6/24/2019

Camunhengue (Conto), de Valdomiro Silveira




Camunhengue
Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer pelo rosto do Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama que ninguém sabia como explicar. Engrossavam-se-lhe as asas do nariz, iam-se-lhe sumindo os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os lados, recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas, esfiapadas, ao mesmo tempo que a cabeça se despovoava de cabelos e uma quase contínua fraqueza lhe bambeava as pernas, para baixo dos joelhos.
Às primeiras mensagens daquela doença incompreen­dida, que, aliás, passava por nada na opinião de todos da casa, não se alvoroçou nem se fez diferente o Zeca Estevo, acostumado como estava a tudo quanto é bom e quanto é ruim na terra- Mas, depois, quando se acentuaram os sintomas; quando deram os vizinhos de dizer que "aquela empige vinha braba"; quando notou que os estranhos já o olhavam com desusada mostras de reparo e quase de asco: foi então que entendeu de cuidar de si, rebuscar "u'a mezinha com qualquer curandeiro ou surjão dos arredores."
Lá pelas covancas do Guaçu, numa tapera escanga­lhada e cheia de mato, assistia o Cabeludo, um prático de fama, que era a última palavra nestas moléstias desconhecidas. O Zeca Estevo preparou-se com todo o cui­dado, mandou arrear a melhor besta de sela que tinha, escolheu o melhor rapaz do sítio para camarada na viagem (porque tinha com que, o Zeca Estevo), e riscou chão u'a madrugada, nem bem o galo pipuíra, que lhe moiava em frente da janela, acabou de bater as asas e cantar pela terceira vez.
Não se podia ler ainda urna carta e, além de tudo, caía uma neblina muito fria, embora fosse tempo de milho verde. Mas em riba dos espigões, que mal se divisavam através daquela cortina opaca, um grande vulto cor de cinza-clara se movia já do chão para o céu, ligeira mente, e era a manhã que rompia.
O Zeca Estevo despediu-se da mulher com duas palavras apenas, porque a demora seria pouca e a saudade que levava era muita. O filho mais novo, de cinco anos, que era a menina dos seus olhos, como dizia, ainda teve jeito de lhe pedir um piquira lazão de crina brama, bonito e manso como o do Candinho, o irmão mais velho, que andava pelos oito anos e era pouco menos que um domador. Ele ouviu o pedido, respondeu que sim, que o piquira havia de vir, — como não havia? — e passou a ferramenta pelo vazio da mula, que se descanhotou logo, estrada a fora, violenta e macia no trote de cão.
Lá se foi o Zeca Estevo, alegre e confiado. Houve outros que partiram também confiados e alegres à pró cura do Cabeludo, mal lembrados do horror que levavam dentro de si, no peito ou no coração, e que não puderam voltar, entretanto, e acharam melhor, decerto, deixarem-se ficar esquecidos e descansados, nalgum recanto de cemitério, em lugarejo sem nome ou sem fama...
Mas, o Zeca Estevo não concordava com esse abandono de vida longe dos seus: ou tudo ou nada, falava na véspera da viagem. Ou sararia e a volta havia de ser urna festa; ou teria o desengano, e ainda assim tornaria ao sítio, morto e já desmanchado que fosse!
Não era coisa a que se pudesse chamar bonita, aquela tapera onde assistia o Cabeludo. Ao fundo dum angola praguejado, em que a unha-de-gato, o cipó-caboclo e a japecanga se entrançavam, caindo dos maricás ou dos ceboleiros, escurentada e escondida por um maracujazeiro de árvore, aparentava o jeito de uni gato mourisco assa­nhado, que se encolheu e vai saltar de súbito à cacunda tremente do xintã. Toda a gente sabia, contudo, que um mundão de romeiros cheios de fé vingava diariamente aquele rincão, em busca do milagroso experiente que dis­tribuia a vida e a saúde a troco de uns sacos de manti­mento ou de umas poucas cabeças de galinhas ou leitões...
