As sete
dores de Nossa Senhora
CAPÍTULO 1: A
PROFECIA NO TEMPLO
Eram passados quarenta dias sobre o nascimento de
Jesus, e, seguindo o preceito do Levítico, que prescrevia, ao fim desse prazo,
a purificação das mulheres que gerassem varões, Maria e José dirigiam-se ao
Templo, com o infante, levando o casal de rolas e os ciclos de prata do
resgate, que era quanto a Lei exigia dos pobres.
A manhã, luminosa e serena, fizera afluir ao Templo
desusada concorrência.
Os mercadores, sentados em tapetes e em cócedras, à
beira das tendas ou diante dos tabuleiros, ofertavam, com louvores, as suas
louçainhas: telas de finíssima trama entressachada de ouro, estrágulos de
púrpura sanguínea, turbantes entremeados de pérolas, saios de linho, abas de
lã; joias de ouro lavrado, pedras raras, armas de gume tão fino que cortavam no
ar um fio de seda, lanças de pontas rendilhadas; talismãs contra moléstias,
ervas dos montes que, maceradas em óleo, davam um bálsamo eficaz na cura de
toda a úlcera, filtros de virtude erótica; bolos de farinha e mel, frutos
acamados em folhas frescas; cordeiros alvos e pombos sem mancha para as ofertas
da Lei.
Ainda os havia paupérrimos: idumeus bronzeados, que
levavam na ponta das túnicas feixes de raízes, seixos das correntes, ramos de
flores murchas que reviviam a um fresco rorejo.
Um velho psilo, de longas barbas alvas, tamborilando
com duas varas no bojo de um odre, fazia dançar aos torcicolos uma negra
serpente ou, espalhando no manto estendido fina areia dourada, soltava por ela
um escaravelho, e, atentamente, ia lendo o destino dos consultantes nos
arabescos deixados pelas patas do inseto.
Muitos casais entravam e pobres, enfermos, alrotando,
descobrindo chagas que sangravam, cegos com os dedos nas órbitas vazias
apiedavam narrando misérias.
Moedas tiniam, rolavam nas lajes, e era um precipitar
tumultuoso de maltrapilhos, de aleijados; barbarizando protestos, por vezes
pugilatos entre os infelizes que se engalfinhavam com furor disputando um
óbolo.
Maria, entrando no Templo, lembrou-se da sua
adolescência, dos anos felizes passados no claustro.
Ali haviam decorrido os dias melhores da sua vida sem
dores, sem pensares, só com o cuidado em Deus. Ali chegara-lhe a notícia da morte dos seu velhos pais. Chorara longamente a
sua orfandade, mas na companhia das donzelas consagradas ao devoto serviço, a
que também fora dedicada, o consolo secou-lhe as lágrimas sem, contudo,
apagar-lhe a saudade no coração. Todavia a certeza de que os dois velhinhos,
tão meigos, tão justos, sempre fiéis à Lei,
teriam recebido o prêmio eterno do Senhor, abrandara-lhe o sofrimento d'alma.
Dali, sem conhecimento da vida, ignorante de tudo,
saíra para os esponsais, começando a sofrer desde a hora vesperal em que, num
afogueado morrer do sol por traz das colmas de Nazaré, estando a orar junto à
janela, que um sicômoro empanava de folhagem, vira, subitamente, a casa
iluminar-se, encher-se de perfume, e deram seus olhos deslumbrados com a beleza
mística de um anjo, alvo, fúlgido como de neve, louro como coberto de sol,
tendo à mão uma vara florida, que lhe falara em nome de Deus, anunciando o
mistério da grande Gênese.
A Virgem deteve os passos, cansada, sorrindo ao Filho
que dormia à sombra do véu fino que lhe descia da cabeça envolvendo-lhe o
busto.
José acercou-se do grupo e ficaram, um momento,
contemplativos.
Quem os visse diria que estavam, como estrangeiros,
admirando a construção magnífica do grande rei, na qual trabalharam, até a
morte, trezentos mil operários, uns de Israel, outros de Zidon, fiscalizados
por hábeis mesteirais de Biblos, peritos em brocar as pedreiras e em polir os
blocos; sem contar os que abateram os cedros, exploraram as minas, teceram os
panos, esculpiram os lenhos, ou, sob as ordens de Hiram, o artista de sangue
tírio, floriram os capitéis, entorsalaram as colunas em festões de flores
entremeadas de romãs e ainda fundiram, a grande piscina chamada o Mar de hvnze, cercando-se de copas,
entre açucenas e coloquintidas, e montando-a sobre doze touros, voltados, três
a três, para os pontos cardeais, em cujo bojo, dia e noite, sem descontinuar,
golfava, a jorros, a água das cisternas para as abluções dos sacerdotes.
De tal altura dominava-se toda a cidade com as suas
muralhas irregulares, a rotunda torre Antônia, cintilante de armas, o casario
branco, em cubos, alvejando no verdor dos eidos; muros eriçados de ervas
crespas, espinhosos cardos esgalhados, altos, frondosos sicômoros, à cuja
sombra dormiam rebanhos, os olivais das colunas, as frescas cisternas entre
figueiras e, longe, a torrente espumosa, os montes, os campos, as estradas que
seguiam para as terras férteis ou enviesavam para os desertos estéreis.
O sol começava a aquecer, os pombos desertavam o pátio
e, no interior augusto do Templo, um cântico reboou.
Entraram.
De todos os ângulos do imenso recinto subiam finos
novelos de fumo adensando-se em nuvem cerúlea que se estendia, alastrava,
ondulando, de leve, na altura, como um velario fluídico.
Maria descobriu o rosto lindo do Infante, que ainda
dormia.
Justamente passava por cila, a passos vagarosos, um
velho sacerdote chamado Simeão.
Súbito tremor agitou-o. Deteve-se e, com o venerando
rosto iluminado por um sorriso beato, os olhos arrasados de pranto, trêmulo,
voltou-se para a Senhora, estendeu os braços que a idade enfraquecera e,
tomando o Menino, mirou-o com religiosa ternura, sem dizer palavra, tão grande
era a emoção de sua alma.
Encarou de fito a Virgem e, tornando com o olhar ao
Infante, que lhe sorria, bradou arrebatado:
—
Agora, Senhor, despedes em paz o teu servo, segundo a tua palavra, porque os
meus olhos viram a salvação, que és Tu, que vens aparelhado e surges ante a
face dos povos, como Luz para alumiar as nações e engrandecer e glorificar
Israel!
Os
pais, recolhidos em timidez, não sabiam que pensar daqueles dizeres vagos e
pasmaram do júbilo e das lágrimas do santo homem que inclinava a cabeça branca
sobre Jesus, sem ânimo, todavia, de impor-lhe os lábios ao corpo, como em
receio de profanação.
De
novo, porém, e em mais vivo brilho, acendeu-se-lhe o olhar mortiço o, passando
o Pequeno aos ansiosos braços maternais, disse em tom profético, abençoando o
casal submisso:
—
Eis aqui está o Menino que será ruína e salvação de muitos em Israel, e será o
alvo a que mire a contradição. E dirigindo-se a Maria, suspensa das suas
palavras, ajuntou: E será também uma espada que trespassará tua alma para que
se manifestem os pensamentos de muitos corações.
A
tais palavras a Virgem estremeceu apertando, com ânsia, ao colo o Filho
pequenino e, envolvendo-o em um olhar que o pranto conturbava, ficou
petrificada, sem energia para tirar-se do lugar em que fora ferida pela
profecia dolorosa.
Simeão
demorava ainda junto à Família humilde, contemplando o Menino, quando uma
turba, de mendigos avançou seguindo os passos lerdos de uma velha.
Ana
era o seu nome, filha de Fanuel, da tribo de Aser, quase octogenária. Sentira,
em inspiração, a presença de Deus e, na sua velhice, vizinha da morte, tivera a
ventura de ver de face o Salvador, Era profetisa e passava os dias no Templo
ocupando-se em misteres piedosos.
Em
Jerusalém e nas cercanias o seu nome era pronunciado com veneração e as suas
palavras valiam promessas se eram de bom agouro, ou faziam tremer, como
sentenças, se anunciavam desgraças. Se, à beira de um leito, onde jazesse
enfermo abandonado da própria esperança, dissesse que ele havia de sarar, era
certo vê-lo, dias depois, ao soalheiro, reentrado na vida, narrando o milagre
da sua ressurreição.
Nunca
a sua boca pressagiara catástrofes que se não vissem as torrentes incharem,
transbordarem dos leitos pedregosos transformando os campos em alagadeiros ou
prolongar-se o estio em secura, esturrando os pastos, queimando o trigo o a
vinha, entresinhando os rebanhos.
Às vezes, levantando-se de ímpeto, mostrava,
com trêmulo e consternado gesto, o deserto amarelo, falando em sombras vivas, em
nuvens assoladoras e, dias depois, como uma tormenta que viesse crescendo do
lado das areias quentes, o céu escurecia com estranho soído-eram os gafanhotos
que chegavam.
Nunca
se lhe fizera consulta a que não respondesse com a verdade, abrindo o sorriso ou
desatando lágrimas.
E
assim a sua voz era escutada com fé.
E
Ana adiantou-se em passo vagaroso e trêmulo, arrimada ao bordão e, ante o
Menino, vergaram-se-lhe os joelhos e todos os mendigos prostraram-se com ela.
E
a velha disse, de mãos postas, com ardoroso acento e as lágrimas a quatro e
quatro pelas faces encarquilhadas:
—
Senhor, sois Vós o Messias anunciado desde os dias mais antigos de Israel.
Ainda o homem dormia debaixo de ramos, perto das dunas, nos desertos, pascendo
rebanhos, armado contra as algaras dos nômades e já os anjos, descendo do céu
pelo cimo dos montes, falavam de Vós aos pastores, no campo ou sentados com
intimidade à mesa dos patriarcas. Os profetas apregoaram o vosso advento.
Ventura
grande é a de meus olhos que conservaram luz até ver-vos.
Delícia
imensa foi reservada aos meus lábios que ainda lograram beijar-vos, Senhor.
Bendito
seja o ventre em que esperastes a voz que Vos chamou à vida.
Não
foste gerado, apenas entrastes no seio humano, embebendo-vos no sofrimento como
esponja encharca-se d'água em que mergulha. Vindes enxugar a lágrima da angústia e estancar o sangue dos flagícios. Sois a bênção
divina, redentora das almas, purificadora da terra.
Vivereis
como o sol e morrereis em sangue, na cumiada, para, à voz dos anjos,
reaparecerdes, depois da noite triste, mais fulgurante e mais vivo, na
insurreição que será a aurora do dia eterno.
Sois
o levedo que fará crescer o pão da misericórdia.
Bem
haja o tempo em que Vos revelastes. Ai! de ti, mulher! Os maus o levarão do teu
amor sem piedade de tuas lágrimas, sem pena dos teus gritos e farão dele a
vítima propiciatória, sacrificando-o no altar do monte.
Os
mendigos ouviram, pasmados, sem entenderem as palavras misteriosas da
profetisa.
