(A Vicente de
Aarnoso)
Barcelona e o seu porto com incendiados espelhamentos de sol nas águas
que se agitam em pequenas ondas, águas-fortes de mastros a distância, toda a
geometria do horizonte cinzento cortado pelos perfis dos vapores! Há dorsos
vermelhos de navios, nodoas negras das barcaças de carvão, até a florescência
de um yacht que emerge entre a poeira
negra da fumaraça, e os fardos, e as pipas, como uma delgada flor de prata...
Para além da cinta da doca, ao rês do mar, o céu toma tons brancos que
se esbatem e degradam na ascensão, acentuando-se na cúpula um azul fino. E os
vapores passam, pequeninos, carregados de vagas multidões para Barcelonete.
Para além da formidável estátua de Colombo, as Ramblas sacodem os ramos
verdes dos plátanos e o Tibidabo recorta-se, escalvado.
— É amanhã o vapor para Malorca, informam-me.
Volto para trás, deixando o ruído dos guindastes e das sereias, a bulha
dos catraieiros e descarregadores, para entrar noutro bulício tão grande, o
zumbido dos milhares de bocas que cruzam a Rambla, as campainhadas dos
transvias, a buzina dos automóveis, com gritos diversos, pragas, pregões, injúrias
guturais dos catalães furiosos.
Sentira desejos de ver Palma de Malorca em que me falara Teixeira Gomes,
as suas igrejas caladas, os seus palácios antigos. Por ele sabia que a cidade
conservara-se imóvel, típica, como no princípio do século XIX. E a sua conversa
luminosa e pitoresca acirrara-me o desejo de visitar uma terra que, na convulsa
marcha do século industrial, imobilizara-se nos seus antigos sonhos de pedra.
Aborrecera-me já Barcelona, comercial, trabalhadora, respirando pelas
mil bocas das suas chaminés; parecia que a alma da cidade andava triturada
pelos poderosos engenhos das suas fabricas. Vira os seus teatros, os seus
museus, Santa Maria de la Mar perdida entre o casario; mas em toda a parte o
comercio abria ruas, estendia fazendas, cruzavam-se os camions.
Ah! Salamanca parada e quieta, a morrer numa agonia de ouro! As saudades
que tive da paz das suas ruas bordadas de igrejas e de palácios, das
catedrais suntuosas e desertas, das pequeninas paróquias, onde se descobrem
ainda, através dos vandalismos, curvas de arcos românicos, flores de capitéis
graciosos; de Santo Estevão e o seu claustro que a hera invadiu, do balneário,
antigo claustro de convento e do Monterrey maravilhoso, da Universidade quase
sem estudantes!
Aborrecia-me Barcelona, toda entre árvores, Barcelona e o soturno
Monjuich com a lenda dos suplícios dos anarquistas.
Ainda um dia! Era preciso depois de jantar subir à Gran Via e
ir ao tumultuoso café ouvir a gritaria ensurdecedora, passear pelas Ramblas
entre uma multidão compacta que espairece, ver as caras angustiosas dos
operários, sempre na véspera de uma revolta, e os pobres que nos perseguem pela
esmola, e as raparigas sujas, enrugadas, que se oferecem, num xale roto.
Ao entrar no "Paseo de la Aduana" para esperar um transvia que
me levasse ao Parque, vi passar numa carruagem, fresca, toda vestida de branco,
como um ramo de goivos brancos, Chiara Lilian, a cantora italiana que meses
antes conhecera em Genebra, no Kursaal, e com quem passeara no Leman, pelas
tardes quietas de agosto e pelas noites de luar, ouvindo-a cantar, não as
operas transcendentes com que regalava os suíços e ingleses, mas ligeiras
canções napolitanas, que tomavam na sua boca uma voluptuosidade mais fina e
adormeciam, envenenando-as, as nossas Almas.
Ah! Chiara Lilian! As tardes límpidas e serenas em que vimos a paisagem
doce, fecunda, do cantão de Genebra, no vapor da carreira, alheados das
inglesas de Cook, de dentes monumentais e canotiers ridículos!
E as noites frias, em que deixávamos o Kursaal e os petits chevaux e
íamos, costeando o cais iluminado, num pequeno bote que o ruivo barqueiro
conduzia serenamente, respirar a delicia do luar pastoso, que parecia ter em si
um pouco da neve do Monte Branco!
Lord Carnehan, o seu amante, acompanhava-nos. A tristeza da sua face, de
todo o seu corpo cansado! Parecia ter sentido, aquele rapaz de trinta anos,
todo o travo da vida, visto desfolhar-se, uma a uma, todas as ilusões, as
ambições murchar, como quem assistisse ao incêndio de todos os seus haveres e
dos próprios castelos no ar que a sua mente criara.
Nem alcoólico, nem eterômano, abominando a morfina e a cocaína, tomando
uma leve taça de café, apenas, resignara-se na vida, "deixava-se
morrer", dizia.