O Zeca Estevo escolheu a ocasião boa: chegou à tapera ao fechar a tarde, quando já ninguém de fora lá estava e os urus gargarejavam seu canto profundo e selvagem nos esgalhos das pindaíbas e dos cedros, ali perto. Salvou logo do terreiro; e como visse que o Cabeludo não se apressava a recebê-lo, entretido a tostar sobre as brasas uma cobra engraxada de manteiga, fez chorar no saco da garupa os dois marrõezinhos mais gordos que criava no chiqueiro e lhe trouxera, como presente especial, antes da cura. O Cabeludo, nesse ato, virou-se para ele, vagaroso e solene.
Medo, terror, foram tolices que nada conseguiram do Zeca Estevo, nunca na vida. Mas agora, àquela hora duvidosa do lusco-fusco, naquele ermo, um irreprimível pavor se lhe foi apoderando pouco a pouco do espírito, à medida que o morador da tapera lhe respondia à sal­vação e lhe perguntava pela saúde, com voz pausada e um tanto rouca, em que havia muito de tempestade longínqua e também de rugir contido e ferocíssimo de tigre. Sentiu curvarem-se-lhe os joelhos, uma corrente de água gelada passar-lhe pela medula, porem-se-lhe a pino todos os fios de cabelo do corpo e, juntamente, uma ânsia tão forte, de tal modo sufocadora, que lhe cons­trangia a garganta e lhe fazia correr um suor frio nas palmas das mãos e entre os vãos dos dedos.
Entrou na tapera, apesar de tudo. Contou sua vida ao outro, largamente, e acalmava-se à maneira que a narração lhe ia fugindo dos lábios para os ouvidos do curandeiro atento. Fora, sob o maracujazeiro, o cama­rada assobiava enternecido uma tirana das derradeiras funções. E aquela tirana, casada agora ao chiado monó­tono de uma cigarra já invisível, foi fazendo que o Zeca Estevo de todo volvesse em si, ganhando outra vez a paz de espírito de sempre, a calma que em todos ui casos lhe servira de máxima fortuna.
O Cabeludo, porém, tirara com a mão esquerda n lampião de azeite, de um mancebo ao meio da casa e, com a direita, examinava-lhe suavemente as faces, que se arrepanhavam grossas por sobre os zigomas, donde pareciam debruçar-se para as maxilas como bambinelas rubras e extravagantes. Indagou-lhe dos pais e dos avós; se nunca tinham tido mal de gálico, se nem uma mulher na família quebrara resguardo de parto, por onde lhe tivesse vindo a doença triste que faz a mão ficar de vaca a perder as unhas. E o Zeca Estevo, escutando semelhantes interrogações, para ele desnecessárias e estúpidas, entrou de novo a possuir-se de um enorme susto e pânico, entremetido de raiva e de fúrias, durante as quais deixava de esganar o feiticeiro (parecia-lho naquele instante), só porque acreditava bem na certeza do tratamento.
Houve uma pausa embaraçosa e embaraçadora nas palavras do velho: foi a um canto da casa, ao pé do jirau em que dormia, puxou uma gamela, pôs-se a lavar as mãos com uma orelha de timburi e já voltava pai u o Zeca Estevo, num passo ondulado e mole, quando este quis saber o nome da doença:
— Antão, meu patrão velho, o que é que eu tenho? O Cabeludo olhou-o de frente, com os olhos parados e inexpressivos:
— O mal.
— O mal? Vancê tá caçoando!
— Caçoando tá você, menino! Pois antão você, quando veio aqui, não sabia já que tava camunhengue? E olhe que é jareré dos graúdos, é dos brabos! Tome conta disso, antes que ele tome conta de você!
O Zeca Estevo tinha o gênio desabrido: vieram-lha repentes de sacar o punhal e matar no mesmo instante aquele bruxo desgraçado. Mas, conteve-se:
— E o que é que eu bebo pra sarar?
— Não beba remédio, que pra isso não tem remédio, não hai mezinha. Coma carne de capivara sem sal, por todo feitio, e a da onça, que tá são. Mas largue do sal, se quer mesmo ficar como dante!
