— É a melhor profissão que existe,
dizia lá na minha terra de nascimento, o chistoso e respeitável tio Antero,
referindo-se a esses curandeiros lendários da boca do próximo e também das
meninas bonitas.
E tinha razão de sobra o bom do velho,
quando com os seus botões se convencia cegamente de que o dentista é o oficial
mais brejeiro de quanta profissão boa e lucrativa existe...
Tal asserto se confirma cabalmente na
hipótese, sempre comum, do homem dos
boticões e cautérios ser um rapazote insinuante, de maneiras calculadamente
afáveis, de pequeno bigode negro e perfumado, tendo sempre um fino e contraído
sorriso emoldurado nos lábios, através dos quais se distingue a mais bem
cuidada e brilhante dentadura natural.
Não se negue, porém, que por ser
velho, feio ou grosseiro o dentista, deixe ele por isso de exercer proveitosa,
hábil e velhacamente, como os seus demais colegas, a profissão a que se
entregou.
Perdoe-se-me toda essa arenga, que só
aí vem, a propósito de umas penadas biográficas sobre um desses odontálgicos
cirurgiões, cuja história muita vez ouvi ser contada lá em meu berço natal.
Não havia por aquele saudoso sertão do
Norte, cristão que deixasse de proclamar, aos quatro ventos, a habilidade e
perícia do Bento Cirurgião, como o povo o alcunhara. E, deveras, todos ou quase
todos diziam por experiência das façanhas dentárias praticadas pelo Bento,
respeitado e temido pelos próprios rivais como um non plus ultra da arte.
Por aqui e por ali viajando,
constantemente, a empanturrar-se de ouro e fama, assim passava o nosso homem,
cheio de risos, atenções e muito renome por toda a parte.
A perfeição de seus trabalhos, de que ele
mesmo se pavoneava, era causa para que bocas de marmanjos e moças o
procurassem, desejando brunidas e bem colocadas dentaduras, fortes e duradouras
chumbações nos dentes estragados...
Muito bela e muito moça a mulher do
velho coronel Boaventura de Góes, um farto e opulento fazendeiro das margens do
São Francisco, mas também uma terrível esposa a Sra. Góes, que detestava o
marido, um banguela cediço, cujas limosas gengivas apresentavam o quadro
desolador duns alvéolos desabitados.
E o paciente do fazendeiro sofria,
mortificava-se com aquela aversão da cara metade; e tudo porque não tinha
dentes e não aparecia por ali um profissional, para lhe retocar e concertar os
esverdeados e apodrecidos caninos e molares — motivo da decidida repulsa de sua
consorte!...
Ah! que ainda havia de lhe pilhar um
beijo, um único beijo, dizia o desconsolado Coronel, antegostando-se na ideia
duma bela, se bem artificial dentadura.
Verdadeiro sucesso a bendita chegada
do Bento Cirurgião àquelas paragens da fazenda do Góes.
Mais que depressa se viu o Coronel de
posse da mais bem acabada dentadura, que lhe ia dar direito ao supino gozo de
umas beijocas da sua pouco meiga e caridosa mulher...
E o Bento — o incomparável colocador
de dentes, o salvador da boca do Coronel — tornou-se alvo da liberalidade da
bolsa deste, cujas boas atenções se estenderam a ponto de oferecer ao dentista
lauto banquete festivo.
Conta-se que de muito excesso na
opípara refeição, não só engolira o Coronel a dentadura, mas também lhe
sobreviera formidável indigestão, que o levou de pontapés ao outro mundo.
E como consolo à Sra. Góes, que muito
apreciava os esmaltados e naturais dentes do amável Bento Cirurgião, lhe ficou
este substituindo o inditoso Góes no tálamo e igualmente na burra.
E agora desmintam o juízo do tio
Antero: "A profissão de dentista é a melhor que existe!"
Outubro de 1894.
---
Nelson
de Senna (Páginas Tímidas, 1896)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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