Candidinha Cerdeira
(Novela romântica)
(Novela romântica)
"Pasmei, como a gente pasma até certa idade,
das maravilhas que se fazem no coração das raparigas."
Camilo
Em casa da D.
Leonor, viúva do juiz Cerdeira, — que era irmão do afamado cônego Amorim
Cerdeira, vigário geral na diocese de Angra — falou-se muito toda essas noite
na vinda do novo professor do liceu.
Chamava-se
Hipólito e trouxera a irmã, Alzira, rapariga loira que usava uns chapéus
enormes e punha beladona detrás das orelhas para fazer os olhos bonitos...
Era uma
excêntrica. A história da vida e obras de certa princesinha otomana, filha dum
velho imperador de Constantinopla, extravagante até à loucura em matéria
de garridice, lida num volume que o irmão lhe emprestara, pô-la em termos de
aspirar a utopias: desejaria banhar-se num lago d'águas perfumadas, ungir o
corpo de óleos aromáticos, ter um jardim suspenso e uma multidão de escravas
que fossem todas as manhãs colher o orvalho das flores... para ela refrescar o
rosto.
Custara-lhe
imenso a deixar Lisboa e vir assim encafuar-se numa aldeia, — porque era
positivamente uma aldeia aquele feio e triste burgo de aspecto desolado e
monótono, onde não conheciam ninguém.
Enfim, para
quem trazia os nervos combalidos dos sobressaltos e incertezas das grandes
horas da Revolução, aquilo até certo ponto convinha. Tinha amenidades de
paraíso a paz podre, o sossego vegetativo e pacóvio daquela terra pequena, com
sua vida imutável, seus hábitos conservadores e sedentários, um modo
bisbilhoteiro de vir às portas e às janelas espreitar, e certo centro palreiro de
maledicência e política, que logo lhes disseram ser ali a loja do amigo Palma.
Quem pôs a
cidade ao par de toda a biografia do professor e da irmã foi o Malafaia, o
grande bacharel Malafaia, de quem o Dr. Marim, médico do partido, dizia:
"— Este não se formou: formaram-no..."— Conhecia-os de lhe terem sido
apresentados há anos na Figueira da Foz. Alzira confessou-lhe agora, quando os
visitou, que gostava muito da cidade.
— O quê!
sério?
Sério. Dava-se
bem com os ares, que eram puros, saudáveis, e com a água, magnífica! Apenas uma
única coisa a contrariava deveras: ter de viver num hotel..
Malafaia
reconheceu que havia em todas aquelas referências uma pontinha de malícia.
— No hotel?
disse. — E por que é que vossas excelências não arrendam uma casa?
— Porquê? Ora
essa; o doutor nem conhece a sua terra... Porque as não há!
Realmente não
as havia. Que aborrecimento!
— Eu não sei o
que os senhores fazem ao dinheiro... — tornou Alzira, achando mole e
carregando.
— Também o não
há... — respondeu o bacharel.
Todos riram
com a resposta. O professor declarou no entanto achar-se resignado, contente...
Apesar desses pequenos defeitos — e qual era a terra que os não tinha? — aquele
meio era delicioso.
— Só esta
pacatez!...
E abeirou-se
da janela, encheu os pulmões do ar puro que vinha das altas montanhas
distantes.
— Quer saber?
murmurou, — minha irmã, a primeira noite que aqui ficamos, não conseguiu pregar
olho...
— Então? Por
quê?
— Por causa do
silêncio!
D. Leonor
vivia com a filha, Maria Cândida, — a Candidinha — que andava agora nos dezoito
anos e ainda engatinhava quando o pai morreu de congestão cerebral. Reunia
aos sábados. Iam quase sempre o juiz da comarca e a mulher; o Sr. Xavier —
o Xavier das massas
— solteirão abastado e artrítico; o Dr. Marim e às vezes uma D.
Josefina, também viúva, que fora operada por ele duma doença de útero. Tudo
gente de idade. Maria Cândida aborrecia-se daquela vida. A mãe andava sempre a
dizer-lhe:
— Que cara que
tu trazes, rapariga! Nem parece que te luz o que comes. Endireita-te! Que há de
dizer a outra gente.