Mas
o coração de Maria transbordava de angústia e a desventurada não se arredaria do ponto do
sofrimento se José a não tirasse pelo braço, levando-a ao Tabernáculo onde
deviam cumprir o preceito da Lei.
Ó
a triste volta a Nazaré!
Caminhos
por onde descera contente, sorrindo à felicidade, ia-os, então, trilhando a
soluçar.
Pobre
coração alvoroçado! Sentir agarrada a si vida tão nova e tão linda e já cuidar
no doloroso fim que lhe reservava o destino!
As
palavras de Simeão que a velha confirmara!...
Que
lucra uma alma em conhecer o futuro? Deus, quando fez os horizontes, foi para
encobrir o fim das jornadas.
A
vida é um livro que deve ser folheado página a página, sem que se consulte o
índice.
Conhecer
o futuro é sofrer a dor antes que se abra a chaga, é cintilar a lágrima antes
que abrolhe a angústia, é ver a noite em
pleno dia, é gemer com o pungir da frecha antes que a despida o arco.
Por
que a não deixaram mãe, com a esperança das mães, que é sempre venturosa,
expondo-lhe logo aos olhos o transito aflitíssimo da vida do seu filho!?
Havia
de passar o tempo dos beijos e dos sorrisos em conjecturas de tristeza,
soluçando debruçada sobre um berço que já lhe parecia esquife?
Ó
precursores nefastos da agonia! Caminhos floridos, como depressa vos mudastes
em carrascais espinhosos! Pobre mãe! de olhos abertos sobre a genitura triste
do seu amado, lá ia, sem ver as belezas, sem ouvir as vozes encantadoras das
aves, das águas e das folhagens, harpas dos ventos, só escutando o coração, que
gemia sobre o futuro tão mal fadado do pequenino, inocente e formoso Jesus.
CAPÍTULO
2: A FUGA PARA O EGITO
Hora alta.
Pelos
campos tudo era névoa. Não se ouvia, voz humana nem queixa de ovelha e, a não
ser o brilho de algum fogo de aprisco, nos cerros, a noite tinha vida apenas no
céu alto onde as estrelas cintilavam límpidas.
No
casebre, alumiado por uma lâmpada de barro, o silêncio era, de vez em vez, aflorado por um leve suspiro de
Maria.
Ainda
dormindo os cuidados não a deixavam: seus sonhos eram tristes.
Não
raro despertava em sobressalto. Aflita, chorando, estendia os braços para o
berço de vime onde Jesus dormia e, extática, de olhos nele cravados, ali se
ficava em adoração, vendo-o tão lindo, adormecido sobre os linhos alvos, com os
bracinhos abertos como um pequenino crucifixo de marfim. Pobre coração sem
sossego! Todos os rumores alvoroçavam-no.
Se
uma rola perdida no colmo turturinava, a pobre mãe erguia-se devagarinho,
punha-se de joelhos, atenta, à escuta; se o vento lavava nos campos logo,
solícita, apanhando todos os trapos que encontrava, punha-se a calafetar as
frinchas para que os avisos do inverno, trazidos na respiração da noite, não,
chegassem ao pequenito.
José
procurava tranquilizá-la:
—
Não te fies no coração, é vigia que não discerne e alarma-se com o menor ruído.
Que podes temer na terra amiga em que vivemos?
—
Tudo, senhor. As mais não vivem tranquilas porque são avaras. Não há guarda que
lhes baste: a torre mais forte parece-lhes sempre frágil. Meu coração bate
agora com mais força do que dantes batia para manter-me acordada e, se
adormeço, logo minha alma debate-se em pesadelos. Fico como uma casa deserta em
que esvoaçam estriges. Que posso eu temer? tudo.
E,
toda a noite, de instante a instante, erguia-se a criatura amorosa, de olhos
muito abertos sobre o filho e adormecia inclinada ao berço e, ainda dormindo,
maquinalmente o balançava.
José
deitara-se na arca e adormecera, com uma ponta do manto sobre o rosto e viu, em
sonho, um anjo — o mesmo que lhe aparecera para confortar-lhe o coração
envenenado pela suspeita — que lhe disse:
—
Ergue-te, leva o Menino e sua Mãe e foge para o Egito. Lá ficar às até que eu
te avise, por que Herodes há de buscar a Jesus para o matar.
Levantou-se
de pronto o patriarca — extinguira-se a chama da candeia, mas o luar,
infiltrando-se por uma aberta do colmo, fizera sobre o berço do Infante um
cortinado de luz — despertou Maria e, dizendo-lhe o que sonhara, ajoelharam-se
ambos dando graças a Deus pelo aviso e, à pressa, reunindo o que puderam, tomou
a Virgem o Menino, agasalhou-o ao colo e, trancando a porta do casebre,
puseram-se a caminho.
Abandonando
as estradas procurou José os trilhos mais agrestes, veredas pedrentas,
carreiros beirados de espinhais, por montes, porque assim evitavam encontros.
Ocultando-se
durante o dia, só à noite caminhavam protegidos pela treva; ainda assim mal
pressentiam rumores, logo precipitadamente refugiam escondendo-se em bosques,
enlapando-se em furnas ou cosendo-se com os penhascos até que passassem os
caminheiros.
Então
deixavam os esconderijos e, de novo, cautelosamente, retomavam o passo.
Ao
romper da alva José, agasalhando a Virgem e o Menino em lugar seguro,
aventurava-se em busca de alimentos.
De
uma feita, pousando em deserta, charneca, Maria, que sempre se mostrara
resinada não articulando queixa, não pôde conter as lágrimas. É que a sede,
longamente suportada, ia-se tornando em fogo que a consumia. Os lábios
fendiam-se-lhe, vertigens abalavam-na obscurecendo-lhe a vista e, ávida, em
delírio, febricitada, ouvia o fresco murmúrio de fontes em torno, mas andando
com o olhar em volta, via apenas areias e raízes retorcidas.
Queixou-se,
então, mas a sua queixa foi ainda um cântico de amor:
— Não
é pelo meu sofrimento que choro, disse, mas pelo receio que tenho de que o
leite estanque em meus peitos. Estas mesmas lágrimas são desperdícios da minha
fraqueza, pudesse eu absorvê-las para que se transformassem em leite e assim o
meu sofrimento serviria para nutrir o meu amor e, enquanto durasse a minha angústia, ele teria garantido o alimento. Mas as lágrimas perdem-se.
Ai! de mim.
José
procurava por toda a parte uma fonte, um resto d'água em côncavo de rocha, mas
tudo era aridez.
Uma
lágrima, porém, rolando dos olhos de Maria, caiu na dura encosta de um penedo e
logo a pedra reluziu como se a alagasse um suor. Um fio d'água brotou, desceu
pelas arestas enchendo-se, engrossando, alastrando em lençol alvo e frio e
ajuntou-se na terra entre o pedregulho adusto.
José
deteve-se pasmado, mas a sede tirou-o do espanto. Então, reunindo-se à Virgem,
que se ajoelhara e orava, louvaram ambos o Senhor, o mesmo Deus de bondade que
respondera aos clamores de Agar, no deserto, e que ali, de novo, revelava-se.
Depois, inclinando-se, beberam a goles fartos daquela água misericordiosa que
nascera da baga de pranto como de uma semente.
E
disse Maria:
—
Senhor, se as próprias pedras do deserto comovem-se com as súplicas do meu coração,
porque não há de o homem ouvi-las? Que mal pôde trazer ao mundo uma criança que
nem ainda se firmou na terra, porque não anda? que ainda não pôde soltar o
pensamento por falta da asa, que
é a palavra? Que ma pôde fazer um inocento para que assim o persigam?
E
José respondeu:
—
Sigamos. O coração do mau é pedra que se não converte. O rochedo gera a fonte,
se o ferires responderá com a centelha; o coração dá a lágrima e flameja em
ódio. Há corações, porém, que são feitos de neve: neles a lágrima está
petrificada: brilham, mas não têm lume. Para esses não há piedade nem cólera,
são os impassíveis, os indiferentes: corações brancos, corações diáfanos,
corações vazios.
Outros
há que fervem em ódio perene, são corações de betume abrasados em ira.
Não
compares os corações dos maus às pedras misericordiosas.
Enquanto
foram pela Galileia sempre se lhes depararam pousios: cavernas escusas, que
eram asilos de algaras, aduares de nômades. Entravam por elas e, sem receio,
agasalhavam-se.
E
nunca lhes sucedeu serem incomodados pelos moradores, ou fosse porque andassem
em razzias pelas estradas mais
corridas, ou fosse porque os contivesse à distância a Providência que velava
sobre os peregrinos.
Avizinhando-se
de Jerusalém, já sentindo o poder crudelíssimo de Herodes, maior se lhes tornou
o receio. Não se atreviam a caminhar senão a horas altas, quando nos campos
cessava, por completo, o movimento e morriam todos os lumes das choças e nos
cortelhos e corveiros os próprios cães dormiam,
O
latir longínquo de um rafeiro fazia-os estacar; a sombra oscilante de um ramo
detinha-os: o rumor d’água nos regos assustava-os e, tiritando, molhados,
abençoavam o frio que os transia, o vento que lhes cortava a face, porque, com
tão áspera invertia, mais seguramente viajariam sem ver gente, atravessando os
campos e as paupérrimas aldeias adormecidas.
Nas
proximidades de Ramla, na Idumeia, iam por um estreito, sinuoso caminho,
apertado entre alcantis medonhos quando, inopinadamente, ouviram vozes roucas,
tinir de ferros e logo, ao fulvo clarão de archotes, um bando de homens de má
sombra, que pareciam surgir da terra, tomou-lhes o passo.
Cercados
pela horda, ficaram os esposos em atitude humilde: a Virgem muito pálida e
trêmula, chorando. Mas o chefe dos salteadores, adiantando-se por entre as
lanças, mal descobriu os caminhantes, como tocado de graça, inclinou-se
respeitoso e, beijando a ponta do véu de Maria, saudou-a com palavras de boa
avença.
Os
bandidos olhavam imóveis, pasmados, mas a um aceno do chefe afastaram-se e o
salteador, compadecido da miséria de tão jovem e formosa senhora e do cansaço
do ancião e com pena do Menino, que resmungava, encolhendo-se de frio nos
braços maternais, ofereceu-lhes hospedagem, mostrando-lhes o seu formidável
castelo de pedra negra, alcandorado no viso de um rochedo.
E
como a subida fosse difícil, os homens cortaram ramos, cruzaram-nos em
andilhas, nelas sentando a Virgem, e levaram-na pela trilha escarpada até a
alcaçova onde, além dos donos, só as águias e os gipaetos chegavam.
Ali
repousou a Família durante dois dias suaves e quando, a instâncias de José,
tiveram de partir, o chefe encheu-os de presentes e, trazendo um manso jumento,
fez nele subir Maria. Ordenando, então, a alguns homens que os acompanhassem
até a vizinhança de Nazaré despediu-se com amizade.
De
Nazaré seguiram até Belém, onde se refugiaram em uma gruta, esperando a
passagem de alguma caravana que demandasse o Egito.
