Casamento e
mortalha...
Tinha
sido o seu primeiro, o seu único amor.
Conheceram-se
ainda ela usava as saias curtas, e preparava-se ele para deixar o calção.
Viviam
em prédios contíguos, de modo que se viam a toda a hora, umas vezes à janela,
outras vezes no quintal, vindo a estabelecer-se entre as duas crianças sem
malicia uma intimidade que se traduzia em olhares acariciadores, sem palavras e
sem gestos.
As
respectivas famílias não se visitavam, nem sequer trocavam um cerimonioso cumprimento
de janela para janela ou quando se encontravam na rua, cada qual seguindo ao
seu destino.
Quando
ela saiu do colégio, muito instruída e muito bem educada, entrou ele para a
Universidade, com dezessete anos completos, e já então o namorico de crianças,
que a família dela via com maus olhos, contrariando-o discretamente, tomara a consistência
de uma paixão fortemente enraizada, absorvente e dominadora.
Uma
criada velha, mais velha na casa que a própria mãe da menina, condescenderá em
proteger aqueles amores castos, de uma ingenuidade pueril, mas já tão
fortemente enraizados, que se via bem não ser possível contrariá-los sem abrir
feridas sangrentas.
Porque
contava na família um corregedor e um bispo, a mãe da menina, com proa de
fidalga, só pensava em doirar os seus brasões à custa da filha, casando-a muito
rica. Por isso contrariava aquele namoro, sobretudo agora, já estudante da
Universidade o rapaz, com fama de bom estudante, e já verdadeiramente uma
senhora a filha, tão forte, tão desenvolvida que ninguém lhe fazia a idade que
tinha.
Deviam
casar logo que ele terminasse o curso e obtivesse uma situação, fosse qual
fosse, de conformidade com as suas habilitações, que lhe permitisse ter casa,
assumir as responsabilidades de um ménage, contando apenas com os seus
recursos.
—
Sabes? Receio muito que na hora decisiva te falte a coragem para resistires a
tua mãe, que até parece ter-me ódio, como se eu fosse uma pessoa degradada,
absolutamente indigna de se ligar a uma família honesta, sem heráldica e sem
fortuna...
—
Tontinho! Se não casasse contigo, morreria solteira, mas nem concebo que haja
forças humanas que me arranquem dos teus braços, quando chegar o momento de ser
[tua, unidos por laços indissolúveis...
Sucedeu
que tendo ele empreendido uma viagem à África, por conta de uma Companhia, com
demora de alguns meses, o que representava um bom começo da sua vida de
advogado, os pais dela, ambiciosos e raciocinadores, com muita prosápia e pouco
dinheiro, meteram-na à cara de um brasileiro rico, o qual, preso aos seus
encantos, lhe ofereceu a mão e a fortuna, uma belíssima fortuna, avaliada em
muitas centenas de contos. Era o futuro com tudo quanto pode encher a ambição e
lisonjear a vaidade de uma criatura fútil.
Três
meses depois dela se fazer a esposa desse brasileiro opulento, tornara-se ele,
despeitado, o marido de uma prima rica, muito rica, que vivera, sempre
apaixonada por ele, na província, e jurara não casar enquanto ele fosse
solteiro.
Compreendia
que eia, lutando contra o despotismo dos pais, dominados só pelo interesse,
acabasse por ceder; mas sabia que ela não levara muito longe a resistência,
facilmente esquecida da promessa solene que lhe fizera — se não casar contigo,
morrerei solteira. Casando rico, ela não o afrontaria com a sua fortuna, e
seria obrigada a reconhecer que ao seu amor ele teria sacrificado a prima, quase
tão rica como o brasileiro, e em nada inferior a ela, sob qualquer ponto de
vista.