Anoitecera de todo. Um fantasma apavorante cami­nhava entre as nuvens, serenamente, e no andar caden­ciado e como que fraco imitava o do curandeiro, que, entretanto, mudo e sombrio, se agachara encostado ao fogão, onde recomeçava a tostar a cobra apetecida. O Zeca Estevo olhou-o, olhou depois aquilo que caminhava terrível entre as nuvens: sentiu-se aniquilado, transido de verdadeiro medo e ia gritar pelo camarada, quando as nuvens se abriram, enchendo o arruinado casebre de uma claridade azulega de lata nova, e reparou que aquele fantasma era a lua cheia, com seu São Jorge muito entu­siasmado ao alto e algumas tênues fumaças brancas e enrolaram-na como numa túnica.
Desamarrou os sacos' trazidos, pô-los à porta da tapera, e montou a cavalo:
— Temo lua boa, seu Chico: de madrugada tamo em casa: bamos embora!
Houve um forte e rápido rumor na estrada; se não fosse tão rápido e tão forte, poder-se-iam ouvir os ge­midos do Zeca Estevo, homem que nunca tinha chorado na vida, de serra abaixo pra cá, tal qual se diz na moda velha.
Não era tão tarde assim, que o Zeca Estevo não tivesse lado de torcer um pouco da estrada e procurar o sítio dum conhecido antigo, um criador em cujo potreiro vira ao passar, com sol alto ainda, um poldro lazão de crina branca e palmatória, bonito e manso como o do Candinho, e bem ao modo do que lhe fora pedido pelo José, a menina de seus olhos, a quem não podia negar esta alegria tão fácil. E foi preciso mandar cam­pear o petiço, àquela hora velha e pelo cultivado úmido de orvalheira, porque o José lhe estava a aparecer diante, todo risonho e satisfeito, ao ver que a promessa fora cumprida.
Depois, quando se fez novamente ao caminho, entre um e outro voo de pássaros no turnos, que lhe causavam singulares vibrações de nervos, e ao pensar naquela criança pequenina e querida, para quem levava o cava­linho adestrado, uma inefável piedade de si mesmo quase o fez soluçar e carpir-se: via-se repudiado de todos, porque o negro mal-de-lázaro iria de mal a pior, não o duvidava, e o José lhe seria companheiro de sempre, apesar de imenso infortúnio, porque tinha uma alma afetuosa e cheia de bondade. E a mulher, sá Januária, que fora o anjo da guarda de sua mocidade turbulenta e rixosa, ia-se-lhe apresentando à memória vagamente, aureolada de uma luz admirável, como as santas das oleografias.
A marcha troteada da mula soava pela estrada clara, num ritmo acelerado e uniforme. E era tão sagaz, tão esperta, tão valente, que mal o sol apontava da multidão de montanhas distantes, quando o Zeca Estevo abriu a porteira do pátio, onde a criação renhia pelo milho ati­rado de pouco. Sá Januária surgiu espantada da varanda, trouxe logo o café com rapadura, e não chegou a per­guntar-lhe a razão da volta tão apressada e o que dissera o Cabeludo, porque logo o Zeca Estevo lhe foi contando:
— O "home" lá me disse que tou sofrendo do mal. Mas a Januária também não quis acreditar:
— Não é capaz, isso é poaiage sua!
— Verdade, mulher: o diabo inté me receitou capi­vara e onça.
Sá Januária duvidava sempre: olhou-o, remirou-o com todo o sossego, convencida de que tudo aquilo não passava de uma cuca que o Cabeludo lhe botara no marido, para ganhar molhadura melhor. E o Zeca Estevo, banzativo, escorara-se a um catre desmantelado, donde olhava para a mulher com ares muito alheios e remotos; por fim, como já pelos vãos das telhas coasse no chão a claridade crua do sol, disse a modo de distraído, como quem não quer:
— Só se ele cuida que é por causa deste inchaço que eu tenho há tantos dias nas orelhas.
Foi como se todo o mundo viesse abaixo! Ela reparou-lhe então nas orelhas, que se haviam tornado intensamente escarlates, como queimadas do sol, empipocadas e grossas, pendentes para as faces num revira­mento assustador dos bordos. Sá Januária teve um arrepio de terror e um estremecimento fundo de com­paixão: mas conteve-se logo, desviando a conversa com pedir a Zeca Estevo a ajudasse em passar pelo pescoço de uns franguinhos pipuiruçus uma pena de galinha, por livrá-los da pigarra.
