6/24/2019

Bichaninha (Conto), de Medeiros e Albuquerque


Bichaninha
(A Borja Reis)
Pálida com os cabelos pretos destacando-se na alvura da fronha, os olhos meio-cerrados em uma prostração pro­funda, nenê descansava, tendo ao lado o filhinho nascido de poucas horas — quando Leonor invadiu-lhe o quarto, gritando:
— Nenê, Bichaninha também teve os filhinhos!...
A moça, com o abrir súbito da porta e o grito estrídulo da menina, teve um susto violento: o corpo todo lhe tremeu, um nó cerrou-lhe a garganta e uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto, corando-a vivamente.
Mas a Leonor, sem notar o que fizera, continuava a tagarelar:
— Você não imagina, Nenê... são quatro gatinhos pretos, muito bonitinhos... Nasceram de olhos fechados e estão só miando... Miam tão fininho que parecem pintinhos... Quer que eu traga um para você ver Nenê?
A moça, mais repousada do susto, disse apenas, fracamente:
— Não, Leonor.    Deixa-os lá mesmo onde estão...
E, enquanto a menina saía como um foguete, cor­rendo para junto da Bichaninha e dos gatos, Nenê desceu do travesseiro a cabeça para beijar o filho que dormia, então, um desses sonos profundos em que os recém-nascidos passam longas horas. E ficou-se a mirá-lo demo­radamente, com uma expressão de olhar saturada de infinita ternura...
Primeiro filho, filho nascido aos vinte anos de um casamento de amor: que carinho sem nome não tinha a jovem mãe por aquela criança! O rostinho muito rosado, de traços ainda incertos, com a moldura branca das rendas da touca enfiada por uma fitinha azul, pare­cia-lhe formosíssimo. E, demais, ela admirava, extasiada, a fragilidade e a pequenez daquele corpinho tão mimoso. Abriu-lhe a mãozinha e ficou-se sorrindo, a admirar-lhe a graça: parecia de boneca...
Nisto, a Leonor voltou.  Vinha a falar dos gatos:
— Sabes, Nenê, que gata malvada! — e tinha, di­zendo isto, uma expressão sincera de pena e indigna­ção —. Bichaninha, em vê/ de carregar os filhos, pega neles mordendo o pescoço e anda de um lado para outro com os pobrezinhos... Que bicho ruim!
— Mas, tolinha! disse, sorrindo, Nenê — como querias tu que ela fizesse? For certo que não os podia trazer ao colo, como uma pessoa... É assim mesmo que todas as gatas fazem...
Decididamente, porém, aquelas explicações não satisfaziam a menina, que estava preocupada com o caso. Saiu de novo, com a pressa em que sempre andava, estouvada e nervosamente e voltou a ocupar-se do pro­blema, que a interessava de ura modo extraordinário.
Bichaninha era a gata querida de casa; uma gata branca, alta e gorda, que vivia à fidalga, de colo em colo, amimada amorosamente por todos. Nos últimos tempos da gravidez de Nenê, aparecera também grávida e era um tema de caçoada em casa, quando a gata ia seguindo a moça, ver as duas, andando ambas com o meneio indolente e desajeitado dos ventres proeminentes. Gracejando, dizia-se muitas vezes que ambas dariam à luz no mesmo dia. Foi, de fato, o que veio a suceder. Os dois partos tiveram lugar simultaneamente: os pri­meiros vagidos da criança soaram pouco antes dos pri­meiros miados dos gatinhos. A coincidência, notaram-na em casa com grande alegria e muitas risadas. As duas mães estavam ambas em estado satisfatório; os recém-nascidos, todos bons — e a algazarrenta Leonor não sabia como repartir seus beijos e carinhos entre o pequerrucho sobrinho e os filhos da Bichaninha. Parecia dividir por todos a mesma afeição, distribuía com a mais inteira imparcialidade, em fatias iguais de bem-querer.
Nenê tinha, porém, uma leve contrariedade: o marido estava fora, servindo como engenheiro perto de Friburgo. Para lá lhe telegrafara: "Tens um filhinho, nascido hoje, às 10 horas da manhã, que espera a tua bênção. Saudades." Mas, receberia ele o telegrama? Essa dúvida a inquietava um pouco. Estava ansiosa por vê-lo. A alegria só seria completa quando estivessem ali os dois, pai e mãe, mais unidos ainda e mais amorosos junto daquela vidinha frágil, que de ambos participava.
Felizmente, o parto fora bom. O medico deixara-a, ao sair, com uma ligeira elevação de temperatura, mas sem receio de complicações. Recomendara apenas todo o sossego e proibira que conversasse. A única pessoa que contrariava essa ordem era Leonor que, no constante rebuliço em que sempre andava, vinha de quando em quando ao quarto e obrigava sua irmã a responder-lhe.
Nisso, entretanto, não estava o grande mal. O pior era que, com seu modo estabanado de entrar, abrindo a porta de repente, assustava a moça a cujo estado de fraqueza qualquer comoção se tornava muito sensível.
Da última vez em que isso se deu, foi à noitinha. Leonor deu um tal grito à entrada do quarto que Nenê, então meio adormecida, sentou-se na cama, assustada e teve um choque nervoso extraordinário. A causa do berreiro era ainda a Bichaninha. A gata vinha trazendo um dos filhos para o quarto da moça, quarto onde habi­tualmente costumava estar.
— Aí vem a Bichaninha! Aí vem a Bichaninha! anunciava Leonor em altos brados...
A gata entrou, passeou os olhos pelo aposento e, avançando um pouco, trepou sobre a cama da moça. Foi outro choque. Nenê temeu que ela arranhasse o menino e deu um grito de susto, tão forte que chegou a espantar o próprio animal. Bichaninha, sempre com o gato seguro nos dentes pelo pescoço, armou o salto, pulou da cama ao chão e foi levá-lo para o canto, seguida pela gritaria da Leonor:
