Coração
de velho
Sales assistiu ao passamento da mulher, com os olhos limpos e sem outra comoção
exterior que a de um espetáculo desagradável.
Ao começar a derradeira agonia tinham
ido chamá-lo na sala de visitas. Veio sem pressa, parou ao pé da cama, e
deixou-se ficar como estranho a tudo, menos à dor dos filhos, um rapaz e uma
moça, que choravam e exclamavam, de joelhos, debruçados à borda do leito.
Cessada a agonia, compuseram o rosto
da morta. Sales pôs os olhos nela alguns instantes, apertou com força o filho e
a filha ao peito, recebeu passivamente o abraço das senhoras que ali assistiam,
e voltou à sala. Sentou-se na mesma cadeira de balanço a que tinham ido
buscá-lo e em que pernoitara as duas últimas noites da moléstia da mulher.
Depois de acender um charuto,
aquietou-se, esperando que amanhecesse para providenciar sobre o enterro.
Como aquela morte era esperada desde
muito, Sales já tinha à mão, numa gaveta da secretária, o dinheiro para as
despesas. Entregou-o horas depois a um parente que se incumbiu da diligência, e
permaneceu naquela postura, calado, até começarem os aprestos da câmara
mortuária. Retirou-se, então, para a sala de jantar e ali recebia os pêsames
dos que iam chegando. Erguia-se, retribuía o abraço, sem mais palavra que a de
um agradecimento sumido. Se não tinha pesar expansivo, também a sua atitude não
destoava da situação: era recolhida e grave.
Podiam notar-lhe os estranhos a
serenidade da fisionomia; os amigos e parentes, ou não reparavam na expressão
de seu pesar, ou advertiam que não era de esperar outra coisa naquele transe.
Todos lhe conheciam o ânimo áspero, o tom secarrão das palavras e do semblante.
Para os mais íntimos não ficava
escondida a sua bondade; sentiam-na frequentemente, mas externava-se ela de
tal jeito, que aparentava indiferença ou insensibilidade. O mesmo sorriso nele
tinha à primeira vista o ar de carranca, e os gracejos, que gostava de fazer,
mais semelhavam ralhos.
A sua familiaridade requeria iniciação
e costume para ser entendida e estimada, sobretudo nos últimos anos, quando a
velhice e os aborrecimentos da vida foram agravando o humor nativo.
Impressionava particularmente o seu teor doméstico que é o espelho fiel da
pessoa.
Chefe de família pontual, mantinha sem
desvios o conforto e o passadio da casa, não faltava aos seus deveres de
presença, mas era rude no trato, mais do que com a gente de fora. E essa rudeza
piorava à medida que o sentimento devia pedir-lhe brandura, pela enfermidade da
mulher.
A enfermidade prolongou-se por anos,
sem agravação e sem pausa, mas com o efeito, peculiar às longas moléstias
crônicas, de mutação da natureza no aspecto, nas tendências e nos hábitos
pessoais.
Nada escasseava à enferma em medicina
e em satisfação dos seus caprichos mórbidos, e por parte dos filhos em
carinhos. Mas a impaciência de Sales chegou ao extremo: ele já não podia
dominar os impulsos de irritação, que, no parecer dos amigos, tinha por causa a
ineficácia do tratamento da mulher, mas que na opinião dos demais, resultava da
própria presença da mulher. Evitava-a, quase que não lhe dirigia palavra, e
respondia-lhe de través, breve e desabrido. Ela percebia-o, queixava-se, e era
pior. Acabou conformando-se, afinal resignada, porque a não ser o carinho e
delicadeza do marido, tudo mais ela tinha para contentar as veleidades e
necessidades de enferma.
Na verdade, não era aprazível a
companhia dela: não havia excentricidade molesta que lhe não ocorresse e ela
não praticasse caprichosamente; e quanto mais queriam dissuadi-la, tanto maior
era a sua pertinácia. A seus cacoetes e caprichos, obedeciam os filhos,
penalizados pelo que lhes custavam em paciência ou aborrecimento, ou vexados,
quando assistiam estranhos; e nessas ocasiões procuravam atenuá-las com
disfarce. Sales é que não disfarçava nunca o seu vexame; se não estava em veia
de indiferença, rompia em comentário rude e expressão oblíqua, ainda mais
pejorativa; e com um ela ou esta senhora, ditos em presença da mulher, expandia
mais desdém do que num desaforo direto.
Durou anos esta situação, e assim, ao
agravar-se desenganadamente a doença, a expectativa de todos era o alívio que
traria aquela morte, para a enferma e para o marido. A atitude de Sales no
transe, não dava pois que estranhar a ninguém, e apenas impressionava pela sua
gravidade silenciosa, porventura triste.