O Dr. Marim
tinha um facataz pela pequena. Achava-a esperta, interessante, em tudo
revelando um caráter diferente da vulgaridade. Dedicara-se-lhe por isso com um
entranhado amor de pai, em certas ocasiões surpreendendo-se a chamá-la, a
acarinhá-la como se ela realmente fosse do seu sangue... Também, a cachopinha,
logo de tenra idade correspondia àquele amor; e quando o médico, a brincar, lhe
perguntava se queria ir com ele, fugir da mãe para longe, a petisa saltava-lhe
ao pescoço, a cobri-lo de beijos, sem dizer palavra, — lá no fundo a desejar
que ele a levasse... D. Leonor sorria; intimamente porém desgostava-se.
Desenvolveu-se à pressa, espigou dum dia para o outro, Maria Cândida. Todos
diziam: — "Está uma senhora!" E deu então em andar triste, murchita,
nervosa, a ponto de a mãe se alarmar, perguntando ao médico o que seria. O
médico ria-se, receitava:
— Banhos...
Água p'ra cima daqueles nervos! E deixe-a sair, não a prenda em casa, que estas
idades querem sol...
Maria Cândida
tinha-lhe dito um dia:
— A mamã
quer-me para freira, não há dúvida. Tem medo que eu saia, proíbe-me que chegue
a uma janela, não me deixa mexer se não nos livros do tio Cerdeira, que são
todos em latim. É pior!
O médico ficou
a ruminar a gravidade daquele comentário; "é pior!"; distraindo o
olhar pela variada, profusa, quase incongruente decoração da sala, onde D.
Leonor recebia aos sábados. A rapariga tinha razão: educar, pensava ele, é
formar seres conscientes, livres, não é torcer aptidões e
tendências naturais por forma a amoldá-las ao próprio interesse de quem
educa. Dizer a alguém: "hás de ser isto ou hás de ser aquilo, porque eu
quero, porque convêm, porque é assim", e não admitir sequer que esse
alguém raciocine, ou sinta, ou queira doutro modo, — é um absurdo. Tão grande
como se uma pessoa que tivesse fome em dado momento, exigisse dos mais, no
mesmo instante, a mesma vontade de comer...
O médico, por
fim, demorou os olhos sobre um enorme quadro exposto numa das paredes do fundo,
que representava um trecho de paisagem oriental: palmeiras, filas de camelos
pensativos e gibosos; e um beduino barbinegro, prosternado, osculando o solo
poeirento, onde poizara o cajado de larga crossa e as babuchas de palha de
arroz...
O Dr. juiz
nunca via aquilo que não exclamasse: — Lindo! — e encavalava a luneta para ler
o nome do autor, que lhe esquecia sempre.
Maria Cândida
sentou-se ao piano. Imprimia ao que tocava um movimento de embalo, vagaroso e
triste, que tanto podia traduzir a influência duma vida pendular,
claustral e monótona, refletindo-se-lhe nos sentimentos, como a aspiração vaga
e inquieta duma alma que procura no ritmo da música o ritmo do voo...
Conheceu
Hipólito num domingo, à saída da missa, onde o professor fora acompanhar a
irmã. Malafaia, que aparecia em toda a parte por um maravilhoso dom de
ubiquidade, mal os avistou, fez as apresentações.
D. Leonor não
gostou. Aconselhara-a o Sr. Xavier que não quisesse relações com semelhante
gente: "gente de Lisboa, sabe? uma educação muito livre." E torceu o
nariz, fez o gesto vago de quem prevê calamidades.
Durante a
missa Maria Cândida notou que o professor a fitava com uma curiosidade
insistente. Tinham ficado todos, casualmente, em cima, no coro. Através dos
balaústres ela via o padre ao fundo, oficiando; e atrás, enchendo a comprida
nave, o povinho das aldeias que vinha aos mercados semanais.
Hipólito
ficara junto de Alzira, que trazia como sempre um chapéu escandaloso, e
observava os menores gestos de Maria Cândida. Viu-a abrir o livro,
persignar-se, bater no peito devotamente quando o padre consagrou a hóstia e
ergueu o cálice e, no silêncio religioso da igreja, o som da campainha vibrou,
duas vezes, com solenidade e cadência.
