6/30/2019

As noites do asceta (Conto), de Alberto Pimentel



As noites do asceta
(A Jacinto Maria Rodrigues
Oh, que viesse o que não crê, comigo,
À vecejante Arrábida, de noite,
E se assentasse aqui sobre estas fragas,
Escutando o sussurro incerto e triste
Das movediças ramas, que povoa
De saudade e amor noturna brisa;
Que visse a lua, o espaço opresso de astros,
E ouvisse o mar soando: — Ele chorara
Qual eu chorei...
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Alexandre Herculano — A Harpa do Crente.
 "Ajuntava a esta abstinência (Frei Agostinho da Cruz) as muitas vigílias, ásperas disciplinas, em que se exercitava, e outras mortificações, que ele depositou no arquivo do silêncio, e só nos deixou as inferências, de que eram muito esquisitas."
Frei Antônio da Piedade — Espelho de penitentes e crônica da Província de Santa Maria da Arrábida. Tomo I, part. I, liv. V.
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Eram aqueles os tempos do Amor.
Por toda a parte o coração era a mais fecunda, a mais vívida, a mais completa manifestação da Vida. A humanidade entrara no idílico período da sua primavera. As flores do sentimento brotavam cândidas e perfumadas sob os pés da Mulher deificada pela adoração. Deus estava no céu e a Mulher na terra. A mesma religião absorvia e confundia estas duas grandes individualidades misteriosas, porque Deus fora gerado no ventre da Mulher virgem. Pois que o amor divino se librava puro, austero, imaculado, o amor terreno procurava igualá-lo pela candura das suas intenções. O século XIV, um dos mais famosos séculos do grande ciclo amoroso, vê um rei de Inglaterra curvar-se para levantar a fina liga de seda da condessa de Salisbury, e ouve a legendaria imprecação do rei aos maliciosos cortesãos cujo riso envenenava esse extremo de galanteria palaciana. E é dessa pequena fita, acolchetada por esmaltadas fivelas de ouro, que o rei namorado quer fazer o mais ambicionado, o mais nobre, o mais difícil galardão cavalheiresco: — a jarreteira azul. O mesmo século vê um rei português realizar à beira do Mondego o mais ardente e lacrimoso idílio da tradição amorosa nacional, e, para diluir as sombras com que os validos de Afonso IV quiseram enegrecer o que nesse grande amor havia de pureza, mandar rasgar-lhes o peito e lavar a crudelíssima afronta no sangue deles. A loira Inês aparece depois de morta menos princesa que mártir. Os seus funerais são uma apoteose; a memória que de si deixa completa a deificação. D. Pedro quer que desde Coimbra a Alcobaça passe o ataúde por entre duas filas de círios, duas fitas de estrelas — como diz Schœfer — ; no túmulo de Inês avultam entre os fantasiosos ornatos as asas que denunciam os querubins. O Amor faz de Inês um anjo, e é ainda pelo anjo, que voou, que a pequena fonte da margem do Mondego chora lágrimas de casta saudade.
Petrarca não pode esquecer neste poético século do Amor. Ele representa o mais puro, o mais santo, o mais ideal amor que é dado conceber-se: o amor sem esperança. Ele renega as tendências voluptuosas da Roma clássica, em que foi educado, e lança-se na solidão de Valquiúsa, sem amaldiçoar Laura, quando o amor lhe dilacera o peito, como o açor pode dilacerar a pomba que empolgou.
Ilumina-se fantasiosamente o século décimo quinto com o renascimento das artes e das letras.É o século de Lourenço de Medicis — o Magnífico — , o grande século em que tudo traduz o Amor: o mármore, a tinta, a linha. Leonardo de Vinci lança na tela a encantadora figura da Gioconda, a esposa adorada; Rafael dá à Virgem a formosura da florista de Florença, a fioraia, divinizando a Mulher. E ainda a Religião a companheira dileta do Amor. São os papas que protegem as artes. Roma, a capital do mundo católico, também o é do mundo artístico. São religiosos os assuntos de todos os quadros, que se pedem do meio-dia e do Ocidente. Somente a Renascença torna a alma menos pura e o corpo mais formoso. Desaparecem das telas as pálidas figuras ascéticas, e relevam sobre o peito feminino as curvas voluptuosas das mulheres pagãs. Madalena transforma-se em Vênus. Ainda um prodígio do Amor! É que o artista amante quer perpetuar na tela a mulher amada. A madona deixa ver a fioraia.
O Bernardim das Saudades é a ponte amorosa lançada entre o século XV e o século XVI. Vós, cavaleiros gentis, para quem o Amor é uma tradição gloriosa, atravessai de um século para outro por sobre o cadáver deste pobre trovador, que deixou partido o bandolim sobre os tapetes da corte.
O século XVI é o século de Camões. Basta dizer isto. Na alma do poeta pulsam as tendências do século. O Amor anda na epopeia a par da Glória. As lutas do coração dão maior relevo aos poetas dessa idade. A gruta de Macau ouve os suspiros de Camões; Diogo Bernardes chora à beira do Lima a traição de Sílvia; Agostinho da Cruz foge do paço do infante D. Duarte para o eremitério da serra da Arrábida.
Mas em Portugal as sinistras fogueiras dos autos de fé, mandadas acender por D. João III, haviam empalidecido nas telas as figuras pagãs da Renascença. Então, se o Amor pintasse na corte portuguesa, usaria as sombrias tintas da escola de Ômbria. Dir-se-ia que Fra Angélico ressuscitara para suceder a Rafael.
Frei Agostinho da Cruz é o Fra Angélico da poesia portuguesa. Um ia cobrindo de melancólicos frescos os muros do seu convento de Fiesole; o outro, entalhava nas árvores da Arrábida os seus versos religiosamente tristes e amorosos. Em ambos um coração de artista amortalhado no hábito. Ambos abençoados por Deus na hora do passamento.
Assim, porém, como por sobre o cadáver de Bernardim, envolto na sua capa de trovador, atravessa do século XV para o século XVI a tradição amorosa, assim também o cadáver de Frei Agostinho da Cruz, envolto no seu habito de franciscano, é a ponte lançada entre o século XVI e o século XVII, entre as caladas grutas da Arrábida, onde Agostinho poetava, e a cela do convento da Conceição de Beja, onde Mariana Alcoforado recebia o Sr. de Chamilly; entre o paço do infante D. Duarte, onde os monges arrábidos iam praticar sobre a conversão de Frei Jacome Peregrino, devida a uma simples visita que fizera à santa montanha barbarica, e a corte de Luís XIV, onde o Amor não havia perdido ainda a sua velha influência de três séculos, mas decotava as suas impurezas com a mesma tesoira dourada com que a La Valliére, a Montespan, a Fontanges e a Maintenon decotavam os seus vestidos.
Iam a desfolhar as últimas florescências da Primavera do coração, crestadas pelo bafo ardente da sensualidade palaciana. Começavam a amadurecer os pomos do Outono.
À flor, na sociedade como na natureza, sucedia o fruto. Após os séculos da Guerra, das correrias, das conquistas, das lanças e das cruzadas, tinham vindo os séculos do Amor, das ambições de glória, das grandes proezas namoradas, dos altos feitos poéticos. Era chegado o momento de soar no eterno relógio das gerações a hora dos indeterminados séculos do trabalho e do pensamento, da força moral e da potência intelectual, das conquistas pelo estudo e pela perseverança, do ciclo vencedor e forte, não da dureza do ferro, de que se fabricavam as velhas armaduras, mas da dureza do sílex, de que brotam centelhas.
