Era o dia de São José, daquele velho,
barbudo, calvo São José, com a sua túnica vermelha caindo dos ombros, nas mãos
o cajado de amendoeira milagrosamente abotoado em flores, e que, desde
longínquos avós, de cuja memória já só ele restava, se mantinha como o santo
predileto na devoção da família.
Era o seu dia, segundo a consagração do
calendário. E, ao fundo do oratório aberto, destacado, dominando de toda a
majestade da sua estatura de dois palmos uma corte de pequenas imagens
secundárias, com um ramo fresco de lírios aos pés, o santo resplandecia no
clarão da vela benta, piedosamente acesa em sua honra.
Ali estava ele, iluminado e glorioso, o
bem-aventurado carpinteiro de Belém, escolhido por Deus, como o mais puro entre
todos os homens puros, para depositário e guarda fiel da predestinada, fecunda
virgindade de Nossa Senhora.
Segundo uma tradição remota e que vinha, de
geração em geração, transmitida de pais a filhos, a velha e encardida imagem
recebia pontualmente todos os anos, naquele dia que o calendário lhe destinava,
uma singela homenagem de veneração, de confiança, e de amor, sob a forma de um
ramo de lírios que se desfaziam em perfume aos seus pés, e de uma vela benta
que ardia e se derretia em sua frente.
Os três pequenos, pilhando-se sozinhos,
livres de qualquer intervenção adulta, tinham resolvido entre si dar uma busca
ao interior do oratório, aberto. Jorge, o mais velho, concebera a ideia e
dirigiu a ação. Era já um homenzinho de cinco anos, chefe natural e terrível do
grupo. Fecundo em planos de travessuras, ousado na execução, distribuindo com
mão forte e pródiga despojos e taponas, Jorge era acatado e seguido.
Puxou vigorosamente para junto da meia
cômoda, em que assentava o oratório, uma cadeira; ergueu para esta o Joãozinho,
cujos três anos eram ainda incapazes, sem apoio e sem auxílio, de altas
cavalarias como essa.
— Agora você! disse com voz de comando,
dirigindo-se à irmãzinha; e ajudou-a a subir. Em seguida, cumpridos os deveres
de chefe, Jorge subiu por sua vez, colocando-se atrás dos outros dois.
E os três, encantados, puseram-se a examinar
a um por um os sagrados moradores do oratório.
Havia um São Pedro, com os olhos cheios de
arrependimento de ter negado o Divino Mestre, fitando vagamente o teto. Tinha na
mão a chave dourada com que abre às almas dos eleitos as portas da
bem-aventurança; e, a seus pés, o galo tradicional, talhada toscamente, abria
as asas desiguais, esticava o pescoço, um pescoço exagerado de cegonha, e
repousava sobre a túnica azul do santo a sua crista quase quadrada.
Fronteiro a São Pedro, com o cordeirinho
branco aos pés, a face rubicunda e moça, as pernas fluas até o joelho, São João
apoiava a mão esquerda na longa curva do seu cajado de pastor, e estendia o
braço direito num gesto majestoso de bênção ou de prédica.
São Francisco, dentro do seu comprido hábito
negro, tinha um ar de suave humildade, com os olhos baixos, o rosto inclinado
para o chão e emoldurado por umas enormes, incríveis barbas cor de chumbo.
Completava a coleção das pequenas imagens uma
pequenina Senhora das Dores, doce figura de mãe angustiada, com o punhal
simbólico cravado no coração até ao cabo, as mãos postas, os olhos aflitos e
lacrimosos erguidos para o céu.
A primeira coisa que atraiu o olhar do mais
pequeno foi o cordeirinho de S. João:
Um bicho! disse ele apontando com o dedinho
esticado.
Não é bicho, corrigiu Jorge, é carneiro.
— Ele morde?
— Não, explicou o mais velho; só dá chifrada.
— Mas ele não tem chifres, interveio Vivi.
Jorge não gostou da objeção que infringia o
respeito devido à sua autoridade em assuntos relativos aos animais. E retrucou:
— Tola! Ele dá chifrada com a cabeça.
— Eu tenho medo dele, disse Joãozinho.
— Não é carneiro de verdade, assegurou Jorge.
Não se mexe. Quer ver?
Agarrou pelo pescoço o cordeirinho de São
João, e puxou-o. A frágil massa partiu-se; e ficou solta na mão de Jorge a
cabeça do animalzinho degolado.