O que surpreendeu e espantou, e
ninguém explicava, foi o sentimento de Sales no dia imediato ao do enterro e
pelo resto da vida. Tinha, como os outros, dormido longas horas depois da
vigília de noites consecutivas. Levantado e banhado, entrou a percorrer a casa
como um sonâmbulo, tendo uma expressão do olhar a um tempo indagador e
distante. Parecia ir se compenetrando da realidade, que o surpreendia a espaços
de improviso; era como se lhe faltasse aqui e ali o chão diante dos pés, e ele
sustivesse a marcha, indeciso entre o retroceder e deixar-se cair
abandonadamente. Demorava-se mais no quarto da morta, já desguarnecido da cama
e dos últimos vestígios da enferma.
Os vivos apressam-se em apagar os
restos da morte. Era agora um quarto apenas desocupado; os cabides sem roupas,
o lavatório sem água; nenhum já dos muitos frascos de remédios, e sobre a
cômoda e a mesa não mais aqueles objetos de uso quotidiano. Aparentemente tinha
mudado tudo; não se diria que na antevéspera ainda tivesse pousado ali o corpo
dela, e que ela houvesse ocupado tantos anos aquele aposento. Mas na parede,
próximo à cabeceira da cama ausente, pendiam ainda alguns quadros; alguns de
santos, os retratos dos filhos, pequeninos, e o do marido.
Sales deteve-se a olhá-lo, e a
rever-se naquela figura antiga de moço. Depois de uma contemplação muito longa,
em que o pensamento abstrato tinha a maior parte, sentou-se junto à
mesa-escrivaninha, móvel de velho modelo e muito usado. Lembrou-lhe que fora um
presente seu à mulher. Examinou-a, lentamente, indo em espírito até à data, e
ficou de olhos parados, a cabeça às mãos e os cotovelos sobre a mesa...
Os filhos acharam-no ali em total
absorção. Sales pediu as chaves das gavetas, e começou em companhia dos filhos
a pesquisar os objetos. Em contraste com eles que choravam, Sales conservava no
semblante o ar de abstração.
Os objetos eram, entre coisas de pouco
preço guardadas por amor do hábito, joias ou pequenas lembranças, cartas,
retratos de família, alguns em daguerreótipo. Entre estes, um da morta;
representava-a moça e recém-casada. Sales alvoroçou-se com o achado, e
indiferente aos outros objetos e papéis que os filhos iam revolvendo nas
gavetas, conservava o retrato nas mãos e fitava-o numa concentração profunda.
Em torno dele tinha-se desvanecido a
atualidade. Não via os filhos, parecia não ter a consciência da sua própria
condição presente. O espírito remontava um passado de quarenta anos, e
recapitulava os meses, e os dias, e impressões, e imagens apagadas, desfeitas
no decurso do tempo. As que tinham prevalecido, nos anos recentes, apagavam-se
agora; moléstias, vexames, incompatibilidade de gostos, irritações, a mesma
figura da enferma, nada lhe ficava mais na retina e na lembrança, reocupadas
totalmente por aquele daguerreótipo em que os seus olhos pareciam espelhar-se e
configurar a vida. Achou assim e recompôs a sua verdadeira realidade, da qual
os últimos anos, como um parêntesis importuno, eram de súbito riscados. Houve
um momento em que Sales já não pôde conter a comoção; e chorou num pranto
convulso, estertorado, exclamativo, em que se desatava com ímpeto um sentimento
represo e acumulado.
Os filhos olhavam-no, surpreendidos
daquele choro tardio, e não entendiam a diversidade das impressões, porque a
imagem do daguerreótipo, posto que da mãe, era de um tempo anterior ao
sentimento deles. A imagem que amavam e choravam, era outra, a da mãe doente, a
qual não se gravara em fotografia, mas lhes perdurava na memória. Daí o
desencontro das mágoas, e o espanto deles, sem lágrimas, ante as lágrimas do
pai; era o mesmo o objeto do sentimento, mas lembrado e visto em fases
diferentes e por olhos diversos.
Outra diferença é que na dor dos
filhos não havia travo de arrependimento, que a agravasse. Tinham amado, e
servido a mãe com devoção contínua; a consciência de haverem feito o que
deveram e puderam, e a certeza de que a moléstia fora incurável,
suavizavam-lhes o desgosto; tinham-se resignado gradualmente à ideia de vê-la
morrer, e até a morte lhes parecera desejável como alívio para ela e para eles.
A saudade era-lhes, pois, antes um sentimento de repouso que de tortura. Em
Sales misturava-se o remorso... Não, não era bem remorso; era outra coisa e
até contrária.