Sim, meu solitário poeta da montanha da Arrábida, humílimo eremita desses fraguedos benditos, o teu vulto melancólico e pensativo aparece ainda de pé, olhando para o mar sereno e curvo, ao limiar da tua ermida, como encostado à porta de um templozinho invisível onde se rendesse o derradeiro culto ao doce platonismo de Petrarca, onde ao sopé da Cruz houvesse duas mulheres, ambas santas, ambas moças, ambas formosas, chorando uma de saudade, outra de arrependimento, mas ambas por Amor, — Maria e Madalena. Sim, eu aí te vejo a meditar no que foi a tua breve mocidade, ó castíssimo asceta, em quanto os passarinhos da serra te vinham pousar sobre os ombros descarnados, como diz a legenda, e as feras da mata vinham procurar-te à mão, como aos antigos padres do deserto, o teu duro e escasso alimento de solitário.
Sim, eu entrevejo-te nas tuas longas noites silenciosas, na bem-aventurada velhice dos teus sessenta e cinco anos, nos primeiros tempos da tua religiosa solidão, antes que o duque de Aveiro te mandasse edificar a ermidinha que ainda hoje se conserva, escondido ao fundo da tua cabana, por ti mesmo entretecida de ramos, encostado ao breviário, e ao pé dos secos feixes de mato, que te serviam de cama... Por únicas alfaias em toda a choça, as disciplinas e os cilícios. Fora, a noite, a noite tépida e luminosa, esmaltada de estrelas dormentes; e embaixo, ao fundo, o grande mar, a ampla baía, curva como um alfanje, narcotizada pelos eflúvios do luar.
E tu, mudo e recolhido, deixando invadir-te a alma a plácida doçura das estrelas e das águas, escutando — por que não hei de dizê-lo? — os eloquentes silêncios da noite, que desciam à profundeza harmoniosa do teu peito, e mansamente o atravessavam, e de lá voltavam a derramar-se na amplidão luminosa do firmamento, já transformados nestas e outras palavras puras e sonoras como o ouro:
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano de uma banda,
E doutra, já salgadas, as do Tejo:
Aquela saudade, que me manda
Lagrimas derramar em toda a parte,
Que fará nesta saudosa, e branda?
Daqui mais saudoso o sol se parte;
Daqui muito mais claro, mais dourado,
Pelos montes, nascendo se reparte.
Aqui sobe-lo mar dependurado
Um penedo sobre outro me ameaça
Das importunas ondas solapado.
Duvido poder ser que se desfaça
Com água clara, e branda a pedra dura
Com quem assim se beija, assim se abraça.
Mas ouço queixar dentro a lapa escura,
Roídas as entranhas aparecem
Daquela rouca voz, que lá murmura.
Eis por cima da rocha áspera descem
Os troncos meio secos encurvados,
Eis sobem os que neles enverdecem.
Os olhos meus dali dependurados;
Pergunto ó mar, às plantas, os penedos
Como, quando, por quem foram criados?
Respondem-me em segredo mil segredos,
Cujas primeiras letras vou cortando
Nos pés doutros mais verdes arvoredos.
Esta música inefável, que subia para Deus em ondulações maviosas, traziam da tua alma os silêncios da noite: tal as abelhas do Himeto, atravessando a florida espessura do açafrão cheiroso, traziam para o colmeal o alvo mel dos banquetes áticos.
Outras vezes rugia sobre o mar a tormenta, rasgavam-se de instante a instante em listrões de fogo os flutuantes crepes do céu, o ribombar do trovão vinha rolando montanha abaixo em ecos entrecortados, o gigante de pedra, em cujo dorso se entremostrou radiosa de nimbos misteriosos, em remotos tempos, a imagem de Nossa Senhora, ao mercador Haildebrant, cuja embarcação, contrastada dos ventos, dobrara o cabo de Espichel, — o gigante de pedra, minado pelo oceano, cingia contra o seu peito robusto a Cruz da Redenção, e com ela cobria as caladas ermidas dos solitários arrábidos a essa hora prostrados em meditação piedosa...
E tu eras entre todos o que melhor compreendias a linguagem vaga da noite, quer a houvesses de interpretar no poema das estrelas, quer na epopeia da procela, porque no teu claro espírito havia aquela fina sensibilidade que tem ouvidos para os mais sutis rumores, olhos para as mais fugazes visões, e voz para responder às mais incoercíveis revelações...
A noite! a noite!
De noite avoejam errantes pela atmosfera pensamentos vagos e alados, que umas pessoas sabem traduzir, outras apresentem sem compreender. Tem a noite seus insetos e pensamentos peculiares, e uns e outros passam no ar com frêmitos misteriosos. Só o naturalista conhece os primeiros, através da negrura; só o poeta conhece os segundos. E quem não é uma nem outra coisa, filósofo ou poeta, fica amedrontado do rumor que passa adejando, e fantasia espíritos maléficos e criações sobrenaturais no que são apenas manifestações sutis da grande vitalidade noturna. E daqui nasce a visionaria cobardia que pelas horas do silêncio e da quietação salteia o ânimo do comum das pessoas. E como tudo o que há de mais incerto, escuro e insondável é a morte, esses ligeiros frêmitos que passam remoinhando arrastam aereamente o grande, o triste, o fatal pensamento da morte. Quantas pessoas não há aí que vivem despercebidas da mortalidade do corpo os mais trabalhosos, os mais duros, os mais sofridos dias da sua vida? Expostas a perigos temerosos, durante as horas de sol, elas os atravessam fortalecidas pela esperança de que os hão de vencer finalmente. Oh! mas se de noite acontece lembrar-lhes a matéria que são mortais, e que é incerto o momento da aniquilação corporal, aí acodem de tropel os estremecimentos nervosos, os sustos imaginários, os pavores fantásticos. A noite afigura-se-lhes uma sepultura enorme, cheia das côncavas sombras das grandes cavidades, coberta pela bronca abobada das criptas tenebrosas, e sentem-se despenhar, sacudidas por mão invisível e hercúlea, ao vácuo dessa profunda negrura, em cujo fundo está um mistério terrível e insondável — a eternidade!
Cuidam ouvir o baque do próprio corpo, e depois um como estrondoso ranger de enormes ferrolhos em anéis de ferro, como se se estivessem cerrando para todo o sempre as portas que separam o mundo das visualidades terrenas do mundo da eterna realidade.
Portanto, que admiráveis são as almas que, à semelhança da tua, ó pálido eremita! se concentram serenas e firmes diante dos horrores da noite, sondando-a, contemplando-a, lendo-a, adivinhando-a no que ela tem de mais fugitivo e aéreo, por mais ermo que seja o lugar, por mais adiantada que seja a hora, por mais profunda que seja a meditação!
Admirado sejas tu, que estendias os braços ciliciados para abarcares a nuvem colossal da escuridão e do silêncio contra o seio desofegado e plácido, como se lhe quisesses dizer, a essa grande massa feita de trevas e de mistérios: "Tu, que és a eternidade, a morte, o repouso, ouve bem as compassadas palpitações do meu coração tranquilo. Eu estou resignado, e até ansioso de que a tua asa negra me arrebate."
Isto dizia porventura ele, na vasta solidão alpestre da Arrábida, na hora em que, pelas mais populosas cidades, os outros homens, apesar de reunidos como em exércitos, para melhor baterem os fantasmas imaginários da noite, levantavam barreiras de música e de luz, dentro de suas casas, e reuniam em torno de si as seduções femininas, que possuem o segredo de aligeirar as horas, para fazerem rosto à invasão da treva e do silêncio, à onda escura que se derrama pelo ar, pelas ruas, pelas praças, pela vastidão da terra e das águas.
Uma coisa há grandiosa, imponente, por vezes terrível e invencível como a noite: é o Mar.
