Camunhengue
Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer
pelo rosto do Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama
que ninguém sabia como explicar. Engrossavam-se-lhe as asas do nariz,
iam-se-lhe sumindo os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os
lados, recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas,
esfiapadas, ao mesmo tempo que a cabeça se despovoava de cabelos e uma quase
contínua fraqueza lhe bambeava as pernas, para baixo dos joelhos.
Às primeiras
mensagens daquela doença incompreendida, que, aliás, passava por nada na
opinião de todos da casa, não se alvoroçou nem se fez diferente o Zeca Estevo,
acostumado como estava a tudo quanto é bom e quanto é ruim na terra- Mas,
depois, quando se acentuaram os sintomas; quando deram os vizinhos de dizer que
"aquela empige vinha braba"; quando notou que os estranhos já o
olhavam com desusada mostras de reparo e quase de asco: foi então que entendeu
de cuidar de si, rebuscar "u'a mezinha com qualquer curandeiro ou surjão
dos arredores."
Lá pelas covancas do Guaçu, numa tapera escangalhada
e cheia de mato, assistia o Cabeludo, um prático de fama, que era a última
palavra nestas moléstias desconhecidas. O Zeca Estevo preparou-se com todo o
cuidado, mandou arrear a melhor besta de sela que tinha, escolheu o melhor
rapaz do sítio para camarada na viagem (porque tinha com que, o Zeca Estevo), e
riscou chão u'a madrugada,
nem bem o galo pipuíra, que lhe moiava em frente da janela, acabou
de bater as asas e cantar pela terceira vez.
Não se podia ler ainda urna carta e, além de
tudo, caía uma neblina muito fria, embora fosse tempo de milho verde. Mas em
riba dos espigões, que mal se divisavam através daquela cortina opaca, um
grande vulto cor de cinza-clara se movia já do chão para o céu, ligeira mente,
e era a manhã que rompia.
O Zeca Estevo despediu-se da mulher
com duas palavras apenas, porque a demora seria pouca e a saudade que levava
era muita. O filho mais novo, de cinco anos, que era a menina dos seus olhos,
como dizia, ainda teve jeito de lhe pedir um piquira lazão de crina brama, bonito
e manso como o do Candinho, o irmão mais velho, que andava pelos oito anos e
era pouco menos que um domador. Ele ouviu o pedido, respondeu que sim, que o
piquira havia de vir, — como não havia? — e passou a ferramenta pelo vazio da
mula, que se descanhotou logo, estrada a fora, violenta e macia no trote de
cão.
Lá se foi o Zeca Estevo, alegre e confiado. Houve
outros que partiram também confiados e alegres à pró cura do Cabeludo, mal
lembrados do horror que levavam dentro de si, no peito ou no coração, e que não
puderam voltar, entretanto, e acharam melhor, decerto, deixarem-se ficar
esquecidos e descansados, nalgum recanto de cemitério, em lugarejo sem nome ou
sem fama...
Mas, o Zeca Estevo não concordava com esse
abandono de vida longe dos seus: ou tudo ou nada, falava na véspera da viagem. Ou
sararia e a volta havia de ser urna festa; ou teria o desengano, e ainda assim
tornaria ao sítio, morto e já desmanchado que fosse!
Não era coisa a que se pudesse chamar bonita,
aquela tapera onde assistia o Cabeludo. Ao fundo dum angola praguejado, em que
a unha-de-gato, o cipó-caboclo e a japecanga se entrançavam, caindo dos maricás
ou dos ceboleiros, escurentada e escondida por um maracujazeiro de árvore, aparentava o
jeito de uni gato mourisco assanhado, que se encolheu e vai saltar de súbito à
cacunda tremente do xintã. Toda a gente sabia, contudo, que um mundão de
romeiros cheios de fé vingava diariamente aquele rincão, em busca do milagroso
experiente que distribuia a vida e a saúde a troco de uns sacos de mantimento
ou de umas poucas cabeças de galinhas ou leitões...
