Camões,
os Lusíadas e a Renascença em Portugal
Em Cascais, as naus fundeadas esperavam
que Diogo do Couto voltasse de Almeirim, onde fora solicitar de el-rei a sua
entrada no Tejo, porque Lisboa estava fechada com a peste. Logo que a ordem
veio, a "Santa Clara" entrou a barra.
Não nos disse Camões que impressões
assaltaram o seu espírito ao pôr pé em terra; mas é verdade que a miragem
seguida desde os confins do mundo, essa visão de uma pátria que se confundia
com o próprio céu, dissipava-se agora, esfolhando-se mais uma flor de esperança
– porventura a última!
Lisboa era uma necrópole. A peste, a
peste grande, o flagelo medonho, começara no Verão de 1569, num estremecimento
de terror popular, e ainda quase um ano depois açoutava Lisboa, já menos
intensa, porque a cidade morrera ou emigrara quase inteira. A Corte fora
esconder-se em Almeirim. Desembarcando na Ribeira das Naus, Camões parou,
chorou decerto, vendo a Rua Nova com os seus formosos bazares fechados, os
maraus jogando a bola, e a erva crescendo entre as lajes da calçada.
Às primeiras chicotadas do flagelo, o
povo via claramente nessa desgraça o castigo das maldades do ano anterior,
quando o governo, para acudir à invasão de moeda falsa de cobre que os ingleses
nos mandavam nos barris de farinha e nas pipas de pregos, levando de cá todo o
ouro e toda a prata, ordenou a redução do valor do cobre a um terço: o patacão
de dez reis a três, a moeda de cinco reis a real e meio, a de três reis a um, a
de real a meio. Fez-se isto em quarta-feira de trevas, e os pobres, vendo-se
perdidos, arrancavam as barbas de desespero. Muitos enforcaram-se. O gentio
rico folgava, triplicando os trocos. A impressão foi tal e tanta, que desde
logo se vaticinaram as maiores desgraças, e o ano de 1568 decorreu funebremente
num terror. Em 1569 anunciava-se que no interlúdio de julho, a 10, se havia de
subverter a cidade: o Castelo juntar-se-ia ao Carmo e a Almada. Já os casos de
peste bubônica principiavam a repetir-se. E se os montes da cidade não caíram
nesse dia em que ela se despovoou com medo, caía fulminada a gente na rua,
conversando, ao topar com um amigo. O ar envenenava. O flagelo seguia,
crescendo em fúria. Chegaram a morrer de quinhentas a setecentas pessoas por
dia. Atulhados os adros das igrejas, era mister abrir fossos para enterrar os
cadáveres aos trinta e quarenta, porque Lisboa estava “cheia de mortos que
caíam aos bandos”, e à falta de coveiros indultavam-se os galés. “Tudo nela era
fogo e mortandade, choros e gemidos”. Os montes não se tinham subvertido, mas
essa profecia simbólica realizava-se, porque se subvertia toda a gente viva. “Lisboa
ia acabar-se”.
Quando a "Santa Clara" fundeou
no Tejo, em abril de 70, já a peste se podia dizer extinta. Extinguira-se, é
verdade, a gente. “Corria-se toda a cidade e não se topavam cinco pessoas vivas
e sãs”. Foi esta necrópole a Lisboa que o poeta veio encontrar, como realidade
da Sião chorada na praia macaísta e nos campos encharcados do Cambodja!
Mas trazia consigo um talismã, os
"Lusíadas", que eram a sua própria alma, cristalizada em estrofes. Ao
mundo exterior que desabava, contrapunha o seu mundo interior construído e
forte, e a necrópole parecia-lhe uma miragem: miragem a morte, miragem as
ruínas, miragem tudo, e só verdadeira realidade o seu sonho de poeta, o seu
livro! Não pensava decerto cantando “a gente surda e endurecida”, levantá-la e
dar-lhe ouvidos; pelo contrário, era com violência e esforço que punha o remate
à obra:
Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.