Tem querido o homem explicar a noite e o mar, descer às profundezas de uma e de outro, estudar as radiações noturnas do firmamento e as brancas e rosadas ramificações dos jardins submarinos; desenvencilhar os rastros de luz que se cruzam sobre a safira celeste e as enormes filigranas de animálculos e plantazinhas que se enredam no fundo das águas marinhas; explicar a vida que palpita sob a nuvem e a vida que palpita sob a onda.
Oh! mas que de mistérios ainda! que de problemas a resolver! que de fatos a demonstrar!
Por isso a noite e o mar serão ainda por muito tempo, e talvez eternamente o sejam, companheiros inseparáveis de superstições tradicionais e horrores irresistíveis.
Mas tu, ó poeta do ermo, escondido na tua montanha, que sobranceia o mar, tu contemplavas, de dia ou de noite, com religiosa firmeza, esse majestoso vizinho cheio de mistérios e de vozes, de força e de humildade, de sanha e de candura.
Para ti a frágil embarcação que navegava dobrando o famoso cabo, onde os geógrafos antigos quiseram assinalar o fim da terra, não era a ousadia humana que passava, orgulhosa de domar as águas, vaidosa das suas flâmulas e das suas velas desfraldadas: a ti afigurava-se-te um enorme altar flutuante, no qual se erguiam os mastros cortados pelas vergas em forma de cruz; e o cordame fazia-te lembrar o labirinto fantasioso de estreitas cortinas e sanefas pendentes de um templo que fosse vogando mar em fora em louvor de Deus.
E mais fundo se te arraigava no coração esta crença quando a maruja, passando em frente da santa montanha, saudava em brados festivos a Estrela do mar, não menos resplendente que no tempo de Haildebrant, a Estrela do mar engastada no seu vasto oratório rústico, que de nordeste a sudueste corre na extensão de cinco léguas, dominando pelo norte as águas do Tejo e esse formoso arquipélago de pequenas aldeias que se chama Azeitão; sobranceando pelo sul a larga corrente do Sado, e as ruínas da velha Troia; avistando no horizonte que se rasga pelo sudueste a orla alvacenta do Alentejo e dos Algarves.
Onde houve na terra mais dilatado, majestoso e perdurável altar! Assombroso era o templo de Diana em Éfeso, e um dia os incêndios atiçados por Erostrato devoraram-no. Mas pelas tuas colunas e os teus artesãos de pedra, ó santa montanha da Arrábida, podem colear à vontade as chamas dos fachos iconoclastas, que os não hão de crestar nem abalar na sua imobilidade eterna.
Estas e outras grandezas do formoso retiro monástico referiam os monges arrábidos em Lisboa nas salas piedosas da infanta D. Isabel fundadora do convento de Santa Catarina de Ribamar, e viúva do infante D. Duarte, irmão de D. João III. Quando este monarca houve por bem dar casa a seu sobrinho D. Duarte, órfão daquele infante de igual nome, o pai de Agostinho Pimenta conseguiu acomodar o filho no paço do imberbe neto de D. Manuel, onde Pedro de Andrade Caminha tinha os cargos de camareiro e guarda-roupa.
Era Agostinho Pimenta um mocinho de idade igual à do infante a quem vinha servir, saudoso da amenidade bucólica do seu Lima, onde ele, em companhia de seu irmão Diogo Bernardes, versejara voltas e glosas em honra da natureza.
Foram-lhe lançando n'alma as saudosas paisagens do Minho, os germens de umas tristezas suaves, que algum dia chegam a florescer dolorosamente, e que às vezes se desentranham em frutos de lágrimas, quando a vida consegue demorar-se até à sazão do outono.
Nestas disposições de ânimo contemplativo entrou Agostinho Pimenta nas salas duma princesa viúva, e dum infante cujo caráter melancólico todos os dias mais se ia domando ao jeito do eremítico apartamento que os religiosos da Arrábida, certos frequentadores da casa, encareciam à mãe e ao filho, principalmente Frei Jacome Peregrino, cuja conversão, como de leve tocamos, dependeu de uma simples visita à montanha.
Intencionalmente deixamos em silêncio os nomes das duas infantas filhas de D. Isabel de Bragança, D. Maria e D. Catarina, duas tímidas meninas que viviam constrangidas nos soporíferos hábitos do paço, e que de nenhum modo podem dar relevo ao grupo da família do infante D. Duarte.
A primeira destas meninas veio a casar para Flandres com o príncipe Alexandre Farneze; a segunda desposou seu primo coirmão D. João, sexto duque de Bragança, e figura como pretendente à coroa em 1580, época em que o seu nome entra por assim dizer na história de Portugal.
Entre os fidalgos que concorriam habitualmente às salas da infanta D. Isabel, era dos mais assíduos o terceiro duque de Aveiro, D. Álvaro de Lencastre, mui celebrado nos livros antigos pela sua particular afeição ao mosteiro da Arrábida.
Este fidalgo prezava grandemente os talentos e qualidades do moço Agostinho Pimenta, e não raro descaiam suas conversações nos assuntos religiosos, que flutuavam ao de cima de todas as preocupações naquela nobre casa.
Agostinho inflamava-se então nos arrebatamentos próprios da sua idade, e umas vezes ardentemente encarecia na presença dos fidalgos o espírito aventuroso dos mancebos portugueses que, à semelhança do poeta Luís de Camões, a esse tempo em Macau, iam militar no Oriente; outras, arrastado pela suave e convincente palavra de Frei Jacome e demais arrábidos, parecia deixar entrever vislumbres de propensão à vida ascética do eremitério.
Acontecia sempre que o camareiro do infante D. Duarte, Pedro de Andrade Caminha, afrontado com os gabos do moço Pimenta ao gentil ardimento de Luís de Camões, a quem profundamente odiava, saia a ripostar-lhe com deslavados epigramas ao solitário da gruta de Macau, cujo ofício era, no seu entender, acutilar com a pena as autoridades de Goa, que o deportaram para a China, como em Lisboa havia acutilado com a espada o pescoço de Gonçalo Borges, criado do rei, o que lhe valeu ter que ir servir na Índia por grande clemência real.
Agostinho Pimenta tinha as opiniões contraditórias de quem ama pela primeira vez, e receia as consequências do primeiro amor, proclamando agora a superioridade do coração humano sobre as pequenas contrariedades amorosas da mocidade, e logo a poética abnegação de quem sacrifica a vida inteira ao serviço de Deus, depois de mal sucedido nos amores terrenos.
Batido no campo das tendências aventurosas umas vezes por Pedro Caminha, outras vezes pelos capuchos da Arrábida, Agostinho Pimenta via-se encurralado no reduto do fanatismo religioso, e esta ideia, lentamente insinuada, acabou por tomar no seu ânimo a consistência de uma estalactite formada gota a gota no teto de uma gruta.