Uma
tarde viram chegar numerosa turba em que havia gente de várias castas — mercadores montados em camelos, sobre
almandras e telizes cairelados de ouro, seguindo carros atupidos de alfaias;
guerreiros d'albornozes listados, turbante rubro, lanças altas, luzindo;
mulheres em onagros e farta peonagem sobrecarregada de fardos. Rebanhos
acompanhavam a multidão que ia para os lados de Mizraim.
Enfardelando,
à pressa, o que tinham, meteram-se os esposos na caravana e, ao som de cantos,
ao trilo de flautas e ressoar de tímpanos vibrantes, à hora afogueada do ocaso,
deixaram Belém a caminho de Hebron e de Gaza, à beira do mar, até chegarem às
areias soltas e amarelas do imenso, tristonho e árido deserto.
O
céu puro, de um azul metálico, abafava — sentia-se a brasa do sol, o fogo
intenso que, a mais e mais, incendia-se e o bando caminhava em silêncio, lentamente, revolvendo o solo mole, fofo, em que os
pés enterravam-se queimando-se como em rescaldo.
Às vezes, de improviso, uma voz bradava
alegremente anunciando um oásis. Reanimavam-se todos precipitando os animais
esfalfados. Os peões corriam ofegando, era uma grita festiva — lanças
coriscavam no ar, iatagãs flamejavam e todos os olhares fitavam, com ânsia, o
mesmo ponto. Lá estavam as palmeiras verdes, as sombras das árvores hospitaleiras anunciadoras d'água, terra, enfim,
naquele oceano de secura.
Súbito,
porém, o desânimo substituía o contentamento e, às vozes felizes, aos cantos jucundos
sucediam guaiados, imprecações de revolta e blasfêmias.
Alguns,
com os pés em sangue, deixavam-se cair nas dunas sem coragem para continuar a
jornada; outros bradavam ao céu ameaçando-o com os punhos fechados. Mais
arrepelavam-se sentindo os filhos morrerem-lhes nos braços e a ilusão
dissolvia-se a pouco e pouco, a miragem apagava-se e o deserto estendia-se
ardendo ao sol, estéril, impassível, vazio, movendo-se, ondulando ao vento
quente.
E,
seguindo do alto a caravana, os gipaetos soltavam gritos antegozando a carniça
humana, o dizimo que os aventureiros pagavam à voracidade do deserto.
O
sol nascia ardentíssimo, os seus primeiros raios brandos, acariciantes nas
outras regiões, eram ali flagelos. Os olhos ficavam encandeados, doloridos à
fulguração micante das areias e, à falta de sombra, à míngua de fonte ou cisterna,
a turba caminhava penosamente, arfando ao ríspido calor que alquebrava os
próprios animais.
Maria
só achava conforto nas carícias
inocentes do Menino, nem sentia o sol que lhe escaldava a cabeça — ia de olhos
no Filho e, como não lhe faltasse leite, nem pensava em fonte o abençoava o
deserto que salvava o seu Amor.
A
noite descia como um bálsamo.
Toda
a caravana repousava ao tempo, gozando a frescura, sentindo os leões e os
tigres que rondavam o acampamento com um vívido fagulhar de pupilas.
De
quando em quando os nômades levantavam grita estrondosa assustando as feras e
os fogos de vigília brilhavam aqui e ali, por entre grupos de homens e de
animais.
Uma
tarde, finalmente avistaram Heliópolis, a cidade do sol, com os seus zimbórios
claros, os seus altos pilonos, os seus templos colossais.
Era
a hora religiosa em que os sacerdotes entoavam, ao som dos kimores, cânticos a
Atumu e os barqueiros do Nilo, colhendo as velas, abicavam à margem florida de
lotos.
A
Virgem sentia-se fatigada, e como parassem junto das ruínas de um túmulo,
deixaram seguir a amotinada caravana e recolheram-se à fúnebre guarida.
Na
manhã seguinte, cedo, antes da oração à aurora, levantaram-se os esposos
dirigindo-se para a cidade resplandecente.
Junto
à porta principal avultava uma árvore
majestosa, cuja virtude era proclamada por quantos a conheciam.
Muitos
adoravam-na como divindade. Tanto que Maria se lhe chegou à sombra, logo a árvore curvou-se dobrando-se no tronco, varrendo o solo com
a folhagem basta. Três vezes repetiu o respeitoso movimento, depois, sacudindo
os ramos, espalhou todas as suas flores em volta, alcatifando a terra que os
peregrinos deviam pisar.
E
foi assim que a flora sagrada do Egito recebeu a Família de Jesus.
Atravessando
a cidade em direção à vila de Matarieh, entro sicômoros, regada pela única
fonte que em tais terras deriva, todos os animais sagrados dos templos que
ficavam à beira do caminho que os esposos percorriam, rolaram dos altares
partindo-se nas lajes — assim a Fênix imortal, o touro Névis, o pássaro Bonu e
o grande disco de ouro de Aton, o sol, que se desfez em estilhas com grande
espanto dos sacerdotes.
A
população da vila de Matarieh, onde se fixou a Sagrada Família, era humílima;
pobre gente que labutava em pesados trabalhos sofrendo, sem revolta, a opressão
dos nobres, a afronta dos ricos, o castigo dos capatazes, o desprezo, a repulsa
dos sacerdotes.
Se
queria pedir aos deuses a piedade devida a todos os seres, os neochoros
ameaçavam-na, corriam-na dos vestíbulos por imunda, indigna de aparecer ante os
altares.
Vivia
em cabanas de lodo, cobertas de palmas e tão nuas e desprovidas que os leitos
eram alastros de folhas e os lumes eram fogueiras de versas.
Em
uma dessas cabanas instalou-se José e logo, compondo-a, calafetando as fendas,
amparando os esteios, substituindo as palmas da cobertura palhiça, alhanando o
solo, tornou-a mais confortável. Depois, com o que dispunha em moedas, adquiriu
a ferramenta, e, à sombra larga de um sicômoro, começou a trabalhar contente,
tranquilo, vendo o Menino crescer, brincar entre as fitas de madeira que a
plaina tirava dos lenhos que ia acepilhando.
Maria,
ordenando a casa, asseando-a, fazendo o lume, tomava a urna e subia a colina,
caminho da fonte. Lá ficava lavando as roupas do casal e estendia-as na encosta
do outeiro Matagoso. À tarde recolhia-as.
Apesar
da fadiga e da pobreza em que vivia, sentia-se feliz no sossego. Ó as
lancinantes angústias! o medo de ver-se
órfã, despojada daquele amor formoso! Ali, seu Filho podia andar livre, correr
nos campos, mirar-se, risonho, nas águas da fonte, brincar com os pobrezinhos
da sua idade.
E
ali viveram sete anos longos, ali cresceu o Infante, foram-se-lhe abrindo os
olhos; ali sentiu o seu pequenino coração o primeiro pungir da piedade pela dor
humana: velhos sem lar, caídos nas estradas, morrendo esquecidos, desamparados;
criancinhas chorando sem consolo, perdidas, chamando as mais que lhes não
podiam responder do fundo abafado dos túmulos em que jaziam; mulheres fracas
sucumbindo ao peso das tarefas; enfermos implorando sem resposta.
Uma
tarde, parando no outeiro em que brincava — os trabalhadores cantavam ao longe
— enterneceu-se Jesus com os olhos arrasados em lágrimas.
Vendo-o
chorar, Maria precipitou-se comovida:
—
Por que choras, meu Filho?
—
É tão triste o canto dessa pobre gente, minha Mãe.
Longe,
nos templos, ressoavam hinos.
A
religião impassível respondia aos lamentos dos miseráveis com as panegírias
solenes.
E
Jesus soluçava sobre a tristeza dos humildes.
Uma
tarde, recolhendo do campo, viu José o anjo anunciador. Reconhecendo-o,
prostrou-se com a face na terra.
—-Levanta-te,
disse-lhe o divino enviado, toma o Menino e sua Mãe e vai para a terra de
Israel, porque são falecidos os que o buscavam para o matar.
Foi
com alvoroço que a Virgem recebeu a boa nova — já lhe doía o coração com
saudades da pátria. Despedindo-se dos vizinhos, da fonte, do sicômoro à cuja
sombra passava os dias fiando, grata, bem dizendo aquela terra de
hospitalidade, preparou-se para a partida. Deixaram Heliópolis com uma
caravana, quando, porém, avizinhavam-se dos palmares de Belém, sabendo que
Arquelau reinava na Judeia, sempre receosos, meteram-se por desvios desertos e,
depois de longas, trabalhosas voltas, chegaram a Nazaré, na Galileia natal.
Encontrariam
ainda a sua casa? Assim pensavam quando, às últimas luzes da tarde dourada,
viram-na de pé, entre as figueiras.
Em
comovida alegria precipitaram os passos para a cabana, abriram-na, e, entrando,
encontraram-na tal como a haviam deixado. Tudo em ordem: na horta os mesmos
legumes, no eido as mesmas flores, as arcas cheias de trigo, as ânforas cheias
de azeite, água fresca na urna, frutos maduros nos gigos, o lume aceso e a
lâmpada de barro alumiando o interior.
Ficaram
maravilhados. Que bom vizinho lhes teria, com tanto zelo, conservado o lar?...
E
não viram um vulto branco, silencioso, alado, que lentamente saía, diluindo-se
como a névoa ao sol.
—Louvado
seja o Senhor! exclamou José ajoelhando-se no limiar da casa, de olhos no céu
que começava a estrelar-se.
Maria,
risonha, ia e vinha revendo o seu canto doméstico e fora, isolado, o pequenino
Jesus, de olhos baixos, escutava o coração piedoso que lhe repetia o canto
dolente dos miseráveis de Matarieh.
E
as lágrimas rolavam-lhe a quatro e quatro dos olhos misericordiosos.
CAPÍTULO 3: JESUS NO TEMPLO
Aos
doze anos era Jesus de tão doce bondade e tão simples, gracioso e natural de
modos que os meninos suspendiam os brinquedos para ouvi-lo; decoravam-lhe as
palavras, repetiam-nas aos pais que as comentavam maravilhados.
O
prazer maior do predestinado Infante era seguir as trilhas agrestes, buscar a
companhia dos pastores pensativos, ficar com eles à mesma sombra, ouvindo as
histórias que contavam sobre as estrelas das noites calmas, enquanto as ovelhas
soltas pastavam a erva tenra que alfombrava maciamente a encosta, dos outeiros.
José
que, a princípio, tentara ensinar-lhe o seu ofício, não para aproveitar-lhe o
trabalho, que a força ainda era pouca para carpintejar, mas com o fim de
proporcionar-lhe distração que o tirasse do sonho triste em que vivia,
reconhecendo a inutilidade do seu desejo, porque o Menino ainda se entristecia
mais na oficina, deixou-o solto,
Como
o sabia estimado de todos não se preocupava com as suas ausências, certo de que
o veria regressar à tarde lento, de olhos extasiados no céu, com um lírio ou
com um ramo verde, que era quanto trazia dos seus passeios solitários.
As
interrogações da Mãe, que o afagava carinhosamente, respondia sempre com
palavras misteriosas ou dizendo: “Estive a pensar uma ovelha ferida, a ligar um
ramo de árvore, a juntar achegas
para auxiliar um pássaro que andava a tecer o ninho”.