— E agora? perguntou Vivi assustada. Eu não
disse?
Vivi, note-se, nada tinha dito, àquele
respeito.
Jorge, porém, era corajoso e resoluto; meteu
rapidamente no bolso a parte arrancada do cordeiro, dizendo:
Não faz mal, eu escondo. Ninguém conte, hein?
Pouco preocupado com aquele incidente, tão
simples e tão vulgar, o despedaçamento de um objeto, Joãozinho olhava já
atentamente para o galo posto aos pés de São Pedro.
— O que é aquilo? perguntou, desconhecendo a
figura mal feita.
— É uma galinha, explicou Jorge.
— Eu quero a galinha! declarou Joãozinho.
— Não, acudiu Vivi. Aquilo é do santo.
— Mas eu quero!
Jorge era generoso: arrancou e deu ao irmão o
galo de S. Pedro, com as pernas partidas, e sem a crista, que ficaram pregada à
túnica azul do santo.
Vivi reparou na imagem da Senhora das Dores,
por cuja face desbotada pela mágoa corriam lágrimas de sangue; e, comovida,
perguntou:
— Por que será que ela está chorando?
Jorge explicou prontamente:
— Você não vê que ela está com a faca
enterrada no peito?
— Coitada! murmurou Vivi. É melhor tirar a
faca.
Jorge tirou a faca.
— Quem seria o mau que deu a facada?
perguntou
Vivi.
— Foi o barbudo! opinou Joãozinho apontando
para São Francisco.
Devia ter sido mesmo: São Francisco com a sua
longa túnica negra, as suas enormes, incríveis barbas cor de chumbo, era a
figura mais feia da coleção.
— Com certeza foi ele! concordou Vivi.
— Foi! decidiu Jorge. Pois vai de castigo.
E agarrando S. Francisco, meteu-o, preso, no
vão escuro entre o oratório e a parede.
Chegara a vez de São José, que jazia, no
lugar de honra, ao fundo do oratório.
Jorge, com uma erudição pitoresca, apanhada
nas conversas em que a família, de quando em quando comentava o padroeiro,
começou a instruir os irmãozinhos:
— Aquele é o marido de Nossa Senhora, é o pai
do Menino-Deus. Mas o Menino-Deus não é filho dele, é filho do Espírito Santo,
que é uma pombinha.
— É uma pombinha que anda nas folias, em cima
da bandeira, interrompeu Vivi.
— Eu já vi! disse com importância e orgulho o
Joãozinho.
— Chama-se São José, continuou Jorge. Dantes
era carpinteiro; agora é santo. Quando o Menino-Deus nasceu, apareceu uma
estréia. Os pastores todos foram rezar. Foram também três reis. Um era preto...
— Um rei preto? estranhou Vivi.
— Preto sim. Na terra dos negros o rei é
preto. Mas é rei.
— E as princesas?
— As princesas, não; que boba! As princesas
são umas moças muito bonitas, com cabelos de ouro, e uma estréia na testa... O
outro rei mandou matar o Menino Deus...
— Por quê? perguntou Vivi.
Jorge hesitou. Na realidade, ele estava pouco
a par das razões políticas de Herodes; mas não quis dar parte de fraco, e,
depois de refletir um momento, respondeu a Vivi:
— Ora, porque... Porque era um rei muito
malvado.
— E mataram o Menino-Deus?
— Não puderam, capaz! S. Jorge pôs Nossa
Senhora, com o Menino-Deus no colo, em cima de um burrinho finito manso, um
burrinho ensinado; e todos três fugiram para outra terra...
Joãozinho, apertando na mão o galo arrancado
a São Pedro, dobrara sobre a cômoda o braço, encostara a este a cabecinha
loura, e cochilava, no aborrecimento daquela exposição de História Sagrada que
Jorge ia cosendo de farrapos. Mas a alusão de um burrinho muito manso, um
burrinho ensinado, espertou e teve um aparte:
— O santo está sujo.
Efetivamente. O tempo e a fumaça da vela
benta, acendida sempre, durante anos e anos, no dia consagrado a São José,
haviam encardido a imagem, desbotando-lhe as cores, envolvendo-a como numa
poeira baça e gordurosa.
— É mesmo, disse Vivi reparando. Está muito
sujo. Coitado, é preciso limpar ele.
Jorge decidiu-se logo a limpar o santo. Fez
descer da cadeira os irmãos. Afastou as pequenas imagens, e o ramo de lírios.