Frequentes vezes relembrava a infanta D. Isabel a brevidade da felicidade terrena, como para resignação sua e dos religiosos que a escutavam. Recordava com tranquila tristeza a magnificência dos seus desposórios com o filho de D. Manuel, celebrados em Vila Viçosa em abril de 1537. Não exagerava historiando com piedoso desdém o aparato dessa festa nupcial, que a dedicada amizade de seu irmão D. Teodósio de Bragança quisera tornar esplendida. Uma frase de Damião de Góes corrobora as magoadas recordações da infanta: "O aparato destas festas foi tamanho — diz o cronista manuelino — que com assaz trabalho o poderá um Rei fazer com mor magnificência." D. João III, se não ordenara as festas, assistiu a elas, com os infantes seus irmãos, e a flor da sua corte. Fora ele que justara o casamento com D. Teodósio. Cabia-lhe, pois, a iniciativa desse enlace que parecia prometer uma longa e venturosa duração, e que tão breve foi. El-rei, que se achava no paço de Évora a esse tempo, fora esperado pelo duque D. Teodósio a meia légua de Vila Viçosa. Seguiu-se o jantar nupcial, no paço do duque, em que D. Isabel teve lugar ao lado do rei, e o duque logo abaixo dos infantes. Sobre todas estas recordações do seu noivado passava nos lábios da infanta viúva um sorriso triste e resignado. Com fidalga saudade, digamos assim, encarecia a gentil presença, bondade e piedade do infante seu marido. Então acudia algum religioso de São Domingos ou da Arrábida a elogiar os dotes intelectuais de D. Duarte, que praticava em latim com o seu mestre André de Rezende, e recitava ao revés, de memória, qualquer capítulo de Cícero; e ditava quatro cartas ao mesmo tempo, e compunha música e poesia, e cantava, e jogava as armas, e era caçador exímio. Quando vinha a lume esta prenda da caça, ainda a infanta se lastimava dos incômodos que, mesmo depois de casado, se dava o infante quando saia a montear, e era certa a milésima edição do caso de lhe haver um seu privado exposto os perigos dos excessos venatórios, e o infante respondido que bom era educarem-se os homens em ásperos exercícios para melhor poderem sofrer os trabalhos da guerra. Esta longa resenha das virtudes e talentos de D. Duarte seguia quase sempre a ordem cronológica da sua biografia, e portanto força era relembrar a sua morte, por ele predita, e o cilício com que misteriosamente trazia cingidas as carnes, e a pomba que ao passar a sua tumba, caminho de Belém, onde jaz, pelo hospital de Todos os Santos, voara mansamente para o céu.
Fora nesta atmosfera fradesca e milagreira, onde continuamente se apregoava o efêmero e frágil das felicidades terrenas, ainda mesmo das mais santamente conquistadas pelo amor e pela virtude, que o moço Agostinho Pimenta respirou tristemente ao entrar na sociedade para onde o mandaram desterrado do seu bucólico Minho.
Mas eu já vi uma vez, navegando Douro acima, empinar-se sobre a margem esquerda o mais árido, o mais calcinado, o mais duro fraguedo que pode imaginar-se, e pendurado de uma rocha, e como que nascido do seio dela, o mais verde, o mais fresco, o mais curvo festão de verdura que se poderá descrever. Era nos fins de julho, pelos grandes calores. Havia uma hora que navegávamos por entre alcantis que se recortavam com os vagos contornos de gigantes de pedra. Nas frontes tostadas dos marinheiros porejava o copioso suor do trabalho. A corrente era pequena, e o barco subia vagarosamente a impulsos de vara. Daríamos um tesouro, se o tivéssemos, por uma sombra de oásis. Mas o deserto, que era de pedra, parecia infindo. Apertava conosco o vago receio que nos dá a solidão nas longas horas da charneca alentejana, agravado pelo sol canicular que sobre nós caia a prumo. De repente, ao dobrar uma volta do rio, surge como por encantamento, desconhecido dos marinheiros, o largo e alto festão, que prometia sombra deliciosa para o descanso de meia hora. Foi assombrosa a nossa alegria. Como e quando nascera ali aquele braço de verdura que parecia estender-se amigavelmente ao viajante para lhe oferecer abrigo? Ninguém o sabia; não o puderam dizer os marinheiros.
Assim também ninguém pudera dizer como desabrochara o coração de Agostinho Pimenta no sombrio paço que fechara as portas ao Amor quando o cadáver do infante D. Duarte saíra para Belém.
Entre as damas que serviam a infanta D. Isabel uma havia, D. Branca de Noronha, cuja formosura floria nas graças senhoris dos dezessete anos. Também ela fazia lembrar o oásis no deserto. Esta gentil menina contrastava singularmente com as melancólicas tendências da família e comensais da infanta viúva. D. Isabel era inalteravelmente a piedosa fundadora do convento de Ribamar; seu filho, o infante D. Duarte, havia recebido para todo o sempre a influência de uma educação intolerantemente religiosa; Pedro de Andrade Caminha conciliava como podia as suas malquerenças como homem com o seu fanatismo religioso como camareiro do infante; os franciscanos da Arrábida traziam para as salas do paço a melancolia inerente à solidão do eremitério. Delimitando os extremos desta sociedade espessamente taciturna e abórrida, — duas crianças quase de igual idade, posto que de gênios diferentes, — Branca de Noronha e Agostinho Pimenta.
Quem dera às duas irmãs de D. Duarte o poderem espanejar-se, ainda que também a medo, como a lépida aiazinha Branca!
Ela era a inquieta encarnação da alegria, a onda límpida que, sem se amedrontar com o aspecto sinistro das ribas solitárias, as cobre de instante a instante com as suas abundantes rendas de espuma, e as suas pequenas perolas de água. Era o único riso que borboleteava ao de cima da melancolia quase conventual daquela casa, e, como o riso é por via de regra a expressão da alegria, jamais se deixou contagiar da tristeza que empalidecia os semblantes, e hibernava nos corações.
Agostinho Pimenta, cujos hábitos infantis foram os de um poeta que desabrocha entre a pensativa beleza das paisagens do campo, não teve força bastante para se deixar ficar embelezado nas cintilações que de quando em quando lhe relampagueava a mocidade, e assim foi que cedeu à pressão religiosa da infanta viúva e dos monges arrábidos.
Branca de Noronha sorria dele com uma graça capaz de abalar a seriedade de Frei Jacome Peregrino, se ela poderá dizer-lhe com a mesma franqueza os chistes com que de emboscada acometia o moço Agostinho Pimenta.
Não raro acontecia, à volta de um corredor, encontrarem-se os dois, e curvar-se ela em palaciana mesura para dizer-lhe:
Deo gratias, Padre Frei Agostinho!
E despedia numa graciosa corrida, atabafando com a mão delicada o seu metálico rir senhoril.
Tantas vezes se repetiu a amável zombaria da formosa aiazinha da infanta, que o moço Agostinho Pimenta resolveu aproveitar um destes frequentes episódios para dizer-lhe:
— Não graceje, Dona Branca, que pode vir a converter-se em realidade o que nos seus lábios é zombaria. Está na sua mão, direi antes no seu coração, o atirar-me para a solidão conventual...
— Vejo que tem aproveitado as lições de Frei Jacome Peregrino...
— Ah! não continue a zombar, Dona Branca!
— Quer então que eu chore a conquista de mais uma alma para o céu? Não deve ser. O Sr. Agostinho Pimenta tem inclinação para a vida monástica. Eu não tenho. Que se me dá que vista o hábito? Vista, se quiser. Será mais um religioso que frequentará as salas da Sra. infanta...
— É-lhe então absolutamente indiferente que eu professe?
E D. Branca, sem responder a esta pergunta, a que o novel poeta das margens do Lima dava uma importância apaixonada, mesurou graciosamente e motejou:
— Padre Frei Agostinho, queira Vossa Caridade recomendar-me aos seus irmãos capuchos.
E desapareceu com a ligeireza de uma arvéloa. Agostinho Pimenta era, como sabemos, o poeta educado pela natureza, que tem o segredo de aconselhar tristezas. Acrescia que respirava num meio onde o fanatismo religioso se inoculava lentamente, durante a sonolência dos serões fidalgos, como as emanações da mancenilheira, durante o indiscreto sono do viandante. Fez-se mais pensativo que nunca no decurso de três dias, durante os quais algumas vezes lhe chegara aos ouvidos o leve rir descuidado da aiazinha. Ao cabo do terceiro dia foi ao encontro do provincial Frei Jacome, que estava praticando com a infanta e o infante numa das salas do paço, e, depois de solicitar vênia de D. Duarte e sua mãe, pediu ao virtuoso monge que lhe permitisse vestir o hábito da sua Província.