Ninguém,
jamais, o surpreendeu em exercício que não fosse de caridade meiga — nem a
correr pelas veredas, nem a trepar em troncos, nem a perseguir animais; sempre
o viam praticando ações piedosas, quando o não encontravam isolado em recantos
desertos, a cabeça inclinada, pensando.
Na
fonte, aonde costumava acompanhar Maria, à tarde, as moças, descansando as
urnas, chamavam-no provocando-o a falar e ele, sisudo, respondia-lhes com tão
seguro critério que todas pasmavam e emudeciam. A própria Virgem, com os olhos
marejados de lágrimas, embevecida, não disfarçava o seu espanto ao ouvir as
sentenças de tão profundo alcance que discorriam da linda boca do seu filho.
—
É estranho, disse certa mulher, ouvindo-o.
É estranho que de tão tenra criatura saiam
conceitos tais. Nunca se viu rebento apenas abrolhado dar sombra a uma caravana
e nos, em torno desta criança, atentas às suas palavras, estamos como abrigadas
por um renovo ainda, sem folha aberta.
—
A caridade, disse Jesus, pode vir do mais humilde: não é preciso possuir minas
na terra para matar a fome de um pobre: basta um pedaço de pão. A lã de uma
ovelha combate o frio do mais rigoroso inverno; uma gota de bálsamo alivia a
dor mais forte. Parece-te muito que uma criança atraia adultos à sua palavra:
quando os corações são bem formados, para chamá-los à piedade não é preciso
mais que um ai!
Nada
sei do que dizem os livros, mas muito tenho aprendido com o sofrimento dos
homens. O que saboreia o vinho nem sempre conhece o gosto natural da uva. Uma
coisa é comer o pão, outra é vê-lo fazer.
Eu
sou como aquele que apanha o fruto da vinha ou como o segador que faz o molho
de trigo: sei como sofre a uva no lagar e quanto padece o grão no moinho: vejo
correr o sangue da vida e ouço a trituração dolorosa da pedra que mói o grão.
Os
livros são recadeiros indiferentes: contam, não fazem ver. Não é o mesmo saber
da morte e vê-la. Quem lê presume, quem vê participa do bem ou do mal — goza ou
padece. Eu vejo.
Não
admiras as palavras pelo seu valor senão por virem de mim, que ainda ontem
balbuciava, e parece-te estranho que tão grande mó de gente se reúna para
ouvir-me e louve o que digo. É que todos que aqui se ajuntam trazem a alma
preparada para a doutrina.
Um
leão manso pôde ser conduzido por um menino e para domesticar um onagro trazido
do deserto não hasta a força de dois homens. A ovelha trasmalhada na selva
embravece, o tigre tratado com humanidade roja-se submisso e come à mão do
domador.
Assim
uma criança pode falar a adultos desde que os encontre aderençados.
E,
assim dizendo, Jesus brincava com o ramo verde que espalhava em volta aroma
delicioso.
Foi
nesse tempo que Ele fez a viagem a Jerusalém, para a festa da Páscoa,
acompanhando Maria.
Nessa
jornada, que a Lei prescrevia, os homens caminhavam apartados das mulheres. A
Virgem porém, tomando a seu cuidado o Infante, levou-o na caravana feminina.
Ainda
que as moças e as próprias matronas, ao longo do caminho, durante os quatro
dias — que a tanto montava o tempo da viagem de Nazaré a Jerusalém — fossem
cantando, por vezes bailando ao som de instrumentos, o Menino não parecia
alegrar-se com a jucundidade festiva da companhia e, se a Mãe o interrogava ou
o incitava a brincar com os da sua idade, retraía-se dizendo:
—
De que serve mentir com o sorriso à tristeza que lavra em meu coração? O
mercador honesto só expõe amostras do que tem, como queres tu que eu sorria se
em minh’alma só há tristeza? Por que não se há de permitir que eu seja como
sou? Não se exige da árvore estéril
que dê frutos nem se pede ao areal arvoredo de sombra e há de o melancólico
sorrir por comprazer dos que o cercam?
Deixa-me
ser como sou. Que culpa tenho eu de haver nascido de um tronco cuja seiva e a
lágrima? Não peças mais do que tenho.
E
Maria, sem palavras a opor ao que lhe dizia o Filho, suspirava sofredoramente.
Quando
chegaram a Jerusalém — a cidade regurgitava de forasteiros — depois de ligeiro
descanso, logo subiram ao Templo a cumprir o preceito da Lei.
Imolado
o cordeiro pascal pelos sacrificadores no pátio do Templo, reuniu-se a Família
em torno da mesa em que também apareciam os pães ázimos.
Não
correu, com a alegria do costume, o banquete tradicional. Maria mal tocou na
sua parte e, tanto que viu o Filho distraído, dirigiu-se a José falando
comovida:
—
Senhor, bom seria entender-vos com um dos sábios doutores da cidade a fim de
que nos valesse com uma receita que curasse o Menino do mal que o vai
lentamente consumindo. Fez toda a viagem tão acabrunhado que nem as minhas carícias conseguiram desanojá-lo. Tudo lhe aumentava a
melancolia. O sol, os risos, a beleza da terra, a alegria das moças, o luar das
noites eram outros tantos motivos para que seus olhos se turbassem. Há nele um
mal misterioso que só a ciência descobrirá. Por que não procurais um desses
homens hábeis, que fazem prodígios com os seus remédios?
O
patriarca respondeu:
—
Acreditas, Maria, que alguém possa modificar a raiz de uma planta e a sua
natureza a ponto de a fazer produzir outras flores que não as que lhe são
próprias? Quem tal fizesse seria igual a Deus. Assim também não se muda a alma
que trazemos: se ela vem para sorrir, há de sempre dar o sorriso; se traz por
dom a tristeza, triste há de sempre ser. Calou-se.
O
Templo atroava. As vozes ecoavam e, por entre a turba em que se cruzavam
roupagens de todas as cores e havia ricas cintilações de metais e pedrarias,
iam e vinham, de rojo, miseráveis gemendo, imprecando, chorando — cegos aos
esbarros, leprosos com as chagas tresuando, paralíticos de rasto se todos oram
duramente, enojadamente repelidos pelos próprios sacerdotes que os evitavam com
repugnância.
Jesus,
encostado a uma coluna, acompanhava o doloroso espetáculo com os olhos
arrasados d'água e, como Maria se aproximasse, chamando-o, Ele disse-lhe:
—
É esta a casa de Deus! Aqui são os ricos os que mais valem. Para eles abrem-se
todas as portas, descerram-se todos os véus. São eles que se avizinham dos
altares, como os levitas. As ondas de incenso envolvem-nos antes de subirem a
Deus. Aos pobres nem consentem que cruzem o limiar do santuário.
Ó
minha mãe, como minh'alma mentia ao meu coração quando lhe falava da Casa do
Senhor. O que eu imaginava era o contrário do que vejo — os pobres em torno de Deus, como a sua
aureola, a Piedade recebendo à porta os humildes —e encontro a ambição vendendo
os lugares sagrados e os sacerdotes zumbridos diante dos cofres de ouro como se
neles vissem imagens da arca santíssima. Ó minha Mãe... E rompeu a chorar
agarrado à coluna.
Ao
fim do terceiro dia, terminadas as festas, regressaram os peregrinos guardando
a mesma ordem em que haviam chegado. Em caminho notou Maria a ausência de
Jesus, mas supondo-o na companhia de José, não se inquietou.
À
noite, porém, acampando as duas caravanas no mesmo sítio, não pôde a Mãe
suportar as saudades do Filho.
Deixando
a tenda e guiando-se pelos lumaréus que flamejavam no campo, foi em demanda do
agasalho do esposo.
José
estava sentado à beira do lume, a olhar o céu estreitado, quando Maria,
rompendo das trevas, apareceu-lhe perguntando pelo Menino. Sobressaltou-se o
ancião;
— Não
o tens contigo?
—
Eu! Não vem convosco? Não o trouxestes vós?
—
Não. Bem o procurei, supondo que o havias chamado.
—Ai!
de mim... Em pranto aflito, desgrenhada, lançou-se a Virgem pelo acampamento
alarmando os que repousavam. Aos seus clamores acudiam as companheiras
penalizadas, homens iam-lhe ao encontro condoídos — a todos fazia a misera a
mesma pergunta: “Meu filho! Não o vistes?” De todos ouvia a mesma desoladora
resposta: “Não!”
Perdido!
Saíram
a percorrer os arredores com archotes de palmas, bradando pelo Menino.
Ninguém.
Os cães ladravam nas herdades longínquas.
À pressa,
sem lembrar-se dos perigos a que se ia expor, pôs-se a Virgem a caminho seguida
de José.
Não
andava, corria pela noite negra, tropeçando em toros e em pedrouços, resvalando
em barrancos, ferindo-se em espinhais. De quando em quando parava sem fôlego,
com o coração em ânsia e ficava a escutar no silêncio.
Procurava
José tranquilizá-la com palavras de esperança, a desventura da rompia em pranto
e bradava desesperada o nome do Filho que os ecos repetiam, espalhando-o no
escampo como se quisessem auxiliar a infeliz.
Alvorecia
e a pobre Mãe, sem sentir fadiga, com os pés em sangue, os cabelos molhados de
orvalho, correndo, precipitando-se, avistou no cariz do horizonte as terras
brancas de Jerusalém.
Quis
José que tomassem algum descanso em uma pousada, mas a Virgem negou-se e,
caminhando, entrou na cidade quando começavam a troar os pregões dos
mercadores.
Foi
a todas as casas conhecidas, penetrou, arrebatadamente em todos os khans,
percorreu todos os bazares perguntando a quantos encontrava, dando os sinais do
Filho e ninguém que a tranquilizasse.
Perdido!
Viam-na
passar e olhavam-na: uns com pena ou espanto, outros sorrindo. Um legionário
tentou detê-la, ela nem deu pelo gesto do soldado e prosseguiu.
Desanimada
e exausta, deixou-se cair sobre um escombro de pedras soluçando perdidamente.
Foi quando José, erguendo os olhos para o céu, deu com o edifício colossal do
Templo maravilhosamente iluminado pelo sol e disse, talvez para minorar os
sofrimentos da infeliz com um resto de esperança:
—
E no Templo, Maria? Quem sabe!? Talvez tenha lá ficado a distrair-se com os
bufarinheiros.
—
Sim! Sim! No Templo. Ó a esperança, lume que renasce ao sopro mais leve.
E
a Virgem precipitou-se, subiu aladamente a longa escadaria, atravessou o pátio
rompendo a multidão.
De
repente estacou, trêmula e pálida, as mãos ambas no peito, as lágrimas a
saltarem-lhe dos olhos molhando-lhe copiosamente o rosto, que sorria. É que
descobrira o Menino.
Era
ele! sim, era! lá estava, debaixo do pórtico, entre doutores que o ouviam em
maravilhado silêncio, uns sentados,
descaídos sobre os braços fincados nos joelhos, com os rostos esmagados nas
mãos, os olhos fitos; outros de pé, imóveis braços cruzados, atentos.
