O acampamento ficava perto, além duma
serrota pedrenta e nua de árvores, que apontava por traz dos carrascais verdes
e pujantes naquele ano de inverno farto. Como o sol descia e rapidamente seria
noite, eu e o Luís Fusco, cafuz alto, azeitonado, nada feio, de fisionomia expressiva,
voltando de caçar marrecas na lagoa do Lemos, apressávamos o passo. No mato,
havia já sombras espessas sob as copas e, nos ramos altos, laivos de púrpura do
ocaso. Começavam os espaçados pios agourentos dos caborés e naquela tranquilidade
desusadamente crepitavam as nossas rudes alpercatas, esmagando o saibro grosso
da vereda.
Espingardas ao ombro, seguras pelo cano,
a coronha no ar, à maneira sertaneja, às costas a roda de marrecas e picaparras
mortas, úmidas de água e sangue, caminhávamos silenciosos. Uma, ou outra vez,
o Fusco fazia em voz alta reflexões de caçador experimentado, quase sempre em
meu desfavor:
— Ih! Virgem Maria! “Seu” moço foi quem
Deus deixou neste mundo
“mode” gastar pólvora à toa... Atirou na
lagoa que foi um desespero! Vinte e cinco tiros contei eu e só matou oito
patinhos...
—E você?
—Ih! Eu é outra coisa. Pólvora custa
dinheiro e gente pobre não pode
gastar sem conta. Escute, “seu” moço, dei
quinze “papoucos” e trago seis marrecas, quatro picaparras, um putrião, um
socó-boi e um carão, ao todo quatorze bichos!
— Alto lá! Que conta é essa? Quatorze não,
treze somente.
— Ora, “seu” moço, conto o carão por
dois e vale bem, que é o bicho mais custoso de matar. Vosmincê nunca matou um carão
na sua vida! Bicho espantado, "danisco”, pior que barbatão mocambeiro. Só
chegar perto dele é um “poema”!...
O “cabra” era “prosa” como quê e tinha
desses termos petulantes, ou estapafúrdios, a cada momento. Eu ria e continuava
a marcha, apressado. Subimos uma lombada de comoro, semeada de jataís pequenos,
raquíticos, no meio dos quais sobressaíam as folhas branquicentas dos toréns.
Uma coruja rasga-mortalha gargalhou pavorosamente na solidão. O Fusco gritou:
— “Desconjuro”, agouro!
Depois, o silêncio pareceu maior. Descemos
o outro lado do cerro, que dava sobre estreito e alongado vale, despido de arvoredo,
verdadeira varjota alcatifada de junco, orlada de sabiás pequeninas.
Avistávamos a fogueira do acampamento e vultos de homens passando à frente da
sua luz intensa. Quase noite, calma completa e a fumaça subindo no ar, lenheira
como uma diáfana coluna branca. Mas um silvo vibrou sinistramente, adiante, no
caminho. O sertanejo parou de súbito, narinas dilatadas, olhos
vivos percorrendo o chão. Apontou-me uma mancha mais escura que o barro do solo
e que parecia mexer, a uns oito metros de distância. Mal a distingui.
— Cobra é o diabo! disse ele.
Levou a lazarina ao rosto e deixou-a
cair na sua melhor posição de pontaria. O tiro partiu. A mancha escura distendeu-se
e logo se imobilizou. Fomos ver o que era e levantei com o cano duplo da
Flaubert uma cascavel de mais ou menos sete palmos e quatorze anéis no
chocalho, que estava de tocaia na vereda. O cafuz tomou-lhe a cauda nas mãos,
contou esses anéis e exclamou, mostrando num grande riso os dentes brancos como
marfim:
— Cada anel é um ano de idade. Quatorze
anos esta diaba!
Levamos a serpente morta para o acampamento.
Mais tarde, a lua saiu de trás da serra.
Seu rosto, olhando de cima dos íngremes contrafortes da cadeia do Gigante, espalhou
o prateado perfume de sua luz à face de todas as coisas. Como que um mistério
novo cobriu a natureza inteira. Na ânsia de senti-lo, deixei a barraca e fui
sentar-me na relva, debaixo de vigoroso mulungu, de cuja embastida folhagem
minha presença espantou pesado corujão da mata. Fiquei ali profundamente distraído.
Da lua sobre o tapete de juncos da varjota e sobre as ramarias aveludadas
desciam véus intensos, tecidos de luz esverdeada, dando a tudo uma tal suavidade
de tons que encantavam os olhos infatigavelmente. Tudo parecia delicioso na
noite mágica e até o uivo esganiçado das raposas subia no ar luminoso como uma
vibração estranha e ao mesmo tempo harmônica com a paisagem dormente.
Todos os caçadores dormiam, ressonando alto.
Longínquo berro de onça veio das quebradas da serra, cujo vulto imenso o luar diluía
no horizonte, acordando-me da meditação. Relanceei o olhar em torno e dei com o
Luís Fusco acocorado, fumando, a dois passos de mim.
— Você não vai dormir, Luís?
— “Inhor” não. ‘‘ Seu” moço está acordado
e eu vou ficando por aqui, “mode” vigiar. Isto é lugar de muita cobra e cobra é
bicho do diabo!