Jubilou Frei Jacome com a resolução do moço Pimenta, com que ele contava havia quatro anos, atribuindo-a candidamente à eficácia dos seus conselhos, semelhantemente ao pomareiro que se vanglória de que a árvore frutifique mais pelo seu trabalho do que por espontaneidade da natureza.
Correu o ano do noviciado ou da aprovação de Agostinho Pimenta, como então se dizia, no conventinho de Santa Cruz da Serra de Cintra, do qual ele ao depois tomou o apelido na profissão, como deixou escrito:
Nasci, e renasci na Casa em dia
De Santa Cruz, da Cruz o nome tenho.
Durante o noviciado, que principiou em 1560, Agostinho Pimenta parecia por vezes entrever nas suas visões monásticas a formosa imagem da aiazinha da infanta, e então era o descer da serra de Cintra e vir em cata dessa visão, que o podia salvar antes que as portas do conventinho de Santa Cruz se fechassem eternamente sobre ele. Destas visitas ao paço do infante D. Duarte, dá recatada e dissimulada conta o biógrafo José Caetano de Mesquita, quando diz: "E ainda que conservou algumas correspondências de pessoas instruídas, julgando não desdizer da austeridade do seu instituto condescender com os seus amigos, achando-se nas suas mesas, e comendo dos delicados pratos com que eram servidas; contudo sempre se houve com religiosa modéstia, e o decoro devido à mesma reforma."
Uma destas visitas parece haver decidido definitivamente da sorte de Agostinho Pimenta.
Celebrava-se o décimo nono aniversário natalício do infante D. Duarte. As duas meninas suas irmãs haviam instado com a infanta D. Isabel para que não deixasse passar despercebido o dia, e, consultados os frades da Arrábida, concordaram eles que era de justiça ser assim. A infanta viúva anuiu por obediência aos seus conselheiros, e permitiu se realizasse excepcionalmente a festa comemorativa do aniversário de seu filho.
Agostinho Pimenta viera de Cintra expressamente.
Era em março. A primavera enflorava as alinhadas moitas do jardim, e as rosas abriam alas festivas às damas que divagavam por entre os canteiros. Primava entre as damas de mais peregrinas graças a trefega aiazinha Branca. Não a perdia de vista Agostinho Pimenta quando glosava, com o sabor religioso que a sua posição exigia, este mote que lhe dera a infanta D. Catarina:
Antre as coisas mais formosas
Busca a mais formosa delas;
Mais que o sol, lua, e estrelas,
Mais que lírios, e que rosas.
Havia D. Antônio de Melo, fidalgo ao serviço do infante, cortado uma rosa, ao passar por um dos canteiros. Era alva de neve raiada de laivos sanguíneos. Decorrido tempo aparecera D. Antônio sem a flor, e Agostinho Pimenta, encontrando Branca à beira do lago, sorriu-lhe com a doce familiaridade que meses antes os reunia no paço do infante. A travessa aiazinha, atentando no hábito de Agostinho, respondeu com um sorriso desdenhoso, e, ao curvar-se para mesurar o costumado Deo gratias, Padre Frei Agostinho, a contração do seio fez com que se despenhasse à água do lago a rosa branca radiada de filamentos purpurinos, que D. Antônio lhe dera, e ela ocultara no peito.
Não se prendeu a aiazinha com a contrariedade. Nesse dia era-lhe permitido vibrar livremente a sonoridade metálica da sua voz. Riu alegremente, e desapareceu por entre os alegretes com o rápido deslizar das deusas do paganismo. E as brancas ninfas de louça, e os sarcásticos satirozinhos de mármore, que se alapavam entre a verdura do jardim, pareciam dizer à veloz aiazinha numa longa ressonância:
— Viva, Galateia!
Agostinho Pimenta ficou chumbado à beira do lago, com os olhos postos na rosa flutuante, e como que lhe segredava no seu olhar melancólico: "Também eu me despenhei como tu!"
Doera-lhe no coração a mágoa de que a donzelinha se deixasse enliçar nos aventurosos laços dos fidalgos que naquele tempo viviam por cortes, e desde esse momento desejara antecipar, se possível fora, a hora solene da profissão. Esta descrença na pureza feminina era-lhe em parte agravada pelas cartas despeitadas de seu irmão Diogo Bernardes, que se exulara em Ponte de Lima, mal ferido de um galanteio começado à beira do Tejo com uma dama que preferira casar rica.
Ah! mas Agostinho Pimenta enganava-se. A alegre aiazinha da infanta D. Isabel tinha o gênio mariposo que borboleteia nas flores e se desvia dos espinhais. Era a graça com duas asas: tinha a desenvoltura que não rasteja.
Ao outro dia partia para o solar de Bragança em Vila Viçosa a infanta viúva, suas filhas e seu filho D. Duarte.
As duas únicas recreações que habitualmente se permitia o infante D. Duarte, a despeito de suas irmãs, tinham um caráter tradicional de família: eram a poesia e a caça.
O príncipe seu pai, cuja fama de caçador a história ainda hoje pregoa, fora trovador. Dá testemunha Souza na História genealógica: "Na poesia vulgar compôs sentenciosamente, guardando as regras poéticas."
D. Duarte não versejava, mas gostava de ouvir trovar no seu paço. Monteador era-o por herança, e famoso. Andava nos costumes da família o de uma caçada anual em Vila Viçosa.
O infante era acompanhado pelos fidalgos de sua casa, D. Diogo de Lima, D. Antônio da Gama, Jorge da Silva, D. Diogo, D. Antônio e D. Rodrigo de Melo, D. Luís e D. Francisco de Moura, Gaspar de Souza, João Mendes de Castelo Branco, Francesco Leitão, Luís do Amaral e Pedro de Andrade Caminha.
O duque de Bragança, D. João, era seguido de luzida e numerosa comitiva.
À infanta viúva, a D. Maria e a D. Catarina faziam séquito mais de vinte senhoras, entre as quais não seria difícil distinguir D. Branca de Noronha.
A entrada em Vila Viçosa foi deslumbrante de magnificência e digna de um príncipe de sangue, imediato à coroa.
O infante D. Duarte ia vestido à flamenga em cavalo de brida, e a infanta sua mãe em umas andas, ricamente guarnecidas, acompanhada por D. Catarina. D. Maria cavalgava em mula com andilhas de preciosa chaparia de ouro.
De véspera haviam chegado os pajens e monteiros com numerosas matilhas de lebréus, sabujos e outros cães, e boas aves de presa.
De manhã cedo já os nobres caçadores andavam no seu rude lidar, e não poucas vezes lhes era servido o almoço à sombra de uma alameda cuja simplicidade bucólica notavelmente contrastava com as finas toalhas holandesas, os gomis de ouro lavrado, os picheis e taças de prata, — com a preciosa baixela da casa do infante.
Foi numa dessas manhãs, e sob essa mesma alameda frondosa, que o infante D. Duarte recebeu uma carta cuja direção, era a seguinte: — Para sua excelência o senhor infante D. Duarte.
Para logo conheceu o infante a letra: era de Agostinho Pimenta.
Houve curiosidade de saber o que diria a carta, por inesperada. O noviço do conventinho da serra de Cintra solicitava da infanta viúva e de seu filho autorização para professar. Jubilou com a notícia a corte do infante: havia conseguido uma vitória. Só D. Branca de Noronha trejeitou quase imperceptivelmente de desdém.
Momentos depois, ao tempo em que Agostinho Pimenta dolorosamente supunha a louçã aiazinha requebrada nas galanterias de D. Antônio de Melo, esquivava-se ela ao encontro deste galanteador fidalgo, impelindo gentilmente o seu palafrém ao longo da alameda.
Há uma desenvoltura mais casta do que o recato melindroso.
Ha, mas também há uma força maior do que a Verdade.
É o Amor.