E
Jesus, no meio deles, lindo, transfigurado, discorria com suavidade,
respondendo a objeções que lhe faziam, resolvendo dificuldades ou expondo, em
palavras claras, Uma doutrina de amor. De instante a instante corria um rumor
de aplauso na assembleia, os anciãos acenavam aprovando, entreolhavam-se
deslumbrados, sorriam por verem tanta sabedoria exposta, por uma boca em flor,
tanto pensamento sublime nascido entre os cachos mimosos de uma cabeça,
infantil.
A
Virgem, que ficara à distância,
extasiada, adiantou-se então e, dirigindo-se a Jesus, falou-lhe:
—
Filho, por que usaste assim conosco? Sabe que teu pai e eu andávamos
buscando-te, cheios de aflição.
Serenamente,
avançando em passo grave, Jesus respondeu:
—
Para que me buscáveis? Não sabeis que importa ocupar-me das coisas que são do
serviço de meu Pai?
Não
compreenderam os esposos as palavras do Infante, nem procuraram entendê-las,
tão grande era neles a alegria por o haverem encontrado.
E
Jesus retirou-se.
Voltaram-se
os doutores para segui-lo com o olhar e, durante muitos dias, o assunto das
conversas, no Templo foi o prodigioso Menino, tão novo e já iniciado nos mais
profundos segredos da ciência d'alma o nos mistérios mais subtis da religião de
Israel.
CAPÍTULO 4: MARIA ENCONTRA JESUS NO CAMINHO DO SUPLÍCIO
Foi
um amotinado alvoroço no Pretório quando, depois da fraqueza de Pilatos, ao som
das buzinas roucas, os soldados da guarda romperam vagarosamente a marcha.
O
povo, atropelando-se, refluiu aos brados. Mercadores retiravam açodadamente os
tabuleiros, corriam com os gigos, puxavam ou continham os animais espantados.
Mulheres debandavam como perseguidas, levantando nos braços os filhos que
choravam, esperneando com medo.
A
tarde abrasava. Uma nuvem de pó ondulava nos ares como imenso véu doirado.
Apesar da brutalidade com que os legionários repeliam, a conto de lança, os
curiosos que se apinhavam fechando a passagem, a turba adensava-se a mais e
mais, engrossando-se com os que chegavam de longe, atraídos pela notícia da sentença e pelo gozo do prometido espetáculo de
morte.
Quando
Jesus apareceu, derreado ao peso da cruz, a fronte lívida, laivada de sangue,
as faces denegridas das punhadas com que o haviam maltratado, foi um delírio na
multidão. Homens acenavam com as abas das túnicas, com os turbantes; cajados
entrechocavam-se alegremente. Mulheres agitavam os mantos, rapazes bailavam aos
saltos, atirando ao ar as fotas, soltando gritos selvagens. E as injúrias
cruzavam-se: afrontas, obscenidades, doestos caluniosos.
Vozes
pediam com sarcasmo um milagre. Um velho maltrapilho, os pés envoltos em sujo
esparto, avançou frenético, com os olhos cheios de cólera, a longa barba,
amarela e eriçada, ainda úmida de vinho e, levantando os braços, magros e
guedelhudos, pôs-se a rouquejar contra a vítima.
—
Eh! lá, homem de Nazaré, mais depressa, que os corvos começam a estalar os
bicos de impaciência. Chama os anjos para que te ajudem. Chama-os, sedutor de
mulheres! intrigante! feiticeiro! Mostra o teu poder.
E
outras vozes romperam em grita:
—
Foi ele que fez murchar a vinha do meu horto.
—
O meu campo era fértil, ele passou junto à cerca e logo a terra, secou e toda a
planta morreu.
—
Impostor! Feiticeiro!
Uma
pedra zuniu, bateu no madeiro esfarelando-se.
Jesus
não levantava os olhos, seguia lento, obedecendo a uma corda que lhe haviam
atado ao pescoço e que o centurião, de instante a instante, em empuxo, atesava.
Acompanhavam-no dois criminosos, levando cruzes mais leves. Eram ladrões, Mas o
povo não parecia dar por eles, só em Jesus reparava tornando-o alvo de todas as
chufas e brutalidades.
Às
portas das casas sairiam os moradores: operários com as suas ferramentas, mães
amamentando os filhos, mulheres coitadas de mitras, em túnicas tão leves que o
ar enfunava-as ou lhas apegava às formas com a facilidade com que desfaz o
fumo, os braços nus, enrodilhados em braceletes de ouro, os peitos brancos
desnudos, acenando aos mancebos, chamando-os para pedir informações.
Algumas
apoiavam-se, com languidez, em escravas que traziam flabelos de longas plumas
ou liras.
Nos
eirados agitavam-se chusmas de curiosos, os braços erguidos, sustendo túnicas abertas
ao sol à maneira de velarios. Os pombos voavam assustadamente com um forte
estalar de asas.
À medida
que a marcha se alongava mais, crescia a multidão vociferadora.
O
mártir arfava, alagado em suor e em sangue; as pernas tremiam-lhe, por vezes
dobravam-se. De instante a instante as buzinas roucas estrugiam.
Passava
Jesus diante do um casebre, cujos muros, tendidos e hirsutos de ervas,
ameaçavam ruir, quando lhe saiu ao passo uma mulher piedosa e, com um pano de
linho novo, enxugou-lhe o rosto, levando estampada na lençaria as divinas
feições do paciente.
O
povo rompeu em assuada, aos ganidos. Um homem avançou de repelão, tentando
arrancar das mãos da mulher o pano ensanguentado, mas estacou levando as mãos
ambas ao peito: o rosto enegreceu-lhe, túrgido, saltaram-lhe os olhos,vermelhos
como postas de sangue, ferveu-lhe à boca uma espuma rubra e, com um rugido de
dor, rolou por terra, morto. E logo tresandou tão insuportavelmente que o povo
fez um claro em volta do cadáver ainda quente e já desfazendo-se como velha
carniça.
A
boca aberta e seca, respirando aos arquejos, e tão alto que se lhe ouvia o
estertor opresso, ia indo Jesus aos arrancos. Vergava o dorso e, a mais e mais,
falhavam-lhe os passos trôpegos. De repente, num estremeção, dobraram-se-lhe
molemente as pernas e teria tombado ao peso do madeiro se mãos prestes o não
houvessem amparado, não por piedade, mas por interesse cruel, por que seria uma
decepção para o povo se o nazareno sucumbisse à fadiga, quando todos contavam
com o espetáculo mais interessante da crucificação.
Ia
o cortejo cruzando a Porta Judiciária quando um grito lancinante atravessou, o
ressoo da marcha e o estuar rumoroso das falas, fazendo a multidão estacar de
improviso.
Uma
mulher estava de pé, entre as silvas do caminho, lívida, os olhos muito
abertos, os magros e enfraquecidos braços alongados em desespero para o Mártir,
balbuciando palavras que lhe morriam nos lábios, afogadas no pranto que os
olhos despejavam.
Não
se tirava do lugar. As ervas, que se lhe agarravam às vestes, pareciam retê-la
e o seu corpo esguio, macilento, tremia todo com violência tamanha que os
cabelos, já grisalhos, despenharam-se-lhe pelos ombros agudos.
Era
Maria.
Como
o centurião tirasse pelo baraço fazendo caminhar o condenado, a misera lançou-se
alucinadamente por entre os homens, passou por eles sem notar nos soldados que
cruzavam as lanças para contê-la, deixando no ferro de uma farrapos da túnica.
E entrou no cerco doloroso.
Chegou
a Jesus e, inclinando-se, tomou-lhe o rosto nas mãos, pôs-se a beijá-lo com
ânsia, lavando-o em lágrimas. E chamava-o em voz surda e meiga:
—
Ó Filho meu! Meu Filho!
Mas
a turba rosnava, vozes protestaram:
—
Afastai-a daí! Faz-se tarde. Cumpra-se a ordem de Pilatos. Morra o sedicioso!
E
o centurião pôs-se a caminho, levando a vítima quase de rastos.
As
buzinas troavam tirando ecos melancólicos dos vales e o som ia tão longe que se
via, nos ressequidos barrancos, por entre as rochas áridas, fugirem corpos
brancos, como pedras que rolassem, que eram ovelhas que o susto dispersava.
O
caminho pedrento, recavado em sulcos, queimava como rescaldo.
Junto
a uma velha, desmantelada cisterna repousavam recoveiros, com as lanças altas
fincadas na terra seca e os jumentos presos a toros de figueiras mortas e, mais
apartado, num inato de tojo, negro e pútrido, um leproso acocorava-se
arrepanhando os andrajos, não por vexame da sua quase nudez, mas para ocultar
as chagas que lhe apodreciam o corpo.
Satisfeitos
do que haviam visto, muitos curiosos regressavam lentamente conversando sobre o
suplício ou sobre a festa da Páscoa; voltavam-se, por vezes, acenando para o Gólgota
escalvado, onde o sol ardia em fogo vivo reluzindo nas pedras, avermelhando os
cardos.
Os
legionários abochornados seguiam a passo, alguns levando os capacetes espetados
nas lanças. A marcha remorava à medida que o caminho tortuoso ia alcançando o
monte. Um dos ladrões parou, pediu água. A sua voz era rouca e áspera.
Riram-lhe em rosto. O condenado irritou-se e respondeu com uma afronta, ameaçando
ferozmente o grupo de onde partira a gargalhada. Foi então, uma rinchavelhada
de troça, vaiaram-no, atiraram-lhe pedras e estéreo.
Maria
não parava, caminhando às tontas, com uma ânsia que lhe tomava todo o ar,
sufocando-a em sofrimento. Ia para o centurião de mãos postas, pedia-lhe:
falava aos legionários, voltava-se angustiosamente para a turba e, como
reconhecesse algumas das mulheres, chamava-as pelos nomes.
Retrocedia
a correr, pisando na fimbria dos vestidos rotos, às topadas nas pedras que
ressaltavam e tomava; a mãos ambas, a cauda da cruz esforçando-se para que todo
o peso do madeiro lhe coubesse; mas os soldados repeliam-na brutalmente,
ameaçando-a.
—
Vós não sabeis, decerto, que ele é meu Filho... Meu Filho! Deixai que o ajude a
levar a cruz, tenho força para carregá-la e ainda que os braços ma negassem,
pedi-la-ia ao coração, O seu peso é mais suave do que a minha agonia e eu
caminho, bem vedes. Não é possível que vossos olhos não vejam o meu sofrimento.
Eu devo estar transfigurada.
Que
fez ele? Por que assim o maltratam? Por que o levam à morte? Quando me foram
dizer que o haviam condenado eu, que ardia em febre; eu que, há mais de quinze
dias, não me podia arrastar até à porta da minha casa, senti-me outra e tive
forças para correr a vós o para clamar tão alto que os próprios abutres que
passam nas nuvens ouviram os meus gritos e apressaram o voo. Aqui estou, sou
mãe, sua mãe. Ele é meu Filho. Trouxe-o pequenino ao colo, deixai que agora o
ajude a carregar o seu patíbulo. Ele é tão fraco, tão doente... Se soubésseis!...
Foi sempre assim fraco. Por César! Por vossa mãe! Por vossos filhos!