Vão os anos descendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jato, nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono;
Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha
Das Musas, com o que quero à nação minha.
Envolvia-se no poema, como numa
mortalha, certo de que a vida se lhe fora, gerando-o; agarrava-se como um
náufrago à tábua de salvação que via flutuar no mar morto da pátria sob a
figura de um rei novo, arrebatado por uma ideia heroica.
Publicar os "Lusíadas", eis o
que o agita em 1570 e 1571, e o que finalmente vê realizado no princípio de
1572. O aplauso foi grande, mas platônico. O poema ficou desde então gravado na
alma nacional como o epitáfio da nação que encontrava ali os impulsos que a
tinham movido, os sentimentos que a tinham agitado, os amores por que chorara,
as esperanças por que suspirara, encontrando também agora o pessimismo triste
de que se via irremediavelmente ferida.
Os "Lusíadas" tinham porém,
além disso, uma aceitação política por cantarem a nova esperança dos
governantes nessa empresa de África, para muitos havida como redentora. Leu-os;
não os leu Camões a D. Sebastião? Parece que não leu; mas o rei e a corte
aplaudiam com ambas as mãos o entusiasmo desse poeta que voltando dos confins
do mundo carregado de amarguras e trabalhos, tinha ainda no peito alanceado
calor bastante para incendiar a todos, comunicando a febre que palpitava no
cérebro singular de D. Sebastião, a “maravilha fatal da nossa idade!” Pedro de
Alcáçovas Carneiro, Martim Gonçalves da Câmara, as duas colunas do reinado,
enchiam o poeta de louvores.
Ambos com o rei, amadureciam esse fatal
plano marroquino que iniciado em 1415 com a jornada gloriosa de Ceuta desde
1498 se subalternizara à conquista da Índia depois da viagem de Vasco da Gama.
A guerra aos mouros era no espírito comum, o destino de Portugal nascido no
estrépito das batalhas da reconquista. Guerra, porém, na África, ou na Ásia?
Guerra na Índia, ou em Marrocos? Durante quase um século o Oriente levara a
melhor. Marrocos servia apenas de viveiro e escola para os soldados da Índia.
D. Manuel desistira do plano de passar a África. D. João III, surdo aos pedidos
para que mandasse um infante a Marrocos coroar-se imperador, pelo contrário
abandonara Arzila e Azamor (1549). A reação vinha agora, com o novo reinado
que, por todas formas, com as leis da navegação, com a organização do império
ultramarino, com as reformas agrárias e econômicas, pretendia suster a corrente
da desordem portuguesa e restaurar a glória nacional, rematando-a com a
conquista de África, à qual se chamou loucura, por isso que foi malograda.
Mas a onda desordem crescia, e essa
empresa, que podia ter sido um plano político em outras eras tornava-se agora
um desvairamento pelo modo como se concebia e por que se executava.
De ano para ano avultavam as desgraças.
Dir-se-ia que a mão de um destino inimigo pesava sobre Portugal para o esmagar.
Em 1568 fora a falência da pobreza pela redução do valor do cobre; em 1569 e 70
a peste grande, de recordação fúnebre; em 1572 uma tempestade destruía a armada
enviada em auxílio de Carlos IX contra os turcos e luteranos; e, no Inverno
desse ano, frios nunca vistos enregelavam tudo, coalhando o próprio Tejo em
frente de Alcochete. Os gelos desse Inverno deram as cheias de 1573, que
inundaram Lisboa; e nessa era morreu a rainha-mãe, adversária da campanha de
África, onde D. Sebastião foi pela primeira vez no ano seguinte. Em 1575,
Lisboa, abalada dor um grande terramoto ardeu por metade num incêndio pavoroso
e o ano acabou em dilúvios de chuva que destruíam as ruas. As fomes eram gerais
pelas províncias, e a capital via-se inundada de mendigos e leprosos, assaltada
de epidemias e mortandades. Dir-se-ia que o mundo português ia acabar como
acabou com efeito. O cometa de 1577 anunciava a morte do rei em África e a
destruição do seu exército para o ano seguinte; e o seu rastro fatídico no
firmamento nacional eram as lágrimas e clamores provocados de um extremo a
outro do reino pelas extorsões, pelas violências, pelas torpezas com que se
arrolavam soldados e se fazia dinheiro vendendo escandalosamente a impunidade
ao judeu o velho inimigo!