Havia na sua consciência e na memória
dele uma solução de continuidade; em presença da enferma tinha-se-lhe aos
poucos apagado a imagem anterior da mulher amada: a irritação do humor e o
aborrecimento constante determinado pelos cacoetes da moléstia apressaram a
obra do tempo. Subtraída pela morte a figura desagradável e recente, que lhe
ocupara a retina, o seu esforço de visão mental retrospectiva já não recompunha
as feições últimas e superficiais; o que vinha surgindo era a impressão
profundamente gravada, e apenas adormecida, a imagem da mulher moça, casada ao
seu coração e à sua existência, imagem indecisa a princípio, mas súbito refeita
integralmente por aquele daguerreótipo.
A sensação foi a de ter dado um salto
no tempo: faltava a acomodação dos extremos entre aquela vida e esta morte: não
havia pontos de transição e de apoio à habituação do sentimento: o velho marido
via-se como um viúvo da esposa recente, e sentia renascer o pleno ardor da
mocidade, sem desilusão, porque era toda mental.
Em consciência ele não tinha vivido os
anos de permeio entre o início da enfermidade da mulher e a morte desta: ele
não envelhecera, nem ela mudara do que lhe aparecia no daguerreótipo. A única
realidade era a morte dela, que assumia agora o aspecto de um repentino
desaparecimento, e a horrível sensação de um vácuo; e Sales era como um
ressurgido, espantado do que não via e não tinha, e em ânsia aguda de reaver o
passado. O mais não lhe importava nem existia.
Por não compreendê-lo, a esse
imprevisto sofrimento, explicavam-no pelo remorso. Era a explicação mais fácil,
e a mais aprazível aos outros; e foi alguns meses assunto de conversa dos
parentes e conhecidos. Mas perdurando o sentimento agudo mais do que pedia e
consentia a curiosidade alheia, já não pareceu bastante atribuí-lo ao remorso.
Concluíram que era manifestação mórbida: era amolecimento cerebral, e ficaram
contentes os que não podiam crer nessa extraordinária e tamanha saudade.
A Sales era indiferente o que
pensassem os outros; nem atentava na impressão que ia deixando com os seus
modos e as suas ideias extemporâneas. Vivia todo absorto na sua pena, cultivada
quase que a capricho. Do daguerreotipo mandara fazer uma ampliação colorida e
tinha-a à parede no quarto de cama: na mesa da cabeceira ficava pousado o
original, e na medalha do relógio trazia uma miniatura.
Necessidade imperiosa dos olhos que
não se fartavam da contemplação querida, ou porventura mera imitação do costume
de todos os namorados; aqueles retratos reproduzidos ainda não eram suficientes
para o seu desejo saudoso. Falava-lhe o passado à imaginação em todos os
pormenores e acidentes extintos; e ele precisava recompô-los e reavivá-los.
Um dia, deu consigo enfrente a um
prédio antigo, em arrabalde distante. Era a chácara, que o sogro habitava
quando ele, ainda estudante, conhecera e namorara Amélia: aí fora noivo e
realizara o seu casamento.
Guiava-o, como a um sonâmbulo, o puro
instinto. Havia trinta anos que não revia aqueles sítios. Não lhe foi porém
difícil identificar o prédio, apesar da muita alteração nos arredores,
edifícios que antes não havia na vizinhança, o calçamento da velha rua, em suma
o ar novo da cidade espraiada até o bairro que no seu tempo tinha a aparência
campestre de subúrbio.
A chácara conservara-se, e a casa era
ainda a mesma casa, grande e forte, assentada sobre a eminência do terreno,
entre mangueiras frondosas. Sales passou e repassou vagarosamente, espiando e
observando tudo através do gradil. Passavam e repassavam as lembranças
revividas. O seu olhar ampliava-se e circunscrevia o tempo. Repetiam-se os
episódios do namoro. Reviu a moça que o esperava à tarde, quando ele ensaiava
os seus passeios de curioso do amor... Não a cortejava a princípio: olhavam-se,
e veio o primeiro sorriso, o primeiro cumprimento, a primeira palavra
balbuciada. Surgiu então um amigo providencial que promovera a apresentação: e
dias depois ele começou as suas visitas. Com que alvoroço subira aquela rampa
na tarde do pedido! Amélia estava de branco: esperava-o na janela do sobrado,
na última à esquerda. Sales reviu exatamente a figura da moça, que lhe
sorria... Abriu o portão, transpôs a rampa até a esplanada fronteira à casa,
bateu palmas.
Ouviu vozes de homem, choques de bolas
de bilhar na sala da frente, tal qual como no outro tempo. Um dos homens,
segurando um taco, assomou à janela: — Quem é?