O Zeca Estevo escolheu a ocasião boa:
chegou à tapera ao fechar a tarde, quando já ninguém de fora lá estava e os
urus gargarejavam seu canto profundo e selvagem nos esgalhos das pindaíbas e
dos cedros, ali perto. Salvou logo do terreiro; e como visse que o Cabeludo não
se apressava a recebê-lo, entretido a tostar sobre as brasas uma cobra
engraxada de manteiga, fez chorar no saco da garupa os dois marrõezinhos mais
gordos que criava no chiqueiro e lhe trouxera, como presente especial, antes da
cura. O Cabeludo, nesse ato, virou-se para ele, vagaroso e solene.
Medo, terror, foram tolices que nada conseguiram do Zeca Estevo,
nunca na vida. Mas agora, àquela hora duvidosa do lusco-fusco, naquele ermo, um
irreprimível pavor se lhe foi apoderando pouco a pouco do espírito, à medida
que o morador da tapera lhe respondia à salvação e lhe perguntava pela saúde,
com voz pausada e um tanto rouca, em que havia muito de tempestade longínqua e
também de rugir contido e ferocíssimo de tigre. Sentiu curvarem-se-lhe os
joelhos, uma corrente de água gelada passar-lhe pela medula, porem-se-lhe a
pino todos os fios de cabelo do corpo e, juntamente, uma ânsia tão forte, de
tal modo sufocadora, que lhe constrangia a garganta e lhe fazia correr um suor
frio nas palmas das mãos e entre os vãos dos dedos.
Entrou na tapera, apesar de tudo. Contou sua vida ao outro,
largamente, e acalmava-se à maneira que a narração lhe ia fugindo dos
lábios para os ouvidos do curandeiro atento. Fora, sob o maracujazeiro, o camarada
assobiava enternecido uma tirana das derradeiras funções. E aquela tirana,
casada agora ao chiado monótono de uma cigarra já invisível, foi fazendo que o
Zeca Estevo de todo volvesse em si, ganhando outra vez a paz de espírito
de sempre, a calma que em todos ui casos lhe servira de máxima fortuna.
O Cabeludo, porém, tirara com a mão
esquerda n lampião de azeite, de um mancebo ao meio da casa e, com a direita, examinava-lhe
suavemente as faces, que se arrepanhavam grossas por sobre os zigomas, donde
pareciam debruçar-se para as maxilas como bambinelas rubras e extravagantes. Indagou-lhe
dos pais e dos avós; se nunca tinham tido mal de gálico, se nem uma mulher na
família quebrara resguardo de parto, por onde lhe tivesse vindo a doença triste
que faz a mão ficar de vaca a perder as unhas. E o Zeca Estevo, escutando semelhantes
interrogações, para ele desnecessárias e estúpidas, entrou de novo a possuir-se
de um enorme susto e pânico, entremetido de raiva e de fúrias, durante as quais
deixava de esganar o feiticeiro (parecia-lho naquele instante), só porque
acreditava bem na certeza do tratamento.
Houve uma pausa embaraçosa e embaraçadora nas
palavras do velho: foi a um canto da casa, ao pé do jirau em que dormia, puxou
uma gamela, pôs-se a lavar as mãos com uma orelha de timburi e já voltava pai u
o Zeca Estevo, num passo ondulado e mole, quando este quis saber o nome da doença:
— Antão, meu
patrão velho, o que é que eu tenho? O Cabeludo olhou-o de frente, com os olhos
parados e inexpressivos:
— O mal.
— O mal? Vancê tá
caçoando!
— Caçoando tá
você, menino! Pois antão você, quando veio aqui, não sabia já que tava camunhengue?
E olhe que é jareré dos graúdos, é dos brabos! Tome conta disso, antes que ele
tome conta de você!
O Zeca Estevo tinha o gênio
desabrido: vieram-lha repentes de sacar o punhal e matar no mesmo instante
aquele bruxo desgraçado. Mas, conteve-se:
— E o que é que
eu bebo pra sarar?
— Não beba
remédio, que pra isso não tem remédio, não hai mezinha. Coma carne de capivara
sem sal, por todo feitio, e a
da onça, que tá são. Mas largue do sal, se quer mesmo ficar como dante!