Pintaram-no cego os antigos. Cego, porque tudo é despenhar-se em insondáveis profundezas de virtude ou de crime, sem lançar mão à humilde esteva que floresce no cairel do abismo, para que o sustenha na queda; cego, porque tudo é querer arremeter com as dificuldades que lhe tomam o passo e ir por diante na sua vertiginosa carreira quase sempre vencedor e poucas vezes vencido; cego, porque se não lembra de que a vida é pequena para ele e porque aspira à eternidade quando se inflama em peito de Jacó e de sete em sete anos renova o longo sonho da sua ventura almejada com o pensamento fito em Rachel.
Duelo titânico do Amor com a Verdade: do Amor, que nada quer ver, com a Verdade, que nasceu para ser vista; do Amor, que é o Proteu de si mesmo, e que se faz Otelo, Romeu ou Antony, com a Verdade, que tem uma só forma, uma só face, e um só destino.
Postas rosto a rosto estas duas grandes forças, trava-se furiosa a briga, arremetem-se, digladiam-se, confundem-se num vulto só como os corpos de dois lutadores raivosamente abraçados num circo romano, e quase sempre o Amor, arremessando desdenhosamente para o largo esse gigante luminoso que se chama a Verdade, passa ovante mas ferido em vertiginosa carreira como se fora arrastado pelo legendário cavalo de Mazepa.
Quem lhe vai pensar as feridas ao misero? conchegá-lo ao seio quando para finalmente depois do torrentoso despenho? Então mirra-se as mais das vezes na cruciante solidão de uma existência sem esperança.
Antigamente fazia-se monge, como aconteceu com Agostinho Pimenta. Amortalhava-se no hábito, cingia-se de cilícios, vivia na cela ou na gruta, ajoelhava diante da caveira ou da cruz. Depois que passaram os séculos em que o coração era templo de vestais, onde flamejava puro e vívido o fogo dos afetos, o Amor, cego como na antiguidade, se bem que menos casto e sofrido, atira-se voluptuosamente aos braços da morte, como Werther, ou ri satanicamente como Byron ao levantar com mão nervosa os ondulosos cortinados dos leitos conjugais.
Dedicação que exigia o sacrifício de uma vida inteira, ou febre impetuosa que dura o tempo de uma sezão, sempre cego o Amor, ontem e hoje, hoje e amanhã, exagerando as suas dores, embalando-se nas fábulas criadas pela sua fantasia exaltada, fechando os olhos à verdade que, embora vencida por ele, que é mais forte, lhe sobrevive no seu trono de luz, assente em degraus de granito, — eterna como Deus.
Também no coração de Agostinho Pimenta estava travado a essa hora o duelo horrível. Turvava-lhe a vista o Amor, supondo Branca pecadora. A Verdade quisera poder levá-lo pela mão a debruçar-se numa das janelas do conventinho de Cintra, mostrar-lhe as borboletas que doidejavam nas comas floridas, e perguntar-lhe se alguma delas valia menos por ter doidejado mais.
Mas o Amor, o grande Amor desses tempos legendários, que fazia do coração uma lâmina de aço, mais sonora quanto mais martelada, mais flexível quanto mais comprimida, o Amor empunhara a sua lira magoada e pelos arvoredos da serra fora soluçando tristes cantares, enquanto a eterna Verdade ia chorando pelo poeta, que fugia do mundo, lágrimas de luz.
Coincide com a carta dirigida ao infante D. Duarte o versejar das tristezas que no livro de Frei Agostinho tomaram o titulo de — A uma ingratidão — e que rematam com estas alusões claríssimas:
Se mal fundei a minha confiança,
Se tão mal empreguei amor tão puro,
Por que não tomarei de mim vingança?
Quanto mais cruel for, quanto mais duro
Contra mim, tanto mais serei mais brando;
Pois todo o mal em mim é mais seguro;
Assim me irei de todo acostumando
A ser tamanho inimigo do meu gosto,
Que me fique esta mágoa consolando.
Dois rios correrão pelo meu rosto,
Envoltos nos meus gritos, derramados
Noite, dia, manhã, tarde, sol-posto.
Os tristes versos meus dependurados
Nos troncos deixarei das verdes plantas,
Que das secas assaz estão queimados.
Neles escreverei além de quantas
Cousas já padeci, quantas padeço,
Por julgarem tão mal muitas tão santas:
Contudo, meu Senhor, eu não esqueço
Que rogastes na Cruz por gente ingrata?
Eu por ela também perdão vos peço.
Se vós, meu Deus, rogais por quem vos mata,
Como não rogarei a vós, Senhor,
Que perdoeis a quem tão mal me trata?
Bem claro vendo estou, quanto melhor
É ser injustamente perseguido
Que poder ser de alguém perseguidor.
A coisa de que mais estou sentido
É ver que nos meus olhos faltou vista,
Para ver de que cor era vestido
Um coração devoto do Batista.
Completo o ano do noviciado, o irmão de Diogo Bernardes tomou efetivamente o nome de Agostinho da Cruz. Deixara ao mundo o nome que o mundo lhe dera. Desde o dia da profissão, a sua vida foi quase inteiramente de reclusão meditativa. Rareou as visitas à sociedade, especialmente ao paço do infante D. Duarte, onde a completa mudança da sua fisionomia começou a infundir respeito nas pessoas que anos antes o conheceram.
Branca atentava no ainda moço Agostinho, e já não ousava disparar-lhe os chistes próprios do seu gênio. Se acertava encontrá-lo, fugia-o receosa de vizinhar a tristeza do hábito. Agostinho da Cruz tirava desta esquivança indícios de culpabilidade, e recolhia taciturno ao seu convento, onde aligeirava as horas da clausura compondo versos que dias depois lançava ao fogo.
Mais de quarenta anos deslizaram entre este repartir-se com Deus e com a secreta inspiração que não deixava apagar na sua alma o fogo vestal da poesia. Neste meio tempo, indo ao convento de Cintra D. Diogo Lopes de Lima, perguntara a Frei Agostinho da Cruz se o hábito lhe vedava o poetar. O monge respondera sorrindo que os versos menos valiosos eram os que se davam ao papel, e desses quase todos os inutilizava. Outros havia que recitava àquelas penhas ou confiava àquelas árvores. D. Diogo de Lima, relanceando os olhos ao tronco a cuja sombra praticavam, viu repetidas vezes entalhada no córtex a letra B. Preocuparam-no pelo caminho as palavras do franciscano, e dias depois relatava o sucedido no paço do duque de Aveiro, em Azeitão.
Fácil lhes foi correr com a memória as breves paginas da brevíssima mocidade de Agostinho Pimenta, e o associarem a gentil aiazinha da infanta D. Isabel à inicial entalhada nas árvores de Cintra. Uma só pessoa podia aclarar a verdade. No convento de Jesus estava recolhida desde a morte da infanta D. Isabel uma senhora que podia dar notícia da gentil aiazinha dos dezessete anos. Esta senhora orçava pelos cinquenta e cinco. Era D. Branca de Noronha.
De Azeitão a Setúbal breve é a jornada, e brevíssima o foi para tão destro cavaleiro como o duque.
Consultada por D. Álvaro de Lencastre a reclusa do convento de Jesus, pode ela conciliar as suas recordações no sentido de presumir-se causa involuntária da conversão de Agostinho Pimenta.
Desde esse momento D. Branca deixou de ser um segredo da alma do monge, que, tendo a rogos do provincial Frei Antônio da Assumpção aceitado a guardiania do convento de São José de Ribamar, mais que nunca se afervorou no empenho de retirar-se à serra da Arrábida, desde que percebeu as alusões do duque de Aveiro e de D. Diogo de Lima aos poucos anos da sua mocidade vividos na casa do infante.
Obtida a licença, não sem grandes dificuldades, passou-se Agostinho da Cruz à serra da Arrábida, onde não havia cômodo para viver solitário.