Doze
anos mais tarde, num colégio de Londres, visitava ele a sua filha única, a sua
boa fada, uma rapariga forte e esbelta que era a própria luz dos seus olhos, a
vida da sua vida. Custara-lhe muito separar-se dela, mas em Portugal não havia
um colégio de meninas, para onde a mandasse com absoluta confiança, e queria
instruí-la e educá-la por maneira a fazer dela, não apenas uma rapariga
interessante, mas ama mulher distinta. Não a queria sabichona, à maneira de
Molière; mas também não a queria paradisiacamente ignorante à maneira portuguesa.
Queria lhe muito; mas não o cegava o amor que lhe tinha, levando-o a exagerar
os seus talentos e virtudes. Eram admiráveis as suas qualidades de inteligência
e os seus predicados de caráter; nela havia tudo a desenvolver, e coisa alguma
a corrigir. Grande admirador da Inglaterra, como Nação, as suas prosperidades
atribui-as às qualidades individuais dos seus filhos, gente da mais rija
tempera, criada e educada no respeito e no amor da Pátria, cada inglês considerando
o seu País como um prolongamento ou amplificação da sua casa, o seu heme, moralmente
obrigado a sacrificar-lhe tudo, quando ele careça dos seus sacrifícios.
—
Demora-te um instante, papá, que eu quero apresentar te a minha amiga.
Da
mesma idade, quase da mesma estatura, uma loira, a outra morena, aquelas
meninas estimavam-se como se fossem irmãs; nunca um farrapito de nuvem
passageira toldara aquela amizade infantil.
Nunca
saíam urna sem a outra, e no colégio, quer no estudo, quer no recreio, estavam
sempre juntas. Tinham os mesmos gostos, as mesmas predileções; vestiam pelo
mesmo figurino, tocavam as mesmas músicas e liam os mesmos livros. A inevitável
intriga dos colégios, comum a todos os internatos, não atingia as duas
amiguinhas, que dir-se-ia terem nascido do mesmo ventre e na mesma hora, fisicamente
distintas, moralmente semelhantes, de uma semelhança tão grande que dir-se-ia
uma igualdade. Gozavam da estima geral, e certas atenções que por elas
manifestavam as Mestras, deferências especiais que tinha para com elas a diretora
do Colégio, não despertavam o ciúme das outras meninas, talvez porque elas,
excessivamente modestas, não tiravam daí nenhum motivo de envaidecimento, e tão
espontaneamente, com tanto zelo observavam a disciplina da casa, que dir-se-ia
viverem no permanente receio de sanções rigorosas para as suas mínimas faltas
de crianças.
Seria
possível?...
Aquele
ar senhoril, de uma rara distinção; aquele olhar macio, de uma volúpia casta;
aquele sorriso vago, nem triste nem alegre, como se fosse ao mesmo tempo a
expressão de uma saudade longínqua e a esperança duma felicidade remota...
Ficou-se,
mudo e quedo, a olhar a grande amiga de sua filha, quase não se atrevendo a cumprimentá-la,
mal se decidindo a beijar-lhe a face que ela, numa admirável intimidade, oferecia
aos seus lábios em febre.
Seria
possível?
Era
a mesma figura e o mesmo nome, precisamente a gentil criança que ele namorara
da sua janela e do seu quintal, trocando olhares acariciadores, discretamente
conversando sem palavras e sem gestos. Evocava esse passado longínquo, e sentia
a dor, o sofrimento torturante de uma felicidade quase realizada, uma promessa
de bem-aventurança convertida de súbito numa condenação de réprobos.
Ia
a fazer-lhe perguntas, acariciando-a, quando ela, num salto de gazela, a correr
pelo vasto pátio, grita como que para dar o sinal de alarme:
—
Olha a mamã!...Olha a mamã!
Ouve-se
o toque duma sineta, convidando as visitas a retirarem-se.
—
Quando voltas, papá?
—
Quando voltas, mamã?
À
porta do colégio, instalando-a no cab que a trouxera, apertando-lhe
muito a mão:
—
És feliz?
—
Sim, quanto se pode ser com o coração partido. E tu?
—
Também, quanto se pode ser feliz com a alma em farrapos.
Tinha
sido o seu primeiro, o seu único amor!
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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