Anoitecera de todo. Um fantasma apavorante caminhava entre
as nuvens, serenamente, e no andar cadenciado e como que fraco imitava o do
curandeiro, que, entretanto, mudo e sombrio, se agachara encostado ao fogão,
onde recomeçava a tostar a cobra apetecida. O Zeca Estevo olhou-o, olhou depois
aquilo que caminhava terrível entre as nuvens: sentiu-se aniquilado, transido
de verdadeiro medo e ia gritar pelo camarada, quando as nuvens se abriram,
enchendo o arruinado casebre de uma claridade azulega de lata nova, e reparou
que aquele fantasma era a lua cheia, com seu São Jorge muito entusiasmado ao
alto e algumas tênues fumaças brancas e enrolaram-na como numa túnica.
Desamarrou os sacos' trazidos, pô-los
à porta da tapera, e montou a cavalo:
— Temo lua boa,
seu Chico: de madrugada tamo em casa: bamos embora!
Houve um forte e rápido rumor na estrada;
se não fosse tão rápido e tão forte, poder-se-iam ouvir os gemidos do Zeca Estevo,
homem que nunca tinha chorado na vida, de serra abaixo pra cá, tal qual se diz
na moda velha.
Não era tão tarde assim, que o Zeca Estevo não
tivesse lado de torcer um pouco da estrada e procurar o sítio dum conhecido
antigo, um criador em cujo potreiro vira ao passar, com sol alto ainda, um
poldro lazão de crina branca e palmatória, bonito e manso como o do Candinho, e
bem ao modo do que lhe fora pedido pelo José, a menina de seus olhos, a quem
não podia negar esta alegria tão fácil. E foi preciso mandar campear o petiço,
àquela hora velha e pelo cultivado úmido de orvalheira, porque o José lhe estava
a aparecer diante, todo risonho e satisfeito, ao ver que a promessa fora
cumprida.
Depois, quando se fez novamente ao caminho, entre um e
outro voo de pássaros no turnos, que lhe causavam singulares
vibrações de nervos, e ao pensar naquela criança pequenina e querida, para quem levava o cavalinho
adestrado, uma inefável piedade de si mesmo quase o fez soluçar e carpir-se:
via-se repudiado de todos, porque o negro mal-de-lázaro iria de mal a pior, não
o duvidava, e o José lhe seria companheiro de sempre, apesar de imenso
infortúnio, porque tinha uma alma afetuosa e cheia de bondade. E a mulher, sá
Januária, que fora o anjo da guarda de sua mocidade turbulenta e rixosa,
ia-se-lhe apresentando à memória vagamente, aureolada de uma luz admirável, como
as santas das oleografias.
A marcha troteada da mula soava pela estrada clara, num
ritmo acelerado e uniforme. E era tão sagaz, tão esperta,
tão valente, que mal o sol apontava da multidão de montanhas distantes, quando
o Zeca Estevo abriu a porteira do pátio, onde a criação renhia pelo milho atirado
de pouco. Sá Januária surgiu espantada da varanda, trouxe logo o café com
rapadura, e não chegou a perguntar-lhe a razão da volta tão apressada e o que
dissera o Cabeludo, porque logo o Zeca Estevo lhe foi contando:
— O
"home" lá me disse que tou sofrendo do mal. Mas a Januária também não
quis acreditar:
— Não é capaz,
isso é poaiage sua!
— Verdade,
mulher: o diabo inté me receitou capivara e onça.
Sá Januária duvidava sempre: olhou-o, remirou-o
com todo o sossego, convencida de que tudo aquilo não passava de uma cuca que o
Cabeludo lhe botara no marido, para ganhar molhadura melhor. E o Zeca Estevo,
banzativo, escorara-se a um catre desmantelado, donde olhava para a mulher com
ares muito alheios e remotos; por fim, como já pelos vãos das telhas coasse no
chão a claridade crua do sol, disse a modo de distraído, como quem não quer:
— Só se ele cuida
que é por causa deste inchaço que eu tenho há tantos dias nas orelhas.
Foi como se todo o mundo viesse abaixo! Ela reparou-lhe então
nas orelhas, que se haviam tornado intensamente escarlates, como queimadas do
sol, empipocadas e grossas,
pendentes para as faces num reviramento assustador dos bordos. Sá
Januária teve um arrepio de terror e um estremecimento fundo de compaixão: mas
conteve-se logo, desviando a conversa com pedir a Zeca Estevo a ajudasse em
passar pelo pescoço de uns franguinhos pipuiruçus uma pena de galinha, por
livrá-los da pigarra.