Mas esta própria acumulação de desgraças
os espíritos simples viam a necessidade de uma expiação tremenda. Qual? A
guerra santa. Era mister aplacar Baal, ou Moloque, ou Jeová, porque o Deus da
nossa gente aparecia-lhe com feições africanas. Hoje vê-se, neste estado agudo
da crise nacional, a própria causa da vertigem que então se apossou da alma
portuguesa.
A Fatalidade da guerra santa desvaira
também a alma de Camões, destinada a vibrar sempre acorde com a nação. Quer
partir. Recorda os tempos da sua mocidade em Ceuta. Mas vê-se quebrado, coxo,
encostado a muletas. O “braço às armas feito” partiu-se; ficou a “pena às musas
dada” para cantar a façanha. No próprio dia em que D. Sebastião largou do Tejo
para a sua funesta empresa, Camões aparou a pena e começou a sua nova
epopeia...
Alongando os olhos à barra, via o mar
coalhado de navios que, de velas soltas, pareciam um bando de gaivotas
colossais anunciando um temporal também medonho... Eram oitocentos e cinquenta
navios, e levavam vinte e quatro mil homens de peleja, três mil cavalos, e “o
mais de infantaria sã e podre que se não cirandou”. Nos cais, nas praias,
Lisboa inteira apinhava-se, e circulavam acesas as conversas contando os casos
dos últimos tempos, o açodamento do sei correndo às naus (de uma vez até
esquecera o chapéu) voltando a terra, inquieto e febril no preparar da
expedição; o luzimento dos terços do duque de Bragança; os três mil tudescos
aquartelados em Cascais; os seiscentos soldados romanos que o Papa mandara sob
as ordens do marquês de Lenster... coisas nunca vistas, brigas, rixas e um
delírio de luxo, um frenesi de jogo, com tais requebros de amor, santo Deus!
que mais parecia irem a um torneio do que a combater o mouro pérfido nos areais
de África.
25 de junho de 1578 foi o dia da
esperança derradeira que para além voava nas asas brancas das velas, sumindo-se
na vastidão confusa dos mares. A noite caiu sobre Lisboa oprimida. Camões
voltou a casa coxeando e encerrou-se com o seu trabalho: a epopeia de África,
Sebastianeida; Portugal ressuscitado pelo heroísmo de um rei, a pátria cabeça
do mundo reconquistado para a fé; uma glória imensa, uma felicidade
incomparável; outra vinda de Cristo à terra, encarnado na figura deste rapaz
coroado que, para muitos, passava por doido... O messianismo nacional nascia
também neste momento, e mais uma vez a alma de Camões era o cálix místico onde
se dava o mistério sagrado da transubstanciação dos instintos flutuando vagos
na imaginação coletiva, em pensamentos nítidos claramente expressos na
consciência de um homem.
Foram seis ou sete semanas de palpitação
febril: de 25 de junho, quando a armada saiu, a 4 de agosto, dia em que a
catástrofe se deu. Uma manhã entrou desvairado no Tejo Diogo Lopes de Sequeira
a contar o imenso desastre de Alcácer. O cardeal D. Henrique acudiu caquético a
Lisboa, “que achou Troia ardendo num grito geral e cheia de lágrimas, ais e
suspiros de alma, e a chusma com a perda e dor toda desatinada”. O
desvairamento invadiu toda a gente. Lisboa parecia uma mansão de doidos. Os
homens, a força, os maridos, os filhos tudo passara, tudo ficara em África.
Havia apenas mulheres, crianças, velhos enfermos; havia Camões, encostado às
suas muletas, vivendo de esmolas; havia o cardeal feito rei, pendurado aos
peitos de Maria da Mota, como uma criança, tremendo de susto, bolsando o leite.
“Não posso calar, com serem pessoas de
tanta calidade como são algumas ilustres donas que vivem nesta cidade, tamanha
dissolução como vai e a grande licença que tomaram em suas dores, no modo de
pedir a Deus boas novas, vida e liberdade dos maridos e filhos cativos. Muitas
se recolheram mais que dantes e nas igrejas mais perto oram e choram e pedem
com honra e dor. Outras não há devoção defesa que não façam, nem feitiçarias
que não creiam nem beatas que as não roubem com suas superstições; e o que é
pior, fazerem-se tão andejas e inquietas ao som de romaria que se seus maridos
lá onde estão o soubessem, tomaram antes ser sempre cativos. Outras se juntam
em igrejas (e já se conhecem to todas) onde as novas crescem e os juízos são
tantos e o palrar tão sobejo que não há lá podê-las apartar e não ireis por rua
que as não encontreis com certo número de mulheres após si, necessárias à sua
devoção, todas embiocadas, fazendo cocos; e para encher a cópia da devoção das
beguinas não fica negra, nem branca, nem rapariga em casa que não vá no conto
as quais por não deixarem de fazer seu ofício vão de trás fazendo mais
torcicolos e mochatins que em tragédias. E diante levam um velho parvo e um
menino travesso. Assim vai o mundo às avessas”.
Assim ia Lisboa e o mundo português:
mulheres carpindo, precedidas por velhos e crianças seguidas por escravas do
Oriente rindo em gaifonas e trejeitos. Nisto se transformavam os dois meses de
uma esperança redentora. Camões gemia a sua miséria, porventura a perda do seu
jau escravo que lhe esmolava o pão. Acabrunhado numa pocilga, velho, pobre, só,
irremediavelmente perdido, era a própria imagem a pátria, a quem também uma a
uma se tinham murchado sucessivamente as flores cândidas da esperança.
Natércia, essa visão de ideal pureza, de um carinho etéreo, fugira da terra
batendo as asas: morrera, deixando-lhe a vida embalada como num sonho, em
recordações de uma doçura inefável. A Índia, essa outra amante que viera
depois, da cor fulva do ouro, com um brilho seco de metais, e os braços duros,
os seios fartos, o peito forte de ação e do combate: a Índia da sua ambição
partira-se em hastilhas rijas, como os metais se partem, despedaçando-se numa
mina fria de chatinagem, de cobardia, de cobiça, “duma austera, apagada e vil
tristeza!” Sião, a pátria que sonhara enquanto andava pelas ruas de Babilônia:
essa imagem carinhosamente bela, outra amante que nascia dos beijos de Natércia
sobre a refulgente ruína do seu heroísmo, vira-a também ao pôr pé no cais da
Ribeira, feita uma necrópole varrida pela peste, com os maraus jogando a bola
na Rua Nova, verde de erva. Morrera também essa terceira amante!
E agora, o seu derradeiro amor partia-se
despedaçado num fuzilar de relâmpagos, entre os nevoeiros densos da areia
ardente de Alcácer Quibir. Rasgava desesperadamente as folha; soltas do seu
poema, e, abraçado à última quimera, o céu, entrava o seu canto de cisne,
invocando a única verdade, a morte:
Oh! Quanto melhor é o supremo dia
Da mansa morte que o do nascimento!
Oh! Quanto melhor é um só momento
Que livra de anos tantos de agonia!
De alcançar outro bem cesse a porfia,
Cesse todo aplicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento
Pois só contenta ao corpo a terra fria...
Dois anos de agonia, dois anos de
silêncio e dos, dois anos como os passou Portugal, debatendo-se miseravelmente
nas vascas do falecimento: dois anos mais, e ao mesmo tempo, em 1580, Portugal
e Camões caíam na terra fria de uma sepultura. Expirando, tinha o poeta sequer
a amarga consolação de acabar com a pátria. “Morro com ela”, disse, e finou-se.
***
Não admira, pois, que desde então Camões
ficasse na alma popular como símbolo da nação, e Os Lusíadas como a sua bíblia. Não admira que, tivesse passado à
condição de epônimo desta pequena pátria, tão semelhante a Atenas, e mais ainda
a Esparta, na agitação da sua vida política, na grandeza da sua missão
colonial, e também na miséria fúnebre da sua decomposição.
Não admira que, desde o século XVII, por
toda a parte onde surgisse, de entre as ruínas do edifício nacional, algum
fuste de coluna ainda de pé, ou algum friso inteiro onde se visse correr
agitada a tragédia de outras eras; por toda a parte onde se erguesse do matagal
de urzes e cardos da história a haste florida de uma açucena de saudade ou de
esperança, a corola dessa flor ou a forma dessa evocação, tivesse o perfume e a
cor dos Lusíadas e se considerasse
uma revelação de Camões o paracleto português. Cantando os Lusíadas, os últimos leões da Índia defenderam Colombo
perdidamente; e no nosso século o invasor, querendo regalar-nos como César,
prometia-nos um Camões para cada província.
Camões e D. Sebastião, os Lusíadas e Alcácer Quibir, eis aí os
dois homens e os dois atos que ficaram para serem gravados na imaginação
coletiva, como uma fé e uma esperança, como um mandamento e um cativeiro. Este
Israel do extremo ocidente, em que a plasticidade da imaginação grega se
fundira com a tenacidade obscura do fenício e com o profetismo genial do judeu,
possuía afinal a sua bíblia, e também chorava as ruínas do Templo, ajoelhado
aos pés do vencedor que transformara Sião numa Babilônia castelhana. O
sebastianismo que foi a religião lusitana, forma epilogal do nosso patriotismo,
veio até os dias de hoje propondo Camões como o precursor de tudo quanto há
mais avesso ao pensamento próprio do poeta.
Fazer-se um profeta da democracia o homem
em cujo cérebro ferviam os pensamentos clássicos da monarquia universal, não é
mais contraditório do que arvorar-se em apóstolo do livre-pensamento aquele que
levou a vida no ardor do combate religioso contra o mouro e a acabou desvairado
pela quimera da conquista do Santo Sepulcro, ardendo em indignação contra os
luteranos, aceso sempre em uma fé inesgotável.
E todavia, este contrassenso é só
aparente e exterior. No fundo, o erro é um acerto; e a crítica, se o não
dissesse, provaria um limite de vistas incapaz de descortinar as miragens vagas
da imaginação dos povos. A consagração histórica de Camões vem ainda moldar-se
no processo remoto pelo qual os deuses foram abstraídos da consciência nebulosa
das gentes primitivas. A magia das palavras e dois ou três momentos sintéticos
da vida, tanto basta para que a imaginação plástica levante um mito e de uma
suposta realidade à visão dos próprios desejos que passou, aérea, nos
horizontes do espírito. Essa nuvem toma corpo, a apoteose substitui-se à
biografia; e a imagem verdadeira do homem que foi some-se, deixando em seu
lugar a figura que o povo abstraiu da iluminação dos próprios corações.
Não admira, pois que nós próprios, ao
pretender pôr de pé a figura de Camões, obedecêssemos à vibração transmitida, e
que, amalgamando a lenda com a história, déssemos porventura significado e
proporções demasiadas a fatos e estados de alma comezinhos. Talvez a nossa
vista amplificasse as proporções da imagem, impressionada pelo prestígio que
essa imagem exerce nas imaginações. Talvez; mas se assim for, não nos
arrependemos dessa culpa. Por patriotismo, em primeiro lugar; e por amor à
crítica, em segundo.
Por amor à crítica, sim porque a
verdade, quando se trata dos fenômenos indefinidos da alma estética, está
muitas vezes mais nas adivinhações, quando são idealmente verossímeis, do que
numa impossível determinação exata. No poeta, o homem voluntário, o homem
conscientemente deliberado, vale sempre tanto menos quanto maior é o poder da
sua intuição. Os desejos proféticos brotam-lhe espontaneamente no espírito, e
muitas vezes o pensamento não lhe diz o alcance dos dardos da sua fantasia. A
ele próprio sucede o que sucede a quem contempla um produto de arte: receber de
uma mesma nota uma impressão de alegria ou dor conforme a disposição atual dos
seus nervos A ele próprio acontece muitas vezes que, se se interrogasse a saber
se de fato ri ou chora a sua inteligência ficaria impotente para responder, e
apenas pela imaginação ainda pressentiria que as lágrimas e os risos se confundem
num mesmo vaso feito de pathos e de
ironia.
Os poetas valem por aquela porção do
vaticínio inconsciente de que são portadores.
Por isso a verdadeira vida do poeta, a
vida que imposta para se lhe conhecer a verdadeira fisionomia, não é a sucessão
dos atos exteriores; é a série dos estados mais ou menos indefinidos do
pensamento. Com o herói dá-se exatamente o contrário; porque a ação tem para
ele o papel dirigente e inicial, que tem para o poeta a contemplação.
Tudo isto, portanto, explica o fundamento
do nosso retrato de Camões, pálida imagem desse retrato magnífico pintado pelos
corações portugueses no decurso de três séculos. Esse retrato, dizemos nós, em
conclusão, é o verdadeiro.
O homem, conforme existiu, está para ele
como o vaso está para a essência, ou para a crisálida o casulo. Como no mito da
alma abandonando no momento da morte o seu invólucro corpóreo, também o
verdadeiro Camões espiritual se separava transfigurando-se. E a tristeza foi
que, de fato, essa alma voou para o céu das quimeras sebastianistas,
deixando-nos para as folhearmos, com olhos enevoados de lágrimas, as folhas
soltas dos Lusíadas.
Essa alma era a lusitana, feita de
esforço e grandeza, de magnanimidade e agudeza moral, de orgulho e inteireza,
de constância para as lutas, de caridade para os infortúnios, de serenidade de
ânimo e de uma fé luminosíssima no seu destino, que adivinhava magnífico e que
a sorte veio tomar cruel.
Nessa alma confundiam-se a candura de um
Nuno Álvares com a força de um Albuquerque, com o estoicismo cristão de um
Castro mais o seu amor céltico da natureza, mais a flor de ingenuidade popular
desfolhada pelo bom-senso de Gil Vicente, e a ternura amaviosa de Bernardim
Ribeiro.
Todas as cordas da lira portuguesa se
encontravam no plectro camoniano, atestado simbólico da individualidade
lusitana, maravilhosamente escrito numa epopeia, para ficar ao lado e acima dos
traslados que iam escrevendo em dramas os nossos irmãos da Península com a sua
vis naturalista de castelhanos.
E quis a sorte que um poeta, assim
dotado com todos os caracteres do povo que representava, aparecesse no momento
próprio da completa definição do seu pensamento: quando na tarde do dia
glorioso, o sol, descaindo para o poente, já não podia estontear as ambições;
quando a experiência apontava já nos horizontes as nuvens a amontoarem-se e o
crepúsculo a subir do lado do nascente, deixando à alma a plena posse de si
mesma e ao juízo a liberdade de julgar.
E quis, finalmente, que a vida desse
homem fosse cíclica: amante como Portugal, que ficou célebre pela tragédia de
Inês de Castro, vivera de amor na adolescência; vai a África preparar-se para
as campanhas do Oriente, como Portugal também foi; embarca para a Índia como a
nação inteira embarcara; volta de lá derreado, coxo, em muletas, como voltou
igualmente Portugal, para agonizar um instante, expirando a um mesmo tempo...
Não era necessário tanto para ferir a
imaginação de um povo. Que admira, pois, a apoteose de Camões?
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