Um raio de sol
filtrou a sua luz pura por uma das altas janelas da nave e foi refratar-se nos
pingentes dum lustre de cristal pendente da abóboda, incidindo por fim, já
irisado, no cabelo, nas faces, no manto azul duma Senhora das Dores, que
chorava no altarzinho duma das capelas laterais... Maria Cândida rezou-lhe uma
oração fervorosa e a Virgem pareceu sorrir por entre as lágrimas, agradecer, no
seu banho de luz — no que Maria Cândida viu um sinal de bom agouro...
Quando lhe
apertou a mão, cá fora, e a pode observar à claridade crua do meio-dia, perto
de si, Hipólito ficou encantado. Era o tipo sonhado, inédito, da beleza
inculta, da simplicidade provinciana. Tinha na fala o sotaque da pronúncia
beiroa, autêntica, sibilante de ss; e nos olhos um ar assustadiço, implorativo e
meigo, de herbívora.
A caminho de
casa, Alzira disse ao irmão:
— Se um dia te
desse para o casamento, gostava que casasses com uma rapariga assim...
E ele:
— Quem havia
de dizer que numa terra destas!...
D. Leonor
guardava a filha como um dia santo. Não a votava decerto, esterilmente, ao
celibato, mas reservava-lhe um destino a seu gosto. Não a tinha trazido no
ventre? Não a tinha criado, educado, sofrendo por ela penas e reveses? Sabe
Deus!
— Quando se
tem a tua idade, pregava-lhe, não se pensa, não se reflete, deixa-se a gente
levar pelas aparências; mas depois... Teu pai, quando casamos, não tinha
vintém, — e diziam que era esperto... Ao princípio vi-o muita vez a chorar, a
arrepelar-se, a pensar em morrer. De que lhe servia a esperteza? Serviu-lhe mas
foi o irmão, que era um homem de tino e de fortuna, com amigos a valer que
lhe arranjaram o despacho...
Maria Cândida
escutava sem retorquir. Percebera que a mãe queria casá-la com o Xavier. — O
Xavier! Um velho! um antipático que usava meias de lã ásperas como urtigas, que
desabotoava o colete depois de jantar e, sobretudo, que podia ser avô dela!
Metia-lhe horror e repugnância tal ideia. Nunca! Nem que tivesse de ficar
solteira, como as tias de Freixinho...
Uma amiga do
colégio — a Matoso — tinha-lhe jurado que o professor andava com boas
intenções; que aquilo não era um passatempo; que lhe afirmara o Malafaia —
sabes? o Malafaia que agora me faz a corte... — que o casamento era infalível.
Ela punha-se
com evasivas:
— Pois sim...
Eu então já ouvi dizer que era contigo...
Entretanto o
namoro progredia. Não era segredo para ninguém que se carteavam e que tinham
entrevistas do mirante do jardim. Em toda a parte se comentava isto: a
paixão do professor do liceu e da Candidinha Cerdeira.
E amiudava-se
o caso, referiam-se pormenores excitantes. Havia quem tivesse visto o
professor, feito Romeu, trepar por uma escada de corda para o muro do quintal!
Mera invenção, claro. Mas o Matos do governo civil também vira — porque via
sempre tudo e jurava ser verdade por duas filhas que lá tinha em casa.
D. Leonor deu
conta que Hipólito lhe passava repetidas vezes à porta, que se pespegava horas
e horas no estabelecimento da esquina a olhar para as janelas. Estremeceu de
angústia! Deu terminantes ordens à filha, que passou a habitar os aposentos
interiores do prédio. O Sr. Xavier tinha-lhe abertamente declarado,
submetendo-se a tudo:
— Arranje a
Sra. cá e chame-me quando for preciso...
Era o momento!
Mas, sendo
mulher, fraca, portanto, e irresoluta, quis estribar-se na opinião do médico,
pessoa também da sua inteira confiança.
— A minha
opinião? disse-lhe ele. — Mas alguém tem que dar para aí a sua opinião?
Ela encarou-o
com espanto, sem compreender.
— Entendo que
um casamento deve ser feito à vontade dos que se casam, explicou o médico. —
Casam bem? casam mal? Lá é com eles...
— Perdão,
interrompeu a viúva. — Eu, que sou a mãe, tenho naturalmente que intervir
dalgum modo na orientação, ou na escolha...