Deparando com a figura de Sales,
desconhecida, mas acatável, saiu ao jardim ao seu encontro. Sales ficou um
instante perplexo.
— É o dono da casa?
— Sim, senhor, que
deseja?
— Queira desculpar-me: parecerá
estranho o meu procedimento, nem sei como lho explique. Morei nesta casa há
muitos anos, aqui fui feliz, e sinto uma necessidade invencível de rever esta
chácara. Permite-me o senhor que eu a percorra alguns momentos?
Ao dono da casa afigurou-se na verdade
uma extravagância; mas sobresteve a negativa, atado pela velhice e a aparente
dignidade de Sales, sobretudo pelo luto que o cobria. Não cogitou do sentimento
que ditava o pedido; nem quis interrogar nada, para não interromper a sua
partida de bilhar.
— À vontade, pode ir vendo a chácara,
respondeu ele — e voltou para a sala.
Tanta indiferença foi um choque para
Sales, que presumia achar um acolhimento de simpatia ao seu desejo. Pensou no
que faria ele, invertidos os papéis. O mundo era a sua sensação. Como é que os
outros não lhe viam nem compartiam a angústia? Doeu-lhe a frieza do trato, como
uma desconsideração: e o atentar nisso valeu para atenuar o efeito da realidade
evocada.
A visão que ia retraçando a saudade,
dava-lhe tamanha dor, que ele sentia no peito o ímpeto do choro, a romper em
soluços: mas pôde conter-se e as lágrimas só lhe molharam os olhos. Deu volta à
casa, e chegando à frente, aproximou-se da janela da sala para agradecer ao
morador. Este acudiu ao som dos seus passos.
— Muito obrigado; volto, não sei se
aliviado, ou mais aflito.
E, cortejando, dirigiu- se ao portão.
O dono da casa ficara à janela a
olhá-lo, e com ele os parceiros do jogo, todos curiosos do velho estranho. Um
desses, apesar do porte e do aspecto de Sales, sugeriu a hipótese de que fosse
um ladrão, outro porém julgou conhecê-lo de vista e de nome: e desfez a
possibilidade. E debatido o alvitre entre risos e chacotas, concluíram que o
caso era apenas o de um velho gira.
Sales chegava ao portão e voltava-se
para prender o batente: pôde ver o grupo de faces risonhas que o comentavam, e
adivinhou a causa do riso. Partiu amesquinhado e pungido; mas logo prevaleceu a
consciência maior do passado revivo.
Nessa tarde fez os seus primeiros
versos; e escreveu-os chorando. Nunca se ensaiara em literatura, mesmo na
idade, em que a poesia parece ser a língua universal. Sales ignorava as regras
e os segredos da técnica: mas o sentimento supriu a ciência; o coração dava o
ritmo; e excessos ou deficiências da métrica ficariam despercebidos, e não
seriam maiores que as costumadas liberdades dos poetas.
Dos versos feitos não tirou Sales
vaidade, mas só contentamento de ter exprimido a sua voz interior: era a oração
escrita do seu culto; e só por isso gostou de mostrá-los a um ou outro amigo,
que ele supunha amigo. Correu a novidade transmitida em malícia crescente.
E não houve mais duvida sobre o estado
mental do viúvo. Nos poucos anos que viveu, a dor moral que o levantava em si
mesmo, diminuía-o no conceito dos outros. Os que mais lhe davam, e eram os
parentes, sentiam compaixão por ele; mas compaixão exclui apreço e amizade. Tal
é a necessidade da contingência humana. Fora da compaixão, havia o comentário derrisório.
Qual é a fronteira do riso? Tudo lhe
está dentro das linhas, nessa região da galhofa, infinita como o nada. Um pobre
velho gira é coisa vulgar e indiferente: mas a distinção pessoal é o sainete de
uma caduquice. E assim o velho Sales, coberto do seu luto, fechado na saudade,
fazia sorrir e rir, porque sabiam que ele chorava e fazia versos de saudade da
mulher morta.
E ainda se afigurou extravagância
caduca o seu derradeiro desejo de que lhe fechassem no esquife os retratos
dela. Fecharam-nos e esqueceram-no, sem haverem entendido aquele caso de mágoa,
entretanto bem simples.
Em Sales o coração não acompanhara a
idade do corpo: tinha hibernado longos anos sob o gelo da doença da mulher.
Reassomando à atividade, abrochou como a planta dos Alpes; e só refloriu em
saudade, porque a terra em volta era estéril e fria para outras flores. Coração
de velho, tinha a raiz e a energia na mocidade, que só ele podia reviver em
pensamento e os outros ignoravam e não sentiriam jamais.
---
Mário
de Alencar (Contos e Impressões, 1920)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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