— Lá vai a Bichaninha!  Lá vai a Bichaninha! Sucessivamente, o animal foi buscar os outros três filhos, trazendo-os todos pelo pescoço, presos nos dentes. E acomodou-se com eles no recanto do aposento.
Com os abalos que tivera, a febre de Nenê cresceu durante a noite. Ninguém, entretanto, podia esperar que tal sucedesse: ainda ao escurecer a temperatura de seu corpo era pouco mais que a regular. Assim, não se tomaram as cautelas que exigiria o seu estado, se fosse previsto. Ficou a rapariga que a servia dormindo na esteira junto à cama, para ser chamada quando fosse necessário. E tudo caiu em sossego.
A certa hora, o menino chorou.   Nenê  acordou e deu-lhe o peito a mamar.   Já então, ela estava ardendo em febre:  devia ter mais de trinta e nove graus.  O leite secara inteiramente.  A criança, ora soltava, ora chupava o seio e, não sentindo nada, agitava-se,  irrequieta.     A febre ia crescendo.   Veio o delírio.   Pelos olhos da moça começaram a desenrolar-se cenas estranhas e fantásticas: era um desfilar interminável das mais loucas alucinações. Ela principiou a falar, conversando com as visões que o delírio evocava. E certamente para aumentar-lhe a ilusão, concorria  a voz do  filhinho,  que  descolara a boca do seio e estava em um meio choro resmungado, agitando-se e  proferindo sons inarticulados.     Nenê,  com os olhos muito  abertos  e  muito  brilhantes  pela  febre,  não  lhe prestava a menor  atenção.     Olhava para o  espaço e, dirigindo-se às imagens que só a sua imaginação febril conseguia descobrir,  interpelava-se  com  todo  o desem­baraço, conversando animadamente.  Começava, mesmo, a ter  uns  movimentos  convulsos:    a  febre  devia  atingir quarenta graus.   O delírio não passava.  Voltando-se em um dos bruscos movimentos  que  fazia  de instantes a instantes,  olhou para o   canto   do quarto onde estava Bichaninha:   os olhos da gata faiscavam com um brilho fosforescente.     A moça ergueu-se um pouco na cama, apoiando-se no cotovelo e, por um minuto, ficou inteiramente imóvel, fitando os olhos do animal:  parecia hipnotizada por aqueles dois globos de luz esverdeada, cinti­lando no escuro, lá no cantinho do aposento.   Mas, como a febre crescesse mais ainda, as convulsões, embora de pequena violência, amiudavam-se cada vez mais. Em um dos movimentos, ela machucou a criança, que come­çou a chorar. A criadinha que dormia junto à cama, fatigada da noite anterior, tinha um sono pesado e roncante: nem ao menos se moveu. Mas o choro fez com que a moça, deixando a fascinação dos olhos acesos do animal, fitasse o pequeno com estranheza. Pôs-se de gatinhas na cama e começou a miar...
Evidentemente, o delírio fazia-a supor que estava convertida em gata, talvez mesmo na própria Bichaninha.
Os lençóis caíram. Ficou decomposta, miando, miando sempre... Do ponto onde estava, cuidando que era um agrado, Bichaninha respondeu também, com um som queixoso e fino... Nenê moveu-se na cama, sempre de gatinhas, sempre miando, até chegar perto do me­nino... Os olhos dela, esgazeados pela febre, luziam tanto como os do animal... Os cabelos pretos espalhavam-se em desordem pelo colo... Uma das mangas da camisa tinha escorregado até o cotovelo e via-se um dos seios. Chegou junto à criança que chorava e, deixando de miar, começou a lambê-la; lamber-lhe o rosto e as mãos; lam­bê-la mesmo por cima do vestidinho e das faixas...
O delírio continuava.
A febre subia ainda mais. A língua, que ela passava agora sobre o rosto do pequenito, estava seca, ardente e vermelha... A pele do seu corpo, quase todo despido, tinha estremecimentos bruscos, como esses com que os cavalos espantam as moscas: eram contrações horríveis de ver-se!
Como continuasse o menino a chorar, ela miou mais uma vez e, virando-o de costas com uma só das mãos, abaixou a cabeça, mordeu-o no pescoço, segurando-o fortemente — tal como vira fazer pela Bichaninha — e preparou-se para saltar da cama...
Não saltou: faltava-lhe a agilidade. Atirou-se no chão, com a criança pendurada nos dentes...
Houve um choque medonho e depois um rumor indescritível na casa inteira... Chegaram todos, mal acor­dados ainda...
Os dentes dela mordiam com tal força que tinham cortado a pele do pequeno... Ele tinha rolado mais longe, o craniozinho abrira-se e o miolo —  uma massa acinzentada —  saía em hérnia, por uma fenda na cabecita, como uma postema espremida, manchada com laivos de sangue...
Ao frio do soalho, a moça teve uma última convulsão e morreu em espasmos tetânicos, hirta, inteiriçada... Conservara ainda entre os dentes cerrados convulsivamente, o naco ensanguentado da pele do menino... e nas costinhas dele, bem no pescoço, era horrível aquela chaga redonda, em carne viva, como a esfoladura de um cáustico...
Do seu canto, a Bichaninha, impassível, olhava para toda  a  cena,  lambendo   amorosamente   os  filhinhos...

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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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