Implorou a amizade do duque para ter eremitério, mas, recreado nas diversões campestres do seu paço de Azeitão, esqueceu-se D. Álvaro de Lencastre de lho mandar edificar. Frei Agostinho da Cruz não reclamou. Fez uma cubata de ramos silvestres, e por sua própria mão tentou levantar casa mais de jeito para resistir às violências da serra. Feriu-se nas mãos, e desistiu do intento. Nesta conjuntura visitaram-no os duques de Aveiro e de Torres Novas, o primeiro dos quais era padroeiro da Arrábida. Então tornou a lembrar a ermida. Tratou-se de escolher sítio. Vacilaram na escolha, e o duque de Torres Novas, floreando a enxada, demarcou, por cortar hesitações, a área da ermida.
O paço de Azeitão! O que hoje são paredes ruinosas e negras era naquele tempo um palácio que, segundo o frasear de Frei Luís de Souza, podia competir com os melhores de Espanha. Casas, jardins, pomares, bosques e pinhais magníficos! E como tudo isso foi docemente conquistado pelos descendentes do mestre de São Tiago aos frades de São Domingos, seus vizinhos! Pediram terreno para fazer uma casa de campo. Os frades, orgulhosos da nobre vizinhança, deram o terreno, e o mais que lhes foram pedindo, até que apareceu o grandioso palácio, de que restam as paredes!
Mas fiquem em paz as ruínas.
Respirava dilatada na profunda solidão da serra da Arrábida a alma de Frei Agostinho da Cruz depois que o duque de Aveiro lhe fizera mercê da ermida, que ainda hoje se conserva em memória do seu primeiro morador. Pequena era a habitação do ermita, em verdade, mas a alma do poeta tinha maior espaço na amplidão da montanha coroada pelo firmamento e defrontada pelo oceano. Frei Agostinho amava profundamente a noite, porque era só então que a sua pálida figura de solitário podia errar livremente, nas asperezas da serra, acobertada pelas sombrias asas do mistério. Algumas vezes, de dia, o molestavam até à mortificação a visita de pessoas amigas e a reservada espionagem dos religiosos do mosteiro que, por quererem parecer mais zelosos, não suportavam que Frei Agostinho vivesse fora da clausura. Mas a noite adormecia a vigilância nos olhos dos espiões, e afugentava da aspereza da serra as pessoas que lá o procuravam. Então, a sua alma podia voejar desoprimida de receios, e subir em êxtases para Deus ou roçar por ventura as suas asas, purificadas no crisol da fé, pelas austeras paredes do mosteiro de Jesus, onde vivia a que fora a gentil aiazinha de D. Isabel.
Fossem quais fossem as tribulações de Frei Agostinho durante os amigos silêncios da lua, como diz a expressão virgiliana, jamais deixou de fazer oração antes de sair o sol, e de nas primeiras horas da manhã ir à ermida da Senhora da Memória ouvir a missa de Frei Diogo dos Inocentes, outro solitário que depois lhe ajudava.
Era, pois, durante a expressiva mudez da noite que por diante dos olhos do solitário da Arrábida perpassavam os fantasmas do passado, as visões do presente, e talvez as profecias do futuro. Desenhava-se-lhe com sombrio relevo o efêmero tempo da sua mocidade agora povoado de cadáveres. Em 1576 havia falecido em Vila Viçosa a infanta D. Isabel. O infante D. Duarte, que acompanhara el-rei D. Sebastião na sua primeira jornada a África, voltara enfermo ao reino e falecera no mesmo ano que sua mãe, dois meses depois. A infanta D. Maria, casada com o príncipe Farneze, dera em longes terras a alma ao Criador, um ano depois de sua mãe e de seu irmão. O nome da duquesa de Bragança, D. Catarina, entremostrava-se-lhe envolvido nesse labirinto de graves acontecimentos políticos que sucederam depois da morte do cardeal. Seu irmão Diogo Bernardes, que estivera cativo em África, por haver acompanhado D. Sebastião a Alcácer-Quibir, na qualidade de cronista, e que lograra repatriar-se, recebendo no reino uma tença de Filipe II, falecera nesse mesmo ano em que Frei Agostinho conseguira recolher-se à Arrábida. Pedro de Andrade Caminha tinha sucumbido dezesseis anos antes. A cólera do Senhor havia passado sobre o céu da pátria como um gládio de fogo, e a fome, a peste e a guerra haviam devastado a terra onde o cadáver de Camões, amortalhado na bandeira gloriosa das quinas, dormia o sono da imortalidade.
Esse fora o grande poeta que morrera com a pátria.
Todos os mais, aqueles de quem Frei Agostinho da Cruz se lembrava, tais como seu irmão Diogo Bernardes e Pedro Caminha, haviam adorado todas as realezas e todos os homens; atravessaram a corte portuguesa trovando e trovando entraram na corte espanhola.
Ah! ele não! Ele, o solitário da Arrábida, fizera do amor terreno a escada de Jacó por onde subira ao amor divino.
A gentil aiazinha da infanta D. Isabel envelhecera reclusa no convento de Setúbal. Era como que um livro que ele fechara ao vestir o hábito, mas que o seu coração encadernara no pergaminho da saudade, como que para durar sempre.
O único poema que lhe era dado ler, quando dessas encerradas memórias desviava a vista, era o vasto firmamento arqueado, numa grande serenidade azul, zebrada de lácteas ondulações, sobre o dorso austero da montanha.
Umas vezes a lua, suspensa como enorme lâmpada circular, outras vezes as palpitações luminosas do relâmpago lhe alumiavam estas horas noturnas de funda meditação.
Certo dia, pouco depois da visita do duque de Aveiro ao convento de Jesus, procurou-o na serra o Padre Frei Fernando de Santa Maria, por negócio preciso, diz piedosamente o biógrafo Mesquita. Estava alheado em êxtase Frei Agostinho da Cruz, quando o Padre Fernando chegou. Foi mister dar-lhe tempo de redescender à realidade terrena e, quando a alma do asceta voltou a encarnar-se no homem, o Padre Fernando de Santa Maria entregou a Frei Agostinho da Cruz uma carta que em Setúbal lhe haviam confiado para o solitário da Arrábida.
— Quem se lembra ainda de mim no mundo? perguntou serenamente Frei Agostinho.
O Padre Fernando encolheu os ombros, inclinou-se e saiu.
Frei Agostinho lançou-se contra o solo áspero da ermida, e por longo tempo permaneceu em oração. Quando a vaga claridade do luar nascente principiava a cobrir de uma fina gaze branca a amplidão do mar, Frei Agostinho desceu tranquilamente a montanha em demanda da lapa de Santa Margarida, o seu retiro dileto das noites luminosas.
Ah! a gruta de Santa Margarida!
Ide cortando as águas com o rumo na serra da Arrábida. Quando ao sopé da serra encontrardes o legendário penedo chamado do Duque, onde D. Álvaro de Lencastre ia sentar-se a pescar, desembarcai. Então vos espera a maior formosura que jamais vos foi dado ver. Abre-se em dois arcos a rocha, um que dá sobre o mar, outro que dá para as fragas. Entrai pelo do mar, até onde vos poder levar o vosso barquinho, como fazem os pescadores do Cabo quando vão ouvir missa ou levar oferenda à santa da Lapa. De repente arqueia-se sobre vós a grande gruta silenciosa, cheia duma frescura e de uma suavidade inalteráveis, sepultada num silêncio religioso que o roçar das ondas parece não interromper. Recorta-se irregularmente em caprichosas estalactites o côncavo da lapa. Em alguns pontos, foram subindo do solo as colunas vítreas a que os naturalistas chamam estalagmites, e tanto cresceram que puderam fundir-se com as grandes massas de carambina pendentes da abobada. Abraçaram-se, e fizeram colunas que três homens não poderão circular com os braços: Ao fundo da gruta tremeluz a alâmpada no singelo altarzinho de Santa Margarida, que o mar, quando nas marés vivas entra em cachões pelas rústicas arcadas, parece respeitar, desenrolando-lhe aos pés um tapete de espuma: Quando isto não é, encarregam-se as ondas de alastrar de plantas e despojos marinhos o chão da lapa.