Andava com Chiara, porque era preciso ter uma amante, como uma ecurie,
um palácio em Londres, um castelo na Escócia e uma vila na Riviera,
decorada por Burne Jones.
Chiara Lilian era a sua vontade. Ia para onde ela quisesse, para fazer
alguma coisa e não ficar, no hall do
Metrópole Hotel, de olhos pasmados para os decotes largos das ladies,
que liam jornais.
Mas nenhum amor, nem mesmo sabia, talvez, se era macia a pele da
cantora. E assim viviam, ela feliz pela liberdade, risonha como um galho d'eglantines, ele, com uma razão
de viver: acompanhar Chiara.
Chiara, que viu o meu cumprimento, mandou-me subir para o trem.
— Venha comigo ao parque... se não tem melhor...
— Ia justamente para lá aborrecer-me...
— Então venho a propósito...
Perguntei-lhe por lord Carnehan.
— Ó meu Deus! Lord Carnehan tornou-se para mim uma obsessão. Era como um
vidro negro que me punham nos olhos para eu ver a vida. Nada me parecia claro,
luminoso, florido. Julgava olhar sempre para dentro de um poço seco. Essa
criatura estragou-me alguns meses de existência. A princípio ainda eu ria, pelo
movimento adquirido. Mais tarde, porém, o riso desapareceu. Sempre aquele
sonolento homem que só abria a boca para perguntar pelas horas, como se tivesse
pressa de alguma coisa, ele que não fazia nada, ou para dizer alguma
sentença, um aforismo de Schopenhauer ou de alguns dos fulminantes católicos, à
maneira espanhola, sombrios, repulsivos. Comecei a olhar para o espelho, a ver
se sabia rir. Não sabia. Vinha uma careta ao contrair a boca; parecia-me de
pedra os lábios, ao querer abri-los num sorriso. Quis mortificá-lo, fazer com que,
atrás de mim, os amorosos corressem; empreguei, ante os seus olhos pardos, o
requinte do coquetismo; mostrei todo o artifício de mulher e de atriz. Nada.
Sempre lord Carnehan indiferente, a cabeça sobre o peito, as mãos pendidas, a
perguntar-me periodicamente: — Que horas são? De quando em quando, sem lhe
dizer aonde ia, deixava-o todo o dia; às vezes, aborrecida, nem ia à rua.
Ficava no meu quarto, as lágrimas nos olhos, a ver o movimento dos bateaux-mouches a
atravessar o Leman; os raros automóveis que passavam pela rua e alguns ranchos
de forasteiros arregimentados pelas agências. Arrastava-se o tempo; defronte de
mim, o lago que à esquerda se curva, límpido, transparente. Na outra margem, o
parque Jean Jacques, alinhado e limpo, como um desenho do concurso. E era ali,
à direita, a árvore que dera sombra, na tarde criminosa, em que o anarquista
matara a Imperatriz Isabel. Pensava no fim trágico que ali procurara, sob um
pequeno plátano viçoso, a alma aventureira e poética, a dama de todas as
viagens, que vira tantos céus ensolados e tantos mares em procela... Quando
voltava, de propósito despenteada, com muito rouge na face, a fingir corada,
lord Carnehan levantava com esforço os olhos para mim e perguntava-me, na voz
pausada, sem um estremecimento:
— Que horas são?
Eu era o relógio, para ele! Nessa terra fria, geométrica, regular no
andamento como uma máquina — a alma de Genebra é um relógio — eu não era nada
mais do que um cronômetro em que se tem confiança. Um dia, furiosa, comprei um
relógio e ofereci-lho. Imagina que acabou a história? Não. Comecei a fazer-lhe
cenas, a dizer-lhe impropérios em calão dos bairros ínfimos de Londres — uma
artista conhece tudo e o resto — frases de marujo; ele ouvia, ouvia, e depois
tirava o relógio da algibeira e dizia-me:
— Por força que este relógio atrasa! Que horas são?
Quis matá-lo. Uma noite entrei no seu quarto. A lamparina envolvia tudo
em penumbra. Até a dormir tinha o ar cansado. Levava uma máscara de
clorofórmio... Conhece o conto de Lorrain sobre as máscaras de Londres? foi
nele que me inspirei... Ia para lha por na cara e acabar com ele. Tropecei numa
cadeira. Carnehan acordou sem sobressalto. Olhou para mim:
— O quê? já manhã? Que horas são?
Não! Não era possível! Pensei em atirar-me da janela abaixo. Não podia
mais com a vida. O diabo é que estragava o penteado! Resolvi fugir. Fiz as
malas, guardei joias e dinheiro, rompi a escritura com o empresário, perguntei
por minha vez que horas eram a Carnehan — a cara que ele fez! — e meti-me num
comboio e vim para a Espanha, onde há sol, há muito sol e não quero nunca saber
que horas são!"
A sua face parecia uma flor de perola, e na boca fortemente pintada um
sorriso brilhou...
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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