— Conforme,
minha senhora, conforme... Se se trata apenas de orientar, de dirigir a sua
filha nesse passo, está bem; mas propriamente a escolha, é a ela só que
pertence. Os filhos não são — como muita gente pode ainda erradamente presumir,
— uma legítima propriedade dos pais... Os filhos são pessoas independentes, com
direitos, com atribuições...
— De maneira
que o doutor condena a minha atitude? Entende que eu devo desinteressar-me por
completo do futuro da minha filha?...
— Por
completo!? Mas quem pensa nisso? Por completo, não, evidentemente...
— Bonita
doutrina, não haja duvida, murmurava D. Leonor sem o ouvir, fula, mordendo o
beiço, batendo nervosamente com o leque no joelho, repetidas vezes. —
"Casa-te, casa-te p'raí, rapariga, com o primeiro que te apareça..."
Havíamos de vê-las bonitas, se assim fosse!...
O médico
desistiu de discutir.
— Bem!
rematou, erguendo-se, — para terminar: quer vossa excelência um conselho, um
conselho de amigo, de pessoa que conhece um bocado a vida e que tem levado
muito ponta-pé e aprendido à sua custa o pouco que sabe? Quer?
D. Leonor não
respondeu.
— Não obrigue
sua filha a casar com semelhante homem.
— Ora essa!
Com quem quer o doutor então que ela case?
— Sei lá! Mas
naturalmente com quem ela quiser...
E pôs
termo.
D. Leonor não
desanimou. A manobra do casamento com o velho seguiu seus trâmites. Na cidade a
indignação era geral. Para mais havia constado a cena da entrevista com o
médico, as suas discordâncias, o ligeiro amuo subsequente...
— Víbora!
víbora! dizia-se. — O Dr. Marim bem a conhece...
E
formulavam-se as piores insídias: que o ilustre Xavier era amante da D. Leonor
e que impunha agora o casamento com a filha sob pena dum escândalo.
Havia quem
gostasse disto, havia quem não gostasse; a maioria dizia:
— É bem feito!
aquilo não se faz...
No cúmulo da
revolta, Malafaia, em verdadeiros comícios nas lojas, lembrava que era preciso
salvar aquela criança custasse o que custasse... E com teatral entono,
instigava:
— É preciso ir
lá (fazia o gesto de quem aponta uma Bastilha) arrombar as portas e por a
infeliz no olho da rua!
A coisa estava
neste pé.
Certo dia o
Dr. Marim recolhia a casa, cedo, para almoçar. A criada, uma velha servente
encarquilhada e seca como uma casca de noz, a coxear da ciática, disse-lhe, mal
ele se pós a desdobrar o guardanapo:
— Então, já
sabe? A menina Candidinha parece que já não casa com o Sr. Xavier. Está
desfeito.
O médico teve
um gesto de mau humor irreprimível:
— Lá esta
você! Todos os dias novidades! Quando é que esta criatura se cansará de dar
novidades?
E desatou a
rilhar o bife sem vontade. A velha rodou sobre os calcanhares, saiu da sala.
— Pois é tudo
cheio cá na cidade, insistiu quando voltou. — A menina julgo que sempre
confessou...
— Confessou o
quê, mulher?
— Olha o quê!
O que já corria: que é amante do professor...
O médico
ergueu-se de golpe, lívido, transfigurado, fazendo recuar até à porta a
pobre velhota espavorida de o ver assim:
— Credo! santo
nome de Deus! mas que tem? murmurou, supondo que o médico fora acometido de
loucura.
— Você ouviu
isso?
— Ouvi, sim
senhor.
— A quem?
Aonde? Diga.
— Por aí,
diz-se em toda a parte; é tudo cheio...
Ele levou
ambas as mãos ao crânio. Esteve assim, sem se mover, sem dizer palavra, por
espaço de alguns minutos. Depois arremessou o guardanapo, empurrou a cadeira,
pediu o chapéu e a bengala para sair — e saiu, deixando a mulher boquiaberta,
sem perceber coisa nenhuma.
Quando, uma ou
duas horas depois, subia as escadas da casa de Hipólito, o Dr. Marim ia
cabisbaixo, taciturno, como se uma grande dor o tivesse trespassado
mortalmente.