Aí, como aprazia à sua alma, descansou Frei Agostinho da Cruz.
Houve um momento que pareceu de hesitação, durante o qual o solitário monge acompanhou com a vista os caprichosos recortes da vaga à boca da gruta. O luar descrevia até meio da lapa uma zona claríssima. Frei Agostinho introduziu a mão direita entre o hábito e o peito, e tirou a carta que o Padre Fernando de Santa Maria lhe havia entregado. Abriu serenamente e leu... Mas, lidas algumas palavras, Frei Agostinho levantou-se de golpe, avançou alguns passos como para conseguir que um raio da lua caísse em cheio sobre o papel, tornou a ler, ergueu de novo a fronte, e, sacudindo o papel na mão nervosa, apostrofou:
— Bendito sejas tu, Senhor, que não te esqueceste de mim na minha solidão! Agora posso morrer no teu seio, ó santo Deus dos afligidos e dos pecadores.
E ajoelhou, e levantou os olhos ao céu, e assim esteve longo tempo com a fronte cadavérica melancolicamente iluminada pelo luar.
A chave do segredo, que esse papel continha, está nos versos de Frei Agostinho, nessa mesma noite escritos na gruta de Santa Margarida. Dizem assim:
A D. BRANCA

Como queres que negue a teu espírito,
Branca, serva da branca Virgem pura,
Mostrar o que me pedes por escrito?
Não sei eu por qual outra criatura
Os tristes versos meus desenterrara
Debaixo de tão alta sepultura.
Mas pois de branca queres fazer clara,
Aquela luz Divina te esclareça,
Que nunca a bons desejos desampara.
Não imagines coisa que te desça
Do caminho do Céu breve, e seguro,
Por mais que trabalhoso te pareça.
Com penas imortais do reino escuro
Não te quero espantar; pois seguir queres
A Cruz do teu Senhor por amor puro.
Que podes esperar, por mais que esperes,
Do mundo, que te tem desenganada,
Que te pode faltar, se a Deus te deres?
Se vires que por tudo deixas nada,
Por nada deixarás o que descansa
No curso desta vida tão cansada.
A tanto subirás nesta mudança,
Que não haverá dor, por mor que seja,
Na qual não cresça mais tua esperança.
Assim de culpas minhas eu me veja
Tão longe, como perto ess'alma tua
Daquilo, que esta minha ver deseja.
Que vás após de quem à custa sua
Por nos levar ó Céu, donde nos chama,
Na terra padeceu morte tão crua.
Um firme coração, que em vós se inflama,
Ardendo por se ver de Vós amado,
Por Vos amar, Senhor, tudo desama.
Do tempo, que gastei tão mal gastado,
Dera melhor razão, do que daria
De vos seguir, Senhor Crucificado;
Mas nunca a fraca voz me faltaria
Para dizer do mundo a falsidade,
Como quem nele andou cego sem guia.
Levanta os olhos teus à saudade
Do Sumo Bem dos bens, e nele aprende
Aquilo que mais for sua vontade.
A Fênix, que do tempo se defende,
Antes que lhe faleça força, e vida,
No fogo se renova, em que se acende.
Não se põe mais a Rola, carecida
Do seu primeiro amor, em verde ramo;
Foge da fonte clara aborrecida.
Testemunha me seja por quem chamo,
Da verdade que escrevo brevemente
Nos versos que por seu amor derramo.
Que não podes sem ele ser contente,
Sem ele, que dilata seu castigo,
Por não negar perdão ao penitente.
Busca falsas razões o duro inimigo
Para nos impedir que de mais perto
Possamos contemplar tamanho amigo.
Ah braços estendidos, Lado aberto!
Quanto se sentem mais as vossas dores
Nesta quietação deste desejo!
Nascem nesta aspereza brandas flores,
E nela tão suave doce fruto,
Como tu colherás, como lá fores,
Amando muito mais quem amas muito.
Estes versos chegaram ao convento de Jesus de Setúbal três dias depois e, transcorrido um mês, dobrava austeramente o sino do convento anunciando a profissão da que outrora havia sido a trêfega aiazinha da infanta D. Isabel.
Frei Agostinho da Cruz subiu vagarosamente ao seu eremitério quando as estrelas começavam a empalidecer no céu. Entrou em oração, e, horas volvidas, foi à ermida da Senhora da Memória ouvir e dizer missa. Depois recolheu-se ao seu cubículo, e aí passou o dia no sagrado mistério da solidão. Ao pardejar da tarde, perdeu-se na montanha a continuar as suas meditativas noites de asceta, a última das quais foi a de 14 de março de 1619, em que, na enfermaria que a Província tinha em Setúbal, santamente rendeu a alma ao Criador.
No convento de Jesus, àquela hora, ouvia-se tocar à agonia na igreja da Anunciada, contígua ao hospital, e pouco depois o dobrar do sino atraia à beira do cadáver de Frei Agostinho toda a população da vila de Setúbal, que lhe retalhava o hábito para guardar uma relíquia.
Ao outro dia vogava rio abaixo, nas águas do Sado, uma falua, armada de muitos ramos e de ricas tapeçarias da casa de Aveiro. Transportava para a serra da Arrábida o cadáver de Frei Agostinho. Em torno do féretro agrupavam-se num silêncio religioso o duque de Torres Novas, o marquês de Porto Seguro, e alguns religiosos arrábidos. O povo de Setúbal alinhava-se na praia e, descoberto e reverente, abençoava o SANTO.
***
Vai, ó casto poeta do amor, repousar no grande túmulo granítico da tua montanha querida. Poeta e monge, tens duplo direito a essa ingente sepultura, onde os monges, tristes e sós, foram muita vez genuflectir sobre a tua laje, e onde os poetas irão pelas idades adentro pedir ao luar que lhes empreste os contornos fantásticos do teu vulto pensativo para te reporem sob a gruta de Santa Margarida meditando mágoas secretas.
Pudeste finalmente dormir, onde quiseste viver.
Se a tua musa jamais se librou majestosa nos épicos arrojos da lira de Camões, cantor do coração e poeta do Amor como ele, a morte vos irmanou na grandeza da sepultura.
Para ele foi sepulcro enorme a pátria. Quem sabe onde jaz? Era pequena uma cova para tamanho homem. Repousa na pátria, sepultura por dois lados orlada pelo mar. É-lhe epitáfio um poema. É-lhe monumento a história.
Tu repousas dentro da grande urna de pedra, cinzelada pela natureza à beira das águas marinhas. É-te epitáfio a montanha. É-te monumento a Cruz, porque ela recorda o teu nome, erguida sobre altar de rocha.
Era pequena uma vala para tamanho sofrer.
Assim foi que a morte igualou no sono derradeiro e glorioso o poeta guerreiro e o poeta monge, dois leais amantes antigos, dois finos corações namorados, que pulsaram, um cingido na cota, o outro opresso no hábito, por duas damas formosas, Natércia e Branca, que por longo tempo hão de viver, não em o mundo fantástico dos poetas, mas na extensa galeria das grandes dedicações portuguesas.
Aqui fica, neste livrinho escrito com a sentida saudade que o teu destino inspira, ó santo eremita da Arrábida, o que quer que seja da misteriosa poesia que as silenciosas noites da serra desabrochavam no teu coração.



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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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