Vieram daí por diante os dias negros da tristeza e da desconfiança. O Zeca mandava a lugares longes, por mantas de capivara e carne fresca de pintada, tomava chá de raiz de inhame, todos os dias, fugia do sal, corria da chuva e do sereno, mas cada vez piorava mais. Corajudo ainda aparecia, de quando em quando, a bater u'a mão de truque ou pontear uns toques novos na viola paranista. E, por mal de pecados, chegara o tempo das águas, com uma ventania nunca, vista e um poder de tempestade todo santo dia.
Agora, com um bandão de desculpas aumentativamente apertadas, sá Januária mudara de cama, dormindo com o José num quarto pegado ao do Zeca Estevo, donde, " noites inteiras, ouvia-o roncar e queixar-se de mil apoquentações e outras tantas dores. Fizera-se ele irritadiço e mau de gênio, esbordoava os pevinhas à toa, botava chumbo nos leitãozinhos tatus mais estimados, que se aventuravam até a varanda. Um dia que matara a um de brinco, a sá Januária lho censurava entristecida, ele respondeu rindo num riso rasgado e amargo:
— Ora, eu também tenho brinco, e, se eu morrer, ninguém me sente!
Ao ver que todos, pouco a pouco, iam-no abando­nando ou, quando nada, deixando, também um poderoso desejo de absoluta solidão o tomava, mesclado de raiva dos homens e desamor aos seus. Chegou a dizer a sá Januária, quando ela lhe explicava, certo dia, por pala­vras travessas, o motivo da separação:
— Eu aqui já não valho nada, todos me largam ao deus-dará, como se eu fosse um trapo velho. Há de chegar o tempo de eu romper sem rumo por esse deses­pero de mundo! Você verá!
E voltava-lhe um calor da valentia da mocidade;
— Hei de sair, inda que seja pedindo esmola de casa em casa por esses barrocos e serras. Quem não me der esmola eu quebro de manguara, porque ninguém não tem coragem de me ponhar a mão e o chumbo em mim já não pega. Cama, eu faço em qualquer fundo de mato, em qualquer beirada de corgo, inda que a força das inxorradas me carregue c'o escuro da noite!
A chuva estiara de todo, certa manhã de dezembro. O Zeca Estevo mandou que o Candinho lhe ensilhasse a besta picaça quatrolha, u'a mula velhaca e arengueira, para dar uma volta pelos arredores. Disseram-lhe que, doente assim, não devia montar naquele inferno de mula: foi tempo perdido, quis porque quis, e fez o que resol­vera. Antes, porém, de montar a cavalo, chamou o José com todo o carinho:
— Venha cá, meu filho, quero-lhe dizer uma coisa.
O José refugava-o desajeitadamente, com os olhos baixos, de respeito e de medo. Não se lhe chegou para o pé:
— Pois antão inté você, meu filho, tá me pondo de banda?
O José custou a responder, mas por último falou com voz sumida e trêmula:
— Diz que vancê tá macotena, nhô pai.
— Era isso mesmo que eu esperava. Ai! meu São Bom Jesus de Pirapora, já não tenho mais ninguém por mim neste mundo! Fique pra lá pró seu canto, José, que eu já não lhe digo mais nada, não tenha susto.
Montou a cavalo:
— Agora falta só as purungas e a baciinha, pra mim cumprir o meu fadário!
Sá Januária chamava-o desesperada. E ele pergun­tou-lhe de repente:
— Eu volto, sim, eu volto: você quer que eu dei li na sua cama? Ah! Não quer, pois antão? O mundo é mesmo ansim!
Recomeçara a chover miudamente, o sol passava frouxo e sem quentura pelas cordinhas d'água, quando o Zeca Estevo bateu a tala nas ancas da mula e disse com voz em que havia uma tristeza infinita e um deses­pero inenarrável:
— Adeus, antão, meu povo dalgum tempo!
Voltou a ventania, primeiro quase mansa, depois furiosa e uivante. E, enquanto ele se sumia na revira­volta do caminho, a chuva engrossava, pouco a pouco, até se fazer outra vez um poder de tempestade.
— ... Ai! meu São Bom Jesus do Pirapora!

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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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