Estivera com
D. Leonor que lhe confirmou entre recriminações e prantos a tremenda nova
da desonra da filha. Fora ela, a dissimulada, quem se denunciara — com um
descaramento, uma serenidade, um cinismo, calcule o doutor, que deixava a
perder de vista as maiores desavergonhadas da terra! E era sua filha! D. Leonor
não sabia dizer como se contivera e porque a não estrangulara... Sua filha,
tinha dito? Não! Maria Cândida morrera! Essa que ainda ali conservava, adentro
do seu lar, por uns restos de comiseração, mas que nunca mais quereria ver, não
era sua filha: era uma mulher perdida!
E o Sr.
Xavier? Ah! esse então, coitado, tinha ficado como morto. Compreende-se...
Porque Maria Cândida levara a sua audácia até ao ponto de dizer tudo diante
dele, diante das criadas e dos convidados, — era um sábado — alto e bom som,
para que não se perdesse pitada: "A mãe queria casa-lá com o Xavier das
massas, por dinheiro; pois bem, ela afirmava ali terminantemente que não
casaria: primeiro, porque o detestava; segundo, porque tinha um amante, o
professor!"
— Veja o meu
amigo, agora, o que foi fazer! comentou o Dr. Marim, voltando-se para
Hipólito, a quem acabava de expor a situação com esta nitidez. — Que cabeça a
sua! Que responsabilidades!
Hipólito
sorriu ligeiramente, murmurou:
— Até que
ponto nos podem levar os desvarios do amor, doutor, não é assim?
— É assim
mesmo, concordou o médico. — Mas um homem nunca tem nada a perder com estas
coisas; agora uma rapariga!...
— Perde tudo.
— Sim, tudo!
Houve um
silêncio.
— O Sr. não
andou bem, Hipólito, confesse, não andou bem...
— Eu?...
— É claro.
— Na sua
opinião, pelo menos, doutor... Já me cheguei a convencer de que sou realmente
um canalha... pois que como tal procedo...
— Leviandades,
leviandades... — atenuou o médico. — Eu habituei-me a ver em Maria Cândida uma
espécie de filha, desde muito nova. Não admira. Tive-a nos braços quando
nasceu, pequenina, vi-a depois medrar, crescer, fazer-se mulher à minha vista —
afeiçoei-me. Que quer? Enfim... — limpou uma lágrima que lhe rolou ao comprido
da face — coisas da vida!
Depois,
apreensivo:
— O Sr. o que
pensa fazer agora?...
Hipólito ficou
sem responder, um bocado, com o espírito absorvido num pensamento cruel e
longínquo, que o fazia empalidecer.
— Vou
confiar-lhe um segredo, disse, por fim, numa resolução firme. — Devo-lhe muitas
atenções e custar-me-ia sinceramente que o doutor ficasse formando de mim um
conceito menos lisonjeiro...
— Fale, meu
amigo, fale, disse o médico ansioso por o ouvir. — Prestar-lhe-ei, creia, toda
a atenção. Fale...
Hipólito
hesitou; aprumou-se, procurando dar às suas palavras um tom solene, de grande
sinceridade.
— Maria
Cândida não está culpada; Maria Cândida não é, nem nunca foi minha amante!
— Que me diz?!
— A verdade! Maria
Cândida é tão virtuosa, hoje, tão pura e imaculada como na hora em que pela
primeira vez a encontrei. Não me acredita? Juro-lhe.
O médico
fitou-o, desconfiado, surpreso.
— Conhece esta
letra? disse Hipólito.
E colocou-lhe
diante dos olhos um papel cuidadosamente retirado da carteira.
— Conheço. É a
letra de Maria Cândida.
— Pois é.
Leia!
O médico
obedeceu. E quando terminou, os olhos arrasados de lágrimas, deixou-se cair
sobre uma cadeira, p'ra ali, varado de espanto.
— É
assombroso!
Hipólito
arrancou-lhe das mãos, trêmulas pela comoção, a carta, cujo final releu em voz
alta: "... Pois bem. Afirmarei, ou darei a perceber a todo o mundo que sou
tua amante; deste modo nenhum outro homem me quererá..."
— É
assombroso! repetia o médico estonteado. — E é uma criança! é uma criança que
faz disto!...
Enquanto
Hipólito, a chorar, concluía:
"Se me
desmentes... mato-me. E tu bem sabes — sim, tu bem sabes! — como eu sou capaz
de cumprir fielmente o que prometo..."
---
Fonte do texto: Project Gutenberg
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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