As
ironias do amor
Antônio, tinha-a amado muito, outrora,
quando as ilusões da sua mocidade davam flor, com a timidez, o recolhimento, a
doçura íntima com que se amam as almas puras. Florinda entrava então nos
dezoito anos, saía dos encantados jardins da adolescência, trazia os olhos
namorados de beleza, deixava a paz da juventude para entrar nas sobressaltadas
ilusões do amor e todas as manhãs, quando Antônio passava na rua em que ela
vivia, encontrava sempre à janela a sua vaporosa cabeça loira a que a poeirada
fulgente do sol da primavera dava um brilho de joia rara e animada. A princípio
olhou-a com acanhamento, no receio de ser escarnecido: depois, o hábito foi-lhe
comunicando coragem e fitava-a com mais insistência.
Uma vez, pareceu-lhe mesmo vê-la sorrir
com simpatia, e esta grata, suave suspeita encheu-lhe o peito de luz, sob a
alegria sem névoas duns olhos tão azuis e tão cândidos que dir-se-iam tocados
de uma gota da tinta do céu.
A partir desse momento, a sua muda
adoração ganhou mais confiança e tranquilidade. Constantemente pensava na
radiosa visão matinal que vinha espreitá-lo da alta varanda, entre os vasos com
pelargônios que, sob a claridade benéfica, se cobriam de florações novas, e de
quem ele idealizava, em repousadas, meigas horas de enlevo, a castidade sem
mácula, a ingenuidade, a ternura, e monologava:
— Ela já reparou!... Ela gosta de mim...
Prendera-se com tanta devoção do
espírito e dos sentidos a esta aparição romântica que era uma rosa
desabrochando na aridez da sua existência, que se ela um dia não lhe
aparecesse, sentiria uma dor profunda: mas, como Florinda constantemente se
mostrava e lhe sorria, a pouco e pouco a dolorosa suposição da sua ausência se
dissipou na sensibilidade de Antônio, como um tênue fumo. No romance desta
paixão, começaram a vicejar as flores divinas da felicidade — oh! uma
felicidade toda imaginária, porque nunca entre os dois se havia trocado uma só
palavra de cumprimento e de afeto! Mas tão seguro estava Antônio do amor de
Florinda, que ia já construindo docemente uma vida futura de placidez e de
veneração perpétua, em companhia dela, junto do seu regaço, dos seus pequeninos
pés, com as mãos da noiva, que eram magras, brancas e de dedos afusados, presas
nas suas, balbuciando as confissões que um exaltado romantismo lhe inspirava.
Havia de perguntar-lhe, com a voz débil com que se fala aos convalescentes:
— Não és tu feliz?...
E pensando assim, com a imaginação
povoada de esperanças, reconstituindo na fantasia ardente a fronte cândida de
Florinda, que era melancólica e sonhadora, julgava que ela lhe sorriria com
brandura e reconhecimento por toda aquela ventura que ele lhe oferecia e por
toda a graça terna de que a rodeava.
Em momentos de maior intensidade de
sentir, surpreendia-se a compor o seu lar. Seria numa aldeia de cavadores
simples e crentes, entre árvores de boa sombra. Escolheria uma casa pequenina,
com latadas de glicínias e limoeiros correndo ao longo das paredes — porque
para duas criaturas que muito se querem, uma concha basta. Os dias, nesta
solitude propícia, deslizariam com asas de seda e de luz, tão rapidamente que
não chegariam a aperceber-lhes o tédio e a fadiga. Estes devaneios formavam-lhe
na alma cristalizações de saudade "e mergulhavam-no ao mesmo tempo em gozo
interior e em
beatitude...
Decerto que nunca tivera a audácia de se
demorar sob a janela de Florinda, de oferecer-lhe uma carta em que lhe contