Pálida com os cabelos pretos destacando-se na
alvura da fronha, os olhos meio-cerrados em uma prostração profunda, nenê
descansava, tendo ao lado o filhinho nascido de poucas horas — quando Leonor
invadiu-lhe o quarto, gritando:
— Nenê, Bichaninha também teve os filhinhos!...
A moça,
com o abrir súbito da porta e o grito estrídulo da menina, teve um susto
violento: o corpo todo lhe tremeu, um nó cerrou-lhe a garganta e uma onda de
sangue subiu-lhe ao rosto, corando-a vivamente.
Mas a
Leonor, sem notar o que fizera, continuava a tagarelar:
— Você não imagina, Nenê... são quatro gatinhos
pretos, muito bonitinhos... Nasceram de olhos fechados e estão só miando...
Miam tão fininho que parecem pintinhos... Quer que eu traga um para você ver Nenê?
A moça,
mais repousada do susto, disse apenas, fracamente:
— Não, Leonor.
Deixa-os lá mesmo onde estão...
E,
enquanto a menina saía como um foguete, correndo para junto da
Bichaninha e dos gatos, Nenê desceu do travesseiro a cabeça para beijar o filho
que dormia, então, um desses sonos profundos em que os recém-nascidos passam longas
horas. E ficou-se a mirá-lo demoradamente, com uma expressão de olhar saturada
de infinita ternura...
Primeiro
filho, filho nascido aos vinte anos de um casamento de amor: que carinho sem
nome não tinha a jovem mãe por aquela criança! O rostinho muito rosado,
de traços ainda incertos, com a moldura branca das rendas da touca enfiada por
uma fitinha azul, parecia-lhe formosíssimo. E, demais, ela admirava,
extasiada, a fragilidade e a pequenez daquele corpinho tão mimoso. Abriu-lhe a
mãozinha e ficou-se sorrindo, a admirar-lhe a graça: parecia de boneca...
Nisto, a
Leonor voltou. Vinha a falar dos gatos:
— Sabes, Nenê, que gata malvada! — e tinha, dizendo
isto, uma expressão sincera de pena e indignação —. Bichaninha, em vê/ de
carregar os filhos, pega neles mordendo o pescoço e anda de um lado para outro
com os pobrezinhos... Que bicho ruim!
— Mas, tolinha! disse, sorrindo, Nenê — como
querias tu que ela fizesse? For certo que não os podia trazer ao colo, como uma
pessoa... É assim mesmo que todas as gatas fazem...
Decididamente,
porém, aquelas explicações não satisfaziam a menina, que estava
preocupada com o caso. Saiu de novo, com a pressa em que sempre andava,
estouvada e nervosamente e voltou a ocupar-se do problema, que a interessava
de ura modo extraordinário.
Bichaninha
era a gata querida de casa; uma gata branca, alta e gorda, que vivia à
fidalga, de colo em colo, amimada amorosamente por todos. Nos últimos tempos da
gravidez de Nenê, aparecera também grávida e era um tema de caçoada em casa,
quando a gata ia seguindo a moça, ver as duas, andando ambas com o meneio
indolente e desajeitado dos ventres proeminentes. Gracejando, dizia-se muitas
vezes que ambas dariam à luz no mesmo dia. Foi, de fato, o que veio a
suceder. Os dois partos tiveram lugar simultaneamente: os primeiros vagidos da
criança soaram pouco antes dos primeiros miados dos gatinhos. A coincidência,
notaram-na em casa com grande alegria e muitas risadas. As duas mães estavam
ambas em estado satisfatório; os recém-nascidos, todos bons — e a algazarrenta
Leonor não sabia como repartir seus beijos e carinhos entre o pequerrucho sobrinho e os filhos da Bichaninha.
Parecia dividir por todos a mesma afeição, distribuía com a
mais inteira imparcialidade, em fatias iguais de bem-querer.
Nenê
tinha, porém, uma leve contrariedade: o marido estava fora, servindo como
engenheiro perto de Friburgo. Para lá lhe telegrafara: "Tens um filhinho,
nascido hoje, às 10 horas da manhã, que espera a tua bênção. Saudades."
Mas, receberia ele o telegrama? Essa dúvida a inquietava um pouco. Estava
ansiosa por vê-lo. A alegria só seria completa quando estivessem ali os dois,
pai e mãe, mais unidos ainda e mais amorosos junto daquela vidinha frágil, que
de ambos participava.
Felizmente,
o parto fora bom. O medico deixara-a, ao sair, com uma ligeira elevação
de temperatura, mas sem receio de complicações. Recomendara apenas todo o
sossego e proibira que conversasse. A única pessoa que contrariava essa ordem
era Leonor que, no constante rebuliço em que sempre andava, vinha de quando em
quando ao quarto e obrigava sua irmã a responder-lhe.
Nisso,
entretanto, não estava o grande mal. O pior era que, com seu modo estabanado de
entrar, abrindo a porta de repente, assustava a moça a cujo estado de fraqueza
qualquer comoção se tornava muito sensível.
Da última
vez em que isso se deu, foi à noitinha. Leonor deu um tal grito à entrada do
quarto que Nenê, então meio adormecida, sentou-se na cama, assustada e teve um
choque nervoso extraordinário. A causa do berreiro era ainda a Bichaninha. A
gata vinha trazendo um dos filhos para o quarto da moça, quarto onde habitualmente
costumava estar.
— Aí vem a Bichaninha! Aí vem a Bichaninha!
anunciava Leonor em altos brados...
A gata
entrou, passeou os olhos pelo aposento e, avançando um pouco,
trepou sobre a cama da moça. Foi outro choque. Nenê temeu que ela arranhasse o
menino e deu um grito de susto, tão forte que chegou a espantar o próprio
animal. Bichaninha, sempre com o gato seguro nos dentes pelo pescoço, armou o
salto, pulou da cama ao chão e foi levá-lo para o canto, seguida pela gritaria
da Leonor:
— Lá vai a Bichaninha! Lá vai a Bichaninha! Sucessivamente, o animal
foi buscar os outros três filhos, trazendo-os todos pelo pescoço, presos nos
dentes. E acomodou-se com eles no recanto do aposento.
Com os
abalos que tivera, a febre de Nenê cresceu durante a
noite. Ninguém, entretanto, podia esperar que tal sucedesse: ainda ao escurecer
a temperatura de seu corpo era pouco mais que a regular. Assim, não se tomaram
as cautelas que exigiria o seu estado, se fosse previsto. Ficou a
rapariga que a servia dormindo na esteira junto à cama, para ser chamada quando
fosse necessário. E tudo caiu em sossego.
A certa
hora, o menino chorou. Nenê acordou e deu-lhe o peito a mamar. Já então, ela estava ardendo em febre: devia ter mais de trinta e nove graus. O leite secara inteiramente. A criança, ora soltava, ora chupava o seio e,
não sentindo nada, agitava-se,
irrequieta. A febre ia
crescendo. Veio o delírio. Pelos olhos da moça começaram a
desenrolar-se cenas estranhas e fantásticas: era um desfilar interminável das
mais loucas alucinações. Ela principiou a falar, conversando com as visões que
o delírio evocava. E certamente para aumentar-lhe a ilusão, concorria a voz do
filhinho, que descolara a boca do seio e estava em um meio
choro resmungado, agitando-se e
proferindo sons inarticulados.
Nenê, com os olhos muito abertos
e muito brilhantes
pela febre, não
lhe prestava a menor atenção. Olhava para o espaço e, dirigindo-se às imagens que só a
sua imaginação febril conseguia descobrir,
interpelava-se com todo o
desembaraço, conversando animadamente.
Começava, mesmo, a ter uns movimentos
convulsos: a febre
devia atingir quarenta
graus. O delírio não passava. Voltando-se em um dos bruscos movimentos que
fazia de instantes a instantes, olhou para o canto
do quarto onde estava Bichaninha:
os olhos da gata faiscavam com um brilho fosforescente. A moça ergueu-se um pouco na cama,
apoiando-se no cotovelo e, por um minuto, ficou inteiramente imóvel, fitando
os olhos do animal: parecia hipnotizada
por aqueles dois globos de luz esverdeada, cintilando no escuro, lá no
cantinho do aposento. Mas, como a febre crescesse mais
ainda, as convulsões, embora de pequena violência, amiudavam-se
cada vez mais. Em um dos movimentos, ela machucou a criança, que começou a
chorar. A criadinha que dormia junto à cama, fatigada da noite anterior, tinha
um sono pesado e roncante: nem ao menos se moveu. Mas o choro fez com que a
moça, deixando a fascinação dos olhos acesos do animal, fitasse o pequeno com
estranheza. Pôs-se de gatinhas na cama e começou a miar...
Evidentemente,
o delírio fazia-a supor que estava convertida em gata, talvez mesmo na
própria Bichaninha.
Os lençóis
caíram. Ficou decomposta, miando, miando sempre... Do ponto onde estava,
cuidando que era um agrado, Bichaninha respondeu também, com um som queixoso e
fino... Nenê moveu-se na cama, sempre de gatinhas, sempre miando, até chegar
perto do menino... Os olhos dela, esgazeados pela febre, luziam tanto como os
do animal... Os cabelos pretos espalhavam-se em desordem pelo colo... Uma das
mangas da camisa tinha escorregado até o cotovelo e via-se um dos seios. Chegou
junto à criança que chorava e, deixando de miar, começou a lambê-la; lamber-lhe
o rosto e as mãos; lambê-la mesmo por cima do vestidinho e das faixas...
O delírio
continuava.
A febre
subia ainda mais. A língua, que ela passava agora sobre o rosto do
pequenito, estava seca, ardente e vermelha... A pele do seu corpo, quase todo
despido, tinha estremecimentos bruscos, como esses com que os cavalos espantam as
moscas: eram contrações horríveis de ver-se!
Como
continuasse o menino a chorar, ela miou mais uma vez e, virando-o de costas com
uma só das mãos, abaixou a cabeça, mordeu-o no pescoço, segurando-o fortemente
— tal como vira fazer pela Bichaninha — e preparou-se para saltar da cama...
Não
saltou: faltava-lhe a agilidade. Atirou-se no chão, com a criança pendurada nos
dentes...
Houve um choque medonho e depois um rumor
indescritível na casa inteira... Chegaram todos, mal acordados ainda...
Os dentes dela
mordiam com tal força que tinham cortado a pele do pequeno... Ele
tinha rolado mais longe, o craniozinho abrira-se e o miolo — uma massa acinzentada — saía em hérnia, por uma fenda na cabecita,
como uma postema espremida, manchada com laivos de sangue...
Ao frio do
soalho, a moça teve uma última convulsão e morreu em espasmos tetânicos,
hirta, inteiriçada... Conservara ainda entre os dentes cerrados convulsivamente,
o naco ensanguentado da pele do menino... e nas costinhas dele, bem no pescoço,
era horrível aquela chaga redonda, em carne viva, como a esfoladura de um
cáustico...
Do seu canto, a Bichaninha, impassível,
olhava para toda a cena,
lambendo amorosamente os
filhinhos...
---
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...