: é como os
cárceres. A uns presos aproveita a reclusão; outros saem da cadeia mais
desmoralizados.
Os primeiros estavam representados em X; os segundos no morgado.
Bem casados e mal casados, diz o mundo.
O amigo do fidalgo tinha verve e bigode: duas
tentações.
Ainda sabia dar o laço da gravata: um mau sintoma.
Fumava charuto: um perigo.
Contava das suas viagens, dizia que tal cantora, que conhecera, tinha os
olhos bonitos e as unhas feias; que o nariz da Malibran não era tão correto
como o pescoço: uma desgraça.
Numa palavra: era entendedor.
A menina da casa, enquanto eles jogavam, estava por ali.
E o pio que podia acontecer naquela casa era o entendedor estar lá.
Por mais que ele quisesse dominar o seu temperamento, ser bom e digno,
leal e cavalheiro, o coração, que estava comprimido nas rixas conjugais,
aproveitou a ocasião e pós a cabeça fora da grade a pedir esmola de amor.
A inexperiente menina ouviu-o, sem saber o que fazia.
Tinham-na ensinado a não fugir daqueles dois homens: não fugiu.
***
Mau é brincar com fogo: o incêndio irrompe.
O amigo da casa começou a fazer reparo nas graças da menina, e achou que
tinha os dentes alvíssimos, os olhos formosos, os cabelos soberbos.
A menina, por sua parte, entrou de deixar-se influenciar agradavelmente
pela amena eloquência do único homem estranho que falava naquela casa.
Era ele o único orador dos serões íntimos; a única voz que sobrepujava o
frêmito das cartas na mesa do voltarete.
Depois a menina lisonjeava-se de que um homem, que tinha corrido o
mundo, e conhecido mulheres celebres por talento e formosura, a conceituasse
inteligente e gentil.
Estava-se preparando naquele seroar despreocupado a ruína de Troia.
O apartamento é um mau sistema de educação. A borboleta, que não conhece
o perigo da chama, arroja-se à luz.
Era melhor tê-la avisado para que demorasse a morte quanto lhe fosse
possível.
Após as amabilidades vieram os galanteios, e após os galanteios as
confidências.
A menina ouviu e acreditou.
Começou-se a dizer por fora que a menina era amada pelo morgado.
Só não o diziam, nem ouviam, os pais da menina e a esposa do morgado.
Decorreu tempo, e a menina deixou de sair a passeio; ao mesmo tempo o
morgado deixou de ser assíduo.
A menina fez-se triste; o morgado andava preocupado.
Lutavam ambos com a resolução do mesmo problema: encobrir uma vergonha
comum.
Foi nessa época que o morgado teve de ir ao Porto por causa de pleitos
que se ventilavam nos tribunais.
Pediu-lhe a menina que a tirasse da casa paterna, antes que rebentasse o
escândalo.
O morgado prometeu demorar-se apenas alguns dias no Porto, e voltar
depois de recolhidas grossas quantias, cujo embolso dependia da solução do
pleito, a seu ver bem encaminhado, para se passarem ambos a Espanha.
Houve porém uma camponesa que os viu estarem-se despedindo em lugar
afastado. Contou-o à noite à lareira. A revelação da camponesa espalhou-se.
Chegou aos solares, e aos ouvidos da desventurosa esposa do morgado.
Pensou a infeliz senhora que poderia ainda atalhar o incêndio, e mandou
um portador com uma carta à mãe da menina.
Faltaram-lhe as forças para ir pessoalmente.
Chegava o mensageiro a tempo que a menina estava chorando à janela do
seu quarto.
O coração, que é sempre feiticeiro, adivinhou.
O mensageiro, que trazia recomendação, não fez caso.
Saiu-lhe a menina ao encontro. Pediu-lhe com lágrimas nos olhos e na voz
que lhe entregasse a carta e fosse dizer à morgada que a havia depositado nas
mãos de sua mãe.
— Veja que me perde, podendo salvar-se com uma simples mentira! Se
tivesse uma filha, seria mais clemente.
O mensageiro era pai: entregou-lhe a carta.
A menina leu-a, e cuidou morrer de aflição e vergonha.
Dizia a morgada que as senhoras da terra, — as quais eram amantes de
vários morgados casados, — já não levantariam o olhar, se a encontrassem nos
caminhos, para a amante de seu marido.
Era um modo de dizer que o escândalo tinha estrondeado, e que Jesus
Cristo não voltaria mais ao mundo, porque nenhuma das voluntárias pecadoras se
arreceava de ser a primeira a apedrejar a pecadora incauta.
De feito, Cristo ainda não voltou, nem já agora voltará, porque ainda os
vendilhões da honra alheia entram ao templo da família, e as mulheres adulteras
erguem vozes e pedras contra a que resvalou para o abismo em que elas estão.
A menina tratou de emaçar as cartas do morgado e de meter no seio o
bilhetinho que já tivemos ocasião de ler.
Esperou que fosse noite, e meteu-se a caminho.
Onde ia a pobrezinha?
Procurar o morgado ao Porto.
Foi andando, andando, rasgando os pés nas búrguas das serras,
rompendo a escuridão, arquejante, tímida do menor ruído, resoluta da coragem
que dá o desespero, até que, cerca das onze horas da noite, caiu extenuada ao
sopé das Vitoreiras.
Neste lance entronca a minha primeira carta bastante a explicar o mais
que se passou.
Como se vê, o morgado não estava prevenido da fuga da menina e sob a
aflição da surpresa escrevera as ameaças da primeira carta que recebi.
A gentil desconhecida, como a princípio eu lhe chamava, tornou em si
depois de empregados muitos esforços para reanimá-la. Meu tio padre, chamado
por mim precipitadamente, encarregou-se do piedoso encargo de recolher a menina
em sua casa, e de negociar a sua entrada no convento de*, onde se enclausurará
depois que seja mãe.
O morgado, lendo casualmente no Porto uma das minhas cartas, publicadas
no Primeiro de Janeiro, escreveu-me a impensada missiva e logo se
deu pressa em partir, e em me convidar à entrevista que aceitei.
Tomará conta do filho, logo que nasça, e aproveitará decerto esta tremenda
lição.
Ainda agora me não parece dislate repetir a pergunta: Morta ou viva?
Viva para si mesma, e morta para o mundo.
Que desgraça!
Ah! Cristo não voltará outra vez; a ter de voltar, já se haveria amerceado de tantas misérias humanas!
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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