Ajoelhou-se
de mãos postas, pedindo com os olhos amarados, mas o povo não se comoveu com as
suas palavras, com as suas lágrimas e tê-la-ia pisado se um homem mais caridoso
não a houvesse levantado fazendo-a sair.
—
Corações frios! Ainda que ele fosse um assassino, vós devíeis ter pena. Que fez
ele?
Jesus
não levantava os olhos, receoso de encontrar os de Maria, e caminhava
extenuado, esforçando-se; sentia-se-lhe o desejo de apressar a marcha para
acabar aquela agonia, chegar à morte mas depressa.
A
cruz, de rasto, a deixando pela terra um sulco sinuoso e o povo para abreviar o
espetáculo, empurrava-a a rir, ajudando o Mártir.
Mas
as forças abandonaram-no. Parou, ergueu os olhos ao céu; os braços caíram-mo
flácidos ao longo do corpo e, oscilando, tombou de joelhos sobre as pedras
agudas, sem um gemido, e ficou imóvel, com o rosto na terra, a coroa de junco a
arranhar-lhe a fronte.
Foi
nesse momento que o centurião, impaciente, vendo na turba um homem robusto,
conhecido pelo nome do Simão de Cirene, chamou-o intimando-o a levantar a cruz
e auxiliar o condenado. O homem adiantou-se e, com facilidade, executou a
ordem. Ergueu-se Jesus e, como o centurião tirasse pela corda com violência,
Maria, que se debatia na multidão, desmaiou e deixaram-na sobre ervas, como
morta.
Mulheres
cercaram-na e lenta, silenciosa, começou a subida do Gólgota por sobre ossos
brancos dispersos e cardos que repontavam por entre as pedras.
CAPÍTULO
5: A MORTE DE JESUS
Despojado
violentamente dos trajos irrisórios com que o haviam vestido, ficou Jesus
desnudo e, imóvel, cheio de serenidade, o olhar parado, perdido no céu largo e
abrasado. Exposto às vistas ultrajantes da soldadesca desabrida, que o cercava,
e do povo amotinado e ansioso pelo espetáculo da morte, ali esteve sofrendo
todas as afrontas todos os vilipêndios, sujeito aos comentários mais soezes da
gentalha que ria da extrema magreza do seu corpo maculado de equimoses e
seviciado pelos flagelos.
Moços
lânguidos, alongando os braços nus nos quais tiniam luzentes armilas de ouro e
de marfim, caminhavam vagarosos, soerguendo as túnicas para evitar a urze ou
para que lhes vissem os coturnos os recamados de pérolas.
Mulheres
cochichavam. Ao aroma do nardo misturavam-se o fortum de suor e o cheiro
agreste e do suarda que tresandavam os grosseiros pastores e os tintureiros
cujas mãos pareciam erduvadas em púrpura ou em azul.
Crianças
imundas jogaram pedrinhas, amatilhadas nos vãos das rochas e velhos
maltrapilhos, arrepanhando os sórdidos farrapos, ganiam estendendo as mãos
engelhadas ou mostrando chagas em sangue em torno das quais as moscas
assanhavam-se.
Era
como uma feira alegre e rumorosa o lúgubre planalto. Luziam ao sol os capacetes
dos legionários; as lanças, encostadas nas rochas, em feixes, faiscavam como se
um lume lhes ardesse no ferro, e, de quando em quando, roufenha, a buzina
ressoava.
Já
os dois ladrões estorciam-se nos seus cruzeiros. Um deles, enfurecido, com a
espuma a ferver-lhe aos cantos da boca, contraída em rictus, injuriava o povo,
bradava insultos em voz rouca e arquejada; o outro, resinado, meneava a cabeça
e via-se-lhe crescer o peito, encher-se-lhe o ventre na ânsia da respiração
angustiada. Lágrimas lentas desciam-lhe ao longo da face, abrindo dois laivos
na poeira que a avermelhava. Em volta, a turba, contida pelos legionários,
resmungava, protestando contra a, aspereza do centurião inflexível que não
permitia a passagem além do limite traçado por uma corda de linho. Alguns, mais
atrevidos, investiam, agarravam a corda sacudindo-a, mas legionários corriam
apontando as lanças ou brandindo gládios e era uma debandada confusa, um
atropelo de recuo e atroavam gritos. Alguns rolavam espezinhados e ficavam
escabujando, guaiando na poeira.
Jesus
não fazia o mais leve movimento. Do instante a instante um frêmito crispava-lhe
a face lívida, as pálpebras batiam em palpitações repetidas e a boca
descerrava-se-lhe. Mas a sua atitude mantinha-se como a de uma estátua, impassível no meio daquela turba borborinhante, que
grasnava, vociferava e ria fervilhando no monte como abutres em carniça.
Nuvens
negras subiam pesadamente, acastelavam-se no céu, como outeiros que se
houvessem levantado nos ares e lá fossem, com as suas corcovas escuras,
construindo cordilheiras no espaço. O ar era denso, empoeirado.
Corvos
passavam em voo rápido ou baixavam cangados e, de asas abertas, ficavam
pousados nas arestas das penhas, olhando as cruzes, com curiosidade humana.
Um
homem escuro, quase negro, de grenha crespa, com um saião remendado, as pernas
escalavradas, passou por baixo da corda que limitava o âmbito da justiça e, silenciosamente,
desenrolando um avental de couro, despejou sobre o pedregulho uma grossa
ferragem. Agachando-se, então, pôs-se a escolher cravos, experimentando-lhes a
ponta na palma da mão calosa e, tomando três dos mais agudos, adiantou-se de
vagar, de olhos fitos no rabino.
Então
um legionário moço desligou os pulsos vincados do mártir e, impondo-lhe as mãos
brutas ao peito macilento, ripado pela ossatura saliente, levou-o, aos
safanões, até o cruzeiro que jazia, em terra, com a base chegada a uma cova, e,
com um empurrão, derrubou-o nas pedras, porque era todo um rebo áspero de
cascalho o ponto da montanha, onde se realizavam os suplícios.
Dois
legionários, alagados em suor, com os capacetes atirados para as costas,
arrastaram o nazareno, deitaram-no a fio sobre a cruz e o homem escuro,
cavalgando-o, tomou-lhe um dos braços, esticou-o, espalmou-lhe a mão e, impondo
um cravo, bateu-o. O sangue espirrou em esguicho, correu em jorro, empastou-se em
coagulo.
Saltando
ágil sobre o tronco do condenado impassível estivou-lhe o outro braço e, de
novo, o martelo troou em pancadas que os ecos redobravam. Repuxou os braços pregados,
mirou-os e, dum salto, passou à base do cruzeiro, juntou os pés de Jesus e,
fincando o cravo, martelou com furor, a mãos ambas, arfando.
Um
tremor percorreu todo o corpo do paciente, a boca abriu-se-lhe lentamente, como
em bocejo, cerraram-se-lhe os olhos e mais lívido se lhe tornou o rosto
marejado de suor.
Já
dois soldados passavam uma corda no alto da cruz. Houve um brado e os
legionários, curvando-se, com as pontas da corda pelos ombros, avançaram
tirando esforçadamente o madeiro que outros empurravam e lá se foi erguendo o
poste, escarvando a borda da cova; súbito, um resvalo, afundou na terra e ficou
de pé, oscilando.
Logo
o homem que pregara os cravos meteu as cunhas, acumulou pedrouços reforçando o
amparo e o sangue da vítima pingava em gotas lentas. Dois mastros, rubros como
arrecadas de coral, penderam dos braços, um fio sinuoso escorreu dos pés e a
multidão irrompeu em grita vendo o rabino sacrificado, com uma tanga de linho
grosso em torno dos rins, os cabelos escorridos, empastando-se-lhe na fronte
laivada pelos espinhos da coroa de junco.
Então
os soldados, dando por concluído o fúnebre serviço, lentamente afastaram-se
buscando sombras. Uns, despindo a couraça, pendurando os capacetes,
estenderam-se sobre os mantos; outros, em círculo, puseram-se a jogar,
chalrando. Acharam a túnica de Jesus. Um deles abriu-a, examinou-a e
mostrando-a, a rir, propôs um preço. “Será de quem a ganhar ao jogo!” bradaram.
E foi um tumulto, uma alegre algazarra.
Entre
o povo vozes apregoavam refrescos e bolos. Uma mulher ia e vinha oferecendo
figos em voz larmirienta.
Nesse
momento o ladrão, que não cessava de resmungar, voltando a cabeça, disse em tom
atrevido:
“Se
és o Cristo, livra-te e a nós...” O outro, porém, repreendeu-o:
—
Nem te comoves do sofrimento, cuja dor conheces. Tu e eu fizemos por ele, mas
que fez este justo por merecê-lo? E, docemente, inclinando-se para Jesus,
implorou:
—
Senhor, lembrai-vos de mim quando vos virdes no céu.
E
o mártir respondeu docemente:
—
Em verdade te afirmo que hoje ser às comigo no paraíso.
Duas
mulheres saíram da multidão e; seguidas por um mancebo louro, chegaram-se
vagarosamente à cruz.
A
mais moça era linda, alta e branca, loura, de olhos muito azuis e amparava a
mais idosa, que era Maria.
Ao
verem-nas, os da turba logo sussurraram:
—
É a de Magdala. A que vivia perto da fortaleza e tinha escravas negras e
auletridas vindas das ilhas gregas. E citavam-se nomes de saduceus abastados,
de romanos perdulários que a procuravam e que, por ela, se haviam perdido.
—
Dizem que se desfez de tudo, até do seu patrimônio, cedendo aos pobres o último
óbolo.
—
Enamorou-se do nazareno. Ouvia-o chorando, seguia-o descalça e, quando ele
parava, estendia-se-lhe aos pés, e sorrindo, com toda alma nos olhos, ficava-se
a contemplá-lo. Lavou-lhe, certa vez, os pés com essência de nardo, enxugou-os
com os próprios cabelos. Riram.
E
as duas mulheres pararam defronte do cruzeiro. A de Magdala chorava. Maria mal
se sustinha; vergava, cambaleava nos braços do louro inancebo, que era João, o
apóstolo mais moço. Olhava, estendia os braços e dos lábios secos não lhe saía
palavra. Então, o meigo discípulo sentou-a aos pés da cruz e ali ficou a
Dolorosa imóvel, de olhos muito abertos, estremecendo, sem um gemido, sem uma
lágrima.
Da
turba partiam chufas — eram fariseus que intimavam o Cristo a realizar um
milagre. Martirizavam-no com os próprios benefícios que ele fizera,
atiravam-lho em rosto, à maneira de injúrias, as suas próprias misericórdias.
—
Não deste vista aos cegos? Não fizeste andar os paralíticos? Não ressuscitaste
os mortos? Tira-te daí. Chama os teus anjos.
Outros
protestavam furiosos contra a legenda que encimava o cruzeiro, na qual Jesus
era inculcado como Rei dos Judeus.
Servos
do Templo faziam pelotas de barro e atiravam-nas à cruz. De repente, com um
rangido, o corpo do mártir estorceu-se e palavras saíram-lhe da boca:
—
Mulher, eis aí o teu filho...
Falava
de João à Maria e, como o discípulo o encarasse, disse-lhe:
—
Eis aí a tua mãe. E calou-se.