Vieram daí por diante os dias negros da tristeza e da
desconfiança. O Zeca mandava a lugares longes, por mantas de capivara e carne
fresca de pintada, tomava chá de raiz de inhame, todos os dias, fugia do sal,
corria da chuva e do sereno, mas cada vez piorava mais. Corajudo ainda
aparecia, de quando em quando, a bater u'a mão de truque ou pontear uns toques
novos na viola paranista. E, por mal de pecados, chegara o tempo das águas, com
uma ventania nunca, vista e um poder de tempestade todo santo dia.
Agora, com um bandão de desculpas
aumentativamente apertadas, sá Januária mudara de cama, dormindo com o José num
quarto pegado ao do Zeca Estevo, donde, " noites inteiras, ouvia-o roncar
e queixar-se de mil apoquentações e outras tantas dores. Fizera-se ele
irritadiço e mau de gênio, esbordoava os pevinhas à toa, botava chumbo nos
leitãozinhos tatus mais estimados, que se aventuravam até a varanda. Um dia que
matara a um de brinco, a sá Januária lho censurava entristecida, ele respondeu
rindo num riso rasgado e amargo:
— Ora, eu também
tenho brinco, e, se eu morrer, ninguém me sente!
Ao ver que todos, pouco a pouco, iam-no abandonando ou,
quando nada, deixando, também um poderoso desejo de absoluta solidão o
tomava, mesclado de raiva dos homens e desamor aos seus. Chegou a dizer a sá
Januária, quando ela lhe explicava, certo dia, por palavras travessas, o
motivo da separação:
— Eu aqui já não
valho nada, todos me largam ao deus-dará, como se eu fosse um trapo velho. Há
de chegar o tempo de eu romper sem rumo por esse desespero de mundo! Você verá!
E voltava-lhe um calor da valentia da mocidade;
— Hei de sair,
inda que seja pedindo esmola de casa em casa por esses barrocos e serras. Quem
não me der esmola eu quebro de manguara, porque ninguém não tem coragem de me ponhar
a mão e o chumbo em mim já não pega. Cama, eu faço em qualquer fundo de mato,
em qualquer beirada de corgo, inda que a força das inxorradas me carregue c'o
escuro da noite!
A chuva estiara de todo, certa manhã
de dezembro. O Zeca Estevo mandou que o Candinho lhe ensilhasse a besta picaça
quatrolha, u'a mula velhaca e arengueira, para dar uma volta pelos arredores.
Disseram-lhe que, doente assim, não devia montar naquele inferno de mula: foi
tempo perdido, quis porque quis, e fez o que resolvera. Antes, porém, de
montar a cavalo, chamou o José com todo o carinho:
— Venha cá, meu
filho, quero-lhe dizer uma coisa.
O José refugava-o desajeitadamente, com os olhos baixos, de respeito e de medo. Não
se lhe chegou para o pé:
— Pois antão inté
você, meu filho, tá me pondo de
banda?
O José custou a responder, mas por último falou com
voz sumida e trêmula:
— Diz que vancê
tá macotena, nhô pai.
— Era isso mesmo
que eu esperava. Ai! meu São Bom Jesus de Pirapora, já não tenho mais ninguém
por mim neste mundo! Fique pra lá pró seu canto, José, que eu já não lhe digo
mais nada, não tenha susto.
Montou a cavalo:
— Agora falta só
as purungas e a baciinha, pra mim cumprir o meu fadário!
Sá Januária chamava-o desesperada. E ele perguntou-lhe
de repente:
— Eu volto, sim,
eu volto: você quer que eu dei li na sua cama? Ah! Não quer, pois antão? O
mundo é mesmo ansim!
Recomeçara a chover miudamente, o sol passava frouxo e
sem quentura pelas cordinhas d'água, quando o Zeca
Estevo bateu a tala nas ancas da mula e disse com voz em que havia uma
tristeza infinita e um desespero inenarrável:
— Adeus, antão,
meu povo dalgum tempo!
Voltou a ventania, primeiro quase mansa, depois furiosa e
uivante. E, enquanto ele se sumia na reviravolta do caminho, a chuva
engrossava, pouco a pouco, até se fazer outra vez um poder de tempestade.
—
... Ai! meu São
Bom Jesus do Pirapora!
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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