— Quem lhe meteu na cabeça que aqui tem
tanta cobra assim?
— Ih! eu sei. Tem mesmo. Tem que é coisa
por demais. Este mato está cheio de jararacas, corais, cascavéis, caninanas e
cobras de veado. Infelizmente, só não tem papa-ovas, que são as que comem as
outras. Escute, “seu” moço, já morei aqui pertinho, na Ipueira do Gonçalo, detrás
daquele cerrado de bálsamos e trapiás. Ainda lá devem estar os restos da minha tapera.
Eu tinha no copiar uma cangalha velha, que era a minha ratoeira de apanhar
cobra. Todas as manhãs, a gente levantava a cangalha e achava debaixo,
enroscadas, uma, duas, ou três bichas. Prendia-se cada uma á ordem de São Bento
e marrava-se o pau na cabeça até matar.
Sorri. O “cabra” mudou de posição, sentou-se
numa das raízes do mulungu, bateu o cachimbo apagado, tornou a enchê-lo e a acendê-lo.
Tirou duas fumaçadas e continuou:
— Creio que tenho o destino de morrer de
cobra, mas também tenho matado tantas! Ainda “isturdia” me aconteceu uma!
Virgem Maria! Foi nos mocosais da Serra Negra. Estava caçando mocós e escondi-me
em riba daquela fenda estreita que divide a ponta da serra, como se lhe tivessem
dado uma machadada. Espiei primeiro o lugar. Fervilhava de mocós! Nem cortiço
de inxui, quando se acende fogo “mode” espantar as abelhas. Escondi-me, como ia
dizendo, e rocei dois pauzinhos, afim de imitar os guinchinhos dos bichos e chamá-los
fora da toca. Fiz pontaria no maior que vi e dei o tiro. Vosmincê sabe que tiro
em mocó tem de ser mortal, senão ele foge, arrastando as tripas, e vai morrer
dentro do buraco, onde não há cristão de juízo que enfie o braço. É sempre
esconderijo de cobras. Elias são doidas por mocó.
O chumbo matou-o, mas ele rolou na
beirada da grota e caiu lá em baixo. Tornei a fazer a chamadinha. Vieram ver o que
era. Fiz fogo noutro. Tornou a rolar no corte. Então, cheguei à beira e olhei.
Os dois bichinhos estavam presos à uma ponta de pedra, ao meio da descida.
Resolvi ir buscá-los. Larguei a espingarda e comecei a descer entre as duas íngremes
paredes, sustentando-me com os pés e as mãos num lado e noutro, à todo
arreganhado “que nem” Judas na forca. Assim, fui me chegando ao lugar onde
estava a minha caça e a perdi sem poder fazer a menor ação. Sempre digo que
cobra é o diabo!... Mal me preparava para largar a pedra dum lado, estender a
mão e apanhar os mocós mortos, à minha vista, uma caninana de mais de uma vara
de comprimento sai dum buraco e come com toda a calma os dois, um depois do
outro. E eu, entanguido entre as duas paredes, sem nada poder fazer, dando até
graças a Deus e ao senhor São Bento que ela me deixasse em paz. Credo! Nunca
passei por “agonia” maior, “seu” moço! Tornei a subir como tinha descido, de
mãos abanando e furioso por não ter podido dar cabo daquela maldita ladrona.
Porém vinguei-me delia. Matei terceiro mocó, atirei-o na tal ponta de pedra e
fui de espingarda carregada para a beira do precipício. A danada veio pelo
paredão, de língua de fora. Com uma boa carga de chumbo, esmigalhei' lhe a “caixa
do pensamento”!
Larguei a rir, como rira do “poema”. O Luís
olhou para mim muito sério e prosseguiu, agora sob o peso de imensa tristeza:
— Mas meu destino é morrer de cobra. Meu
coração adivinha. É capaz até de ser hoje mesmo, pensei lá no caminho, quando a
coruja rasga-mortalha largou aquela risada. A cascavel de tocaia deu-me mesmo
um “batecum” no coração... Cobra é o diabo!
Vasta manada de nuvens negras, tangidas
devagarinho pelo vento nos campos iluminados do céu, cobriu o rosto da lua e
encheu de trevas o sertão. Era tarde. Levantei-me, dizendo:
— Bote fora os pensamentos ruins e vamos
dormir, Luís. Boa noite.
O homem ergueu-se, deu alguns passos atrás
de mim, os pés dentro das tiriricas rasteiras e, antes que me respondesse o boa
noite, soltou um grito:
— Ai! Diabo!
Levantava o pé esquerdo, segurando-o com
as mãos. No escuro nada se via. Risquei um fosforo e divisei perto do artelho
uma diminuta picada vermelha. Ele pôs nos meus olhos espantados os seus
estranhamente calmos e disse com resignação:
— Eu não lhe disse, “seu” moço, cobra é
o diabo!...
Quem passa hoje pela varjota do Acampamento,
como é chamada, vê, à sombra de frondoso mulungu, toucado, às vezes, de frutos
rubros, uma cruz de madeira tosca, rodeada de pedras. É o tumulo humilde do
maior matador de cobras do sertão — Luís de Assunção Carneiro, apelidado Luís
Fusco.
Orem por ele.
---
Gustavo
Barroso (Alma Sertaneja, 1920).
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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