Não
teve Maria coragem de levantar os olhos — quedou encolhida, tremendo como em
frio intenso. A grita do povo não a tirava da imobilidade trágica, toda ela
entregara-se ao sofrimento, só atendendo às oscilações do cruzeiro no qual se
encostara.
As
nuvens cresciam no céu tenebrosas, encobrindo o sol; rolavam trovões à distância, asas estalavam no ar pesado e o calor tornava-se
insuportável. Foi então que, enfraquecidamente, o Cristo murmurou com um
estremeção violento:
—
Meu Deus! Meu Deus! por que me desamparais!?
Andavam
os soldados em volta da cruz cantarolando, e como outras mulheres se
aproximassem, entraram a chasqueá-las. Ofereciam-lhes posca, acenavam-lhes com
punhados de tâmaras ou pediam-lhes notícia do famoso profeta que reviçava os campos secos e restituía
a vista aos cegos, sarava os leprosos das ruínas, defendia os pequeninos.
Pouca
gente estava nas imediações. Temendo a tempestade, que se armava, a maioria
descera em alegre arranchada cantando, bailando por entre a urze e os cardos
dos caminhos pedrentos.
Foi
em meio do silêncio que a voz de Jesus
soou quase extinta:
—
Tenho sede.
Maria
ergueu-se de ímpeto, mas faltaram-lhe as forças; oscilou, foi de encontro ao
cruzeiro. Ampararam-na. Estendeu os braços ao Filho e ficou como de pedra, a
olhá-lo.
Um
homem acudiu com uma cana em cuja ponta havia uma esponja encharcada em vinho.
Provou-a o nazareno, mas repelindo-a, disse, inclinando a cabeça:
—
Tudo está consumado!
Um
estremecimento sacudiu-o todo, fazendo com que se lhe abrissem mais as feridas
e o sangue corresse copioso. Subia-lhe o peito em haustos, a cabeça debatia-se
e, rolando os olhos, escancarando a boca em desmedido hiato, sorveu com ânsia o
ar e depois exclamou:
—
Pai, em vossas mãos encomendo o meu espírito!
Ainda
um instante moveu-se. Mas amoleceram-se-lhe flacidamente os braços e a cabeça,
como abandonada, tombou-lhe pesada ao peito.
Com
estrepito convulso a terra em torno abalou-se, o monte fendeu-se em brecha
profundíssima, coriscos zebraram o fundo caliginoso do céu e uma noite súbita
baixou.
Os
soldados recuaram cheios de assombro. Alguns, atirados longe, não tiveram ânimo
de erguer-se e ficaram a murmurar estarrecidos.
O
próprio centurião, imobilizado, não teve palavra para animar a sua gente.
Só
Maria, petrificada no sofrimento, não sentira a terra tremer, não dera pela
treva súbita, não vira faiscarem os raios: inerte, olhos imensos, não se
tirava, da atitude de êxtase doloroso.
A
Madalena lançou-lhe os braços ao pescoço, atraiu-a a seu colo, beijando-a,
chamando-a. A triste Mãe não despertava, ainda que os lábios lhe tremessem e os
olhos, cada vez mais brilhantes, acusasse, o ardor intensíssimo da febre que a
consumia.
Quis
o discípulo chamá-la à vida com o martírio como quem procura despertar um
epilético torturando-o, e anunciou-lhe a morte de Jesus.
A
mísera não deu mostras de ouvi-lo: Ali estava, era a dor calada, a dor suprema,
a dor emparedada no coração, que se não expande e concentra-se a mais e mais.
Era a paralisia d'alma, o arroubo doloroso, o surto de agonia.
Não
tinha lágrimas: era como uma fonte estancada cujo leito estala e brilha ao sol.
Imóvel,
toda ela era tortura — como uma casa fechada dentro da qual se cometessem
atrocidades. No exterior era a gélida indiferença, quem se inclinasse ao seu
peito ouviria, o desconcertado pulsar do coração lutando com a agonia.
E
os olhos parados, tão abertos, que viam em fito? viam o Passado, todo o suave
tempo, os lugares em que Ele vivera.
Via-o
pequenino nas palhas de Belém; via-o em Matarieh, a sombra dos sicômoros; via-o
em Nazaré entre as figueiras; via-o em Jerusalém, no Templo. Depois... Oh! as
saudades, as longas esperas, as apreensões, o medo...
Ele,
perdido e só dele a fama dos milagres, das misericórdias, das bênçãos.
Onde
ela passava e via um vinhal viçoso, logo lhe diziam: “Era uma velha cepa. Jesus
tocou-a e logo empampanou-se e encheu-se de racimos”. Homens que encontrava
pelos caminhos, lavando as chagas na água escassa dos córregos, pediam-lhe notícias de Jesus; cegos "bradavam o seu nome; paralíticos
arrastavam-se ao seu encontro; criancinhas reclamavam-no e a sua bondade
infinita era aclamada por todos, gentes de todas as terras procuravam o seu
rastro "bradando o sou nome e ele parava, atendia a todos, sorrindo. E ali
estava...
Quis
levantar-se, vê-lo... e tombou nos braços das mulheres como ferida de morte.
CAPÍTULO
6: JESUS GOLPEADO PELA LANÇA E DESCIDO
DA CRUZ
Toda
a cidade alvoroçou-se com os fenômenos que se deram no instante em que expirou
Jesus e mais com as notícias que
chegavam de vários pontos, principalmente das imediações do Gólgota, trazidas
por zagais e lavradores.
Nas
ruas, nas praças, refervia o povo, que abandonara as casas, em açodado tumulto,
com receio de ficar sob as minas se a terra outra vez tremesse.
E
formavam-se grupos em torno dos que chegavam espantados, narrando prodígios.
Aqui,
era um servo do Templo e referia que, estando a lavar as lajes, sentira-se, de
súbito, envolto em trevas; tora depois um clarão como de muitos sóis e estrondo
de sem que alguém nele estivesse, rasgar-se, de alto a baixo, o véu do
santuário.
Ficara
um momento sem poder tirar-se da posição em que caíra, logo, porém, que
conseguira levantar-se, com todo o sangue gelado, deitara a correr anunciando o
que vira. Os sacerdotes lá foram e todos pasmaram em silêncio sem achar explicação para o caso estranho.
Um
pegureiro, ainda trêmulo, voltando-se, atônito, para o lado do monte, dizia:
—
Ali embaixo, entre penhas, andavam soltas as minhas cabras. Tenho ali o
corveiro e o colmado em que durmo. Nunca houve em tal sítio caso algum que mo
fizesse temer. Cantava cosendo as ervas do meu jantar quando, subitamente,
densas trevas cercaram-me: senti-me como em sepulcro e logo, acendendo-se uma
claridade, todos os rochedos estalaram com estampido, abriu-se a terra em
brechas e as minhas cabras, ai de mim!, abismaram-se em precipícios profundos.
Entre
todos, porém, o caso que mais aturdiu e espantou foi o de uma mulher, que tão
depressa abalara do campo que lá deixara toda a sua fortuna, que eram alguns meaks e o seu gigo de uvas colhidas com
desvelo na sua vinha, que secara.
E
disse a miséria:
—
Vinha eu devagar, cantando, quando o céu escureceu e lampejaram relâmpagos e
rebentaram trovões. Achei-me entre brancos sepulcros. Atordoada, encosto-me a
um deles e eis que a pedra por si mesma se afasta docemente, e silenciosa como
as névoas passam à flor dos outeiros nas manhãs de inverno, e um morto, que ali
jazia, sobe do fundo da terra, envolve-se na mortalha e, sem que os pés toquem
o solo, parte, desaparece entre as árvores. Outros túmulos lançam de si os seus hóspedes e eu
os vejo a todos, a alguns reconheço. Vão-se, somem-se; e o ar embaisama-se com
o cheiro das essências e eu fico tombada, transida de medo, entre os sepulcros
vazios, sentindo a terra tremer e as lajes arrastarem-se surdamente, devagar.
Todas
as vinhas ficaram esturricadas e as figueiras morreram. Fontes que nunca
negaram água estão secas. Que terá havido? Ai de nós!, pobrezinhos!... e, como
as nuvens se acastelassem em rolos negros, crescia o pavor do povo. Aves
cruzavam-se nos ares com gritos trágicos... A gente dos campos entrava, a
cidade espavorida referindo o que vira e, como do uma casa saísse um velho, que
todos sabiam entrevado, e corresse, com as grandes barbas ao vento, parando, de
instante a instante, para apalpar as pernas que se lhe haviam destravado,
conduzindo-o com ligeireza fácil, o povo precipitou-se empós ele, chamando-o,
bradando-lhe o nome. E o velho lançava os magros braços acenando para o céu
turvo e corria, sem mostrar fadiga, gozando a delícia daquela liberdade.
No
próprio palácio do governador era desusado o movimento — roldas de legionários
passavam em marcha acelerada, soavam buzinas. A cidade estava toda em alvoroço.
Os
mercadores, abandonando as lojas, saldam a notícias metendo-se nos grupos, confundindo as suas túnicas
com as peles sórdidas dos pastores airados, que não se atreviam a voltar ao
campo e acolhiam-se, com medo, aos pátios, metiam-se nas alfurjas, murmurando
preces, beijando devotamente os seus amuletos.
Dois
homens, com ordens de Pilatos, levando aos ombros pesadas barras de ferro,
chegando ao Gólgota, procuraram o centurião e, depois de ligeiras palavras,
trocadas em voz baixa, encaminharam-se para o lugar em que avultavam as cruzes
e, descansando as barras, ficaram, um momento, a olhar os pacientes.
Os
ladrões ainda viviam. Um deles, o que desafiara Jesus a fazer um milagre,
debatia-se contorcendo-se em grande desespero, como procurando arrancar-se do
poste. A barba, negra e dura, crescia-lhe no rosto como um sarçal em barranca,
os cabelos empastavam-se-lhe na fronte, os olhos chispavam, queimavam.
O
outro, a boca aberta, os olhos lânguidos, amortecidos sob as pendidas
pálpebras, arquejava com ânsia e, de instante a instante, um gemido
escapava-se-lhe do peito vincado pelas costelas. Um dos homens adiantou-se e,
sorrindo sinistramente, falou ao ladrão mais robusto:
—
Éh! lá, amigo. Sempre é melhor a vida livre na estrada que os mercadores frequentam.
Tinhas o teu fojo e afiavas a faca no lombo das pedras. À noite, mal ouvias
vozes ou tropel de animais, sabias com os do teu bando e, de um salto, estavas
sobre a vítima que marcaras. Que te importava o sangue? O golpe era certeiro e
o saque pagava o trabalho e a vigília. Eras homem de ação e deves sentir essa
imobilidade. Para um rapaz como tu, convenho que a posição não é lá das mais
cômodas. Vamos acabar com isto.
O
ladrão lançou-lhe um olhar faiscante de ódio e, vendo-lhe a barra em punho,
teve um arrepio, tentando instintivamente encolher as pernas.
Já
ressoavam pancadas surdas cortadas por gemidos — era na cruz de Dimas, o bom
ladrão, primeira vítima do crurifragium.