Agarrou com a mão esquerda a peanha, e com a direita o pescoço de São Jorge. E,
num gesto decidido e forte, tirou-o do oratório.
Daí a instante, São José estava no chão,
sozinho, no meio do quarto, anulado e pequenino. Jorge trouxe uma bacia de rosto,
larga e funda; e, enquanto vazava nela a água do jarro, ordenou a Vivi que
trouxesse o sabão.
Sentaram-se os três. Joãozinho quis logo
meter na bacia o galo. Mas Jorge suspendeu-lhe o braço, asseverando que não se
põe as galinhas n’água, porque se afogam. E, segurando com todo o cuidado o
barbudo, calvo, venerável São José, deu-lhe um- mergulho.
Agora, você! disse ele, dirigindo-se a Vivi;
Mulher é que lava.
Vivi não se fez rogar. E, carinhosamente,
pôs-se a ensaboar o santo.
Daí a momentos, na confusão das tintas que se
desmanchavam, São José tinha a barba azulada, o rosto coberto de manchas, a sua
calva, aquela austera calva tão lisa e tão lustrosa, aparecia salpicada de
rubores que lembravam uma impingem...
Jorge reparou nisso; e ordenou a Vivi que lavasse
melhor, com mais forças. Vivi esfregou com energia. A massa molhada começou a
esfarelar-se.
— E agora? perguntou Vivi assustada.
Jorge não respondeu. Tinha ouvido passos na
escada. Era a mãe, que subia, a ver de certo que é que faziam os três traquinas,
tão sossegados havia tanto tempo... Jorge, muito ligeiro, nas pontas dos pés,
escapou-se. Vivi seguiu-o logo, enxugando no vestidinho branco as mãos molhadas
das tintas diluídas da imagem de São José.
Joãozinho, então, sem reparar em nada de
todos esses incidentes, percebendo apenas que ficara único senhor do campo,
apoderou-se do santo, e pôs-se, muito entretido, a lambuzá-lo de sabão.
Encontrou-o a mãe nessa tarefa, a que se
entregava conscienciosamente; e avançou para ele no momento preciso em que Joãozinho
acabava de esfarelar com todo o cuidado uma orelha de São José.
— Maroto! exclamou ela.
E ia fazer cair sobre Joãozinho o castigo
merecido pelo horrendo crime, cujos vestígios e destroços via no soalho e no
oratório devastado, quando lhe acudiu a reflexão de que tudo aquilo não podia
ser obra só do pequerrucho, de que houvera forçosamente no caso intervenção de
mãos mais hábeis, de braço mais forte, de figura mais taludinha...
— Foi aquele pestinha! murmurou indignada,
pensando em Jorge.
Arrancou das mãos de Joãozinho aturdido a
imagem escalavrada de São José; beijou-lhe os pés com palavras compungidas em
que pedia perdão pelo sacrilégio dos filhos; e repôs o santo no seu oratório
forrado de azul com estrelinhas de ouro, cercou-o da sua corte de pequenas
imagens, todas mais ou menos mutiladas, só faltando São Francisco, que
continuava oculto, de castigo, no vão escuro...
Cumpridos esses atos de piedade, voltou-se
para Joãozinho, que apanhara do soalho o galo de São Pedro, e conservava-o na
mão:
— Você fez uma coisa muito feia, e vai
apanhar, e vai para o quarto escuro...
Joãozinho, aterrado, só respondeu:
— Não, não mamãe!... Não mamãe!...
Ela porém, muito enérgica:
— Escolha: ou apanha, ou vai para o quarto
escuro!
— Joãozinho fitou-a. Percebeu no rosto severo
da mãe — que não escapava mesmo. Ora ele nunca tinha apanhado — e conhecia já o
quarto escuro. Escolheu, choramingando:
— O quarto escuro, não...
— Vá então buscar o chinelo, para apanhar.
Joãozinho foi, vagaroso, de cabeça baixa,
como um criminoso que era. Quando voltou, trazia sempre, na mão esquerda, o
galo de São Pedro; e empunhava na direita um pé dos chinelinhos... de Vivi.
— Com este, sim? implorou.
E ia entregar o quase inofensivo instrumento
do suplício — quando se arrependeu, retraiu o braço, susteve-se... E com o
rosto aflito, os olhos suplicantes, numa vozinha entrecortada, de susto e de
choro:
— Eu mesmo me dou, sim, Mamãe? Eu me dou com
força. Eu prometo que me dou com toda a força!
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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