O
carrasco que falara, como para alongar a agonia do criminoso que lhe coubera e
que continuava a ameaçar, a injuriar, sentou-se numa pedra, com a barra deitada
sobre os joelhos. E zombava com um risinho cruel:
—
Encolhes as pernas? Se é para as fazer menores não te dê isso cuidado, deixa
por minha conta. Em tal serviço não há, mesmo em Roma, quem se possa medir
comigo... Garanto-te que hás de ficar satisfeito.
Os
assistentes, que se ajuntavam além do limite traçado pelo centurião, riam das
zombarias do carrasco. E ele levantou-se, tomou a barra a mãos ambas, meneou-a.
O
ladrão soltou um urro feroz e sacudiu-se com tal violência que a cruz ficou
longo tempo oscilando.
Outro
golpe e as pernas dobraram-se, o corpo escorregou sem apoio, ficando apenas
mantido pelos braços retesos.
O
sangue escorria grosso, denegrido, empoçando-se na terra e os ossos apareciam
em estilhas através da carne triturada.
Soldados,
curiosos do espetáculo, agruparam-se diante da Cruz. Como o ladrão continuasse
a rugir, debatendo-se nos estrebuchos da agonia, o carrasco amiudou os golpes,
macerando-lhe as pernas retalhadas, e a barra, de espaço a espaço, batia surdamente
nas carnes esmagadas fazendo saltar esquírolas.
Por
fim, cerrando os olhos, conservando a boca escancelada e retorcida, o
desgraçado expirou.
Dimas
pouco havia resistido.
Os
dois carrascos, limpando o suor da fronte, já se dirigiam para a cruz de Cristo
quando viram, imóvel, os olhos estanques, as mãos abandonadas ao colo, Maria
sentada junto ao madeiro.
—
Quem é? perguntou um deles.
—
É a mãe do rabi, disse o centurião, de nome Longuinhos.
—
É preciso arredá-la.
—
Que ides fazer? Não vedes que está morto? E, para provar o que afirmava,
levantando a lança abriu uma ferida no flanco de Jesus. Dela escorrendo sangue
e água, uma gota foi, maravilhosamente, aos olhos do soldado que logo se rojou
em terra cheio de arrependimento, chorando, convertido pelo remorso, adorando
aquele cadáver em que residira o espírito divino.
Maria
estava insensível—nem as suas roxas pálpebras batiam. Julgando-a morta, Madalena
ajoelhou-se-lhe aos pés, chamou-a. A Virgem não fez o mais leve movimento — mas
o coração batia.
Ó mísero coração! Todas as forças da infeliz
estavam nele concentradas, em torno da mágoa. Toda a vida refugiara-se naquele
santuário do sofrimento: os soluços, as lágrimas, as deprecações, tudo lá
estava, não havia passagem para o menor alívio.
Os
que choram dispersam tormentos, os soluços arejam o coração. Maria tinha a dor
trancada e ali estava aparentemente insensível.
Era
a superfície enganadora, a parede de um cárcere dentro do qual o carrasco,
lentamente, abafando todos os gritos, supliciasse a vítima.
Nem
quando José e Nicodemos retiraram o cadáver da cruz a infeliz pôde soltar as
lágrimas: olhava imóvel e muda. E vagarosa, amparada por Madalena e João,
desceu a montanha seguindo o corpo amado, tão impassível, de olhos tão enxutos
que só os que a levavam sabiam que ia ali a dor, a imensa, a inenarrável dor,
tão grande que não cabia em queixas, em lágrimas, em soluços.
CAPÍTULO 6: JESUS ENCERRADO NO SEPULCRO
Era
num horto, entre rosais.
O silêncio e a amenidade tornavam-no o ponto favorito dos
pássaros que por ele andavam esvoaçando de ramo em ramo ou pelo saibro, nos
relvedos, à beira do rego por onde sempre discorria um fio d'água.
Sicômoros
robustos alargavam sombras repousadas e, contrastando com a beleza e com a
fartura do sítio, uma rocha, escalvada e negra, toda cercada de cardos,
avultava monstruosa e melancólica. No flanco fora cavado um jazigo, que
pertencia a José de Arimateia. Ali fora deposto o cadáver do Mártir.
O
perfume das essências funerais embalsamava o ambiente: aroma triste, de morte,
que comovia.
Caiados,
os discípulos, que haviam acompanhado o corpo àquele repouso, rodeavam a rocha,
encostados aos troncos ou diante do sepulcro, ajoelhados, chorando.
A
noite descia calma e estrelada. Cantavam cigarras e longe, como a Páscoa estava
próxima, estrugiam vozes festivas, ressoavam címbalos.
Maria,
sempre amparada pela Madalena, quedara contemplativa ante o bruto rochedo. As
lágrimas rebentavam-lhe dos olhos, os lábios entreabriam-se-lhe deixando passar
suspiros.
De
repente, tocando a pedra, apalpando-a, murmurou:
—
Tão fria!
—
Que sentis, Senhora? perguntou João adiantando-se solícito.
E
ela, de novo, murmurou:
—
Tão fria! E dizer que é tudo quanto me resta! Toda a minha fortuna aqui jaz.
Eu
era tão venturosa que meus passos felizes abençoavam a terra; a minha alegria
era uma claridade que alumiava. Nunca invejei! Que podia eu desejar mais neste
mundo se o tinha, a Ele, meu Filho? Contemplando-o, recordava todo o passado e
era sobre a sua cabeça que meus olhos viam o futuro. Meu horizonte!
Quando
o via vir pelos caminhos claros, dobrado de fadiga, o meu coração ficava tão
contente como ficam as flores, depois de um dia de sol, quando o ar refresca
anunciando o orvalho.
A
sua voz era a música que embalava minh'alma e chamar-lhe Filho era para mim
felicidade tamanha que, ainda na sua ausência, esse nome era o brinquedo dos
meus lábios. Ai! de mim... A minha vida encravou-se na pedra!
E
eu hei de andar sozinha, e hei de ouvir a outras mães aquilo que me não é dado
dizer. Filho! Filho! Filho!
Este
nome devia desaparecer da terra; para mim não existe, é uma palavra que findou,
uma alegria que se extinguiu. Não sairei, ninguém mais me verá.
Aqui
fico, eu e a Morte, minha companheira. E que fez Ele? Foi bom, amou, quis ser
generoso e aqui está para o sempre.
A
Madalena inclinou-se-lhe ao ombro segredando-lhe uma consolação:
—
Ressurgir, dizes. Há de ressurgir... E eu? Cuidas que terei tanta força que
espere três dias, que passe todo esse tempo sem vê-lo, sem ouvi-lo? Ainda que
ele volte, ai de mim! não mais encontrará vivo o coração que o amou. Sinto que
me desfaço em lágrimas. E tudo, em volta de mim, rejubila: os pássaros cantam,
os ramos agitam-se e brilham estrelas no céu. Pois é possível que não saibam que
morreu meu Filho? É possível? Nos dias tristes toda a terra entristece e por que
há de a natureza ser indiferente à tristeza de uma alma?
Rocha,
agora és tu que o trazes, Ele jaz no teu seio, é teu Filho. Ai! de mim.
A
Madalena, posto que se conservasse ao lado da Dolorosa, mal ouvia as palavras
que lhe saíam dos lábios. Não eram vozes, senão um sussurro tirado pela dor
como o murmulho das folhas à passagem do vento.
João,
lembrando-se das últimas recomendações do Mestre, tentou serenar o coração de Maria:
—
Aquietai-vos, Senhora. Sois Mãe, é certo, e, por isso mesmo, mais do que todos
deveis confiar na sua palavra. Ele veio à terra conhecer a agonia humana,
despiu-se da grandeza, divina e vestiu-se de sofrimentos.
De
vós nasceu e chorou ao entrar na vida, sendo recebido pelo frio.
Crescera
na pobreza, fez-se homem entre os simples.
Trilhou
as estradas mais ásperas ao sol e à chuva; visitou enfermos, ouviu oprimidos,
verificou injustiças, conheceu a fome e a sede, a dor das enfermidades e o peso
das ingratidões.
Fez
o milagre o foi apalpado; distribuiu o pão e deram-lhe o fel; ressuscitou os
mortos e acabou em uma cruz. Sorve, até a última gota, o cálice amargo e, a
esta hora, já está no céu pedindo a seu Pai a misericórdia para os homens.
O
que agora lamentais não é o sofrimento, porque esse findou para Jesus;
lamentais a vossa solidão.
Mas
os justos não morrem, porque deixam na terra o benefício que os eterniza.
É
noite, não há sinal de sol no céu, mas escutai o crepitar do alfobre: são as
sementes que rebentam, porque o sol aqueceu-as e fecundou-as. Virão árvores de sombra e fruto.
Ele
aqui jaz sepultado no seio da pedra. Ide, porém, por todas as estradas e
vê-lo-eis vivo o eterno. Ele é a esmola, Ele é a cura, Ele é a consolação, Ele
é a prece.
A
malga que o lavrador entrega ao mendigo faminto, foi Jesus que a encheu. O
homem que espreme o bálsamo na chaga do ferido foi guiado por vosso Filho. A
mulher que se precipita para serenar o coração da viúva, ouve-lhe a voz
celestial e cumpre a sua ordem e a criança que se ajoelha, junta as mãos e ora,
eterniza na prece a grande Fé que há de consolar as almas.
O
que aí jaz pertence à terra, é o corpo. Não o choreis — levantai os olhos para
o céu, lançai-o sobre o inundo aflito e vereis que o vosso Filho vive.
—
Oh! palavras que soam. Fazes comigo o que fazem as mais com os pequeninos:
queres que eu adormeça e cantas, Deus! E tinha eu força para trazer um Deus?...
Sim, dizes bem...
Deus!
Só um Deus podia sofrer tanto e sem queixa, como Ele sofreu. Mas, ai de mim!
sou mulher, sou humana e as dores são muitas para a minha fragilidade.
Sabes
que é um coração de mãe? Eu mesma não sei como resisto a tamanha agonia.
A
dor sustenta. Olho para todos os lados e vejo tudo deserto. O rumor que ouço é
como o atroo de uma caverna. Estou no vazio, na solidão.
Antigamente
— ainda ontem! — mal anoitecia, eu ficava a esperá-lo. Se o vento sacudia a
porta, logo me precipitava. Quantas noites passei em vigília vendo, em vez
dele, entrar o sol da manhã.
Sabia-o
longe e, quando me vinham referir os seus milagres, eu chorava, invejando o
enfermo que fora tocado pelas suas mãos, o morto que se levantara ao som da sua
voz, o rochedo estéril que rebentara em fonte a seu mandado.
Ele
andava a maravilhar as gentes e eu, ai de mim! tão só, tão triste, sem, ao
menos, poder vê-lo, ouvi-lo, porque Ele trocava o meu amor pela Humanidade e
deixava os meus beijos sem pouso como avesitas perdidas nos mares largos que,
exaustas de voar, caem e perecem na vaga. E agora!... É Deus, dizeis vós... E
eu sou mãe. Ai! de mim.
Disse
e, enlanguescendo, tombou como morta nos braços de Madalena.
A
noite cintilava estrelada e aves cantavam, ao luar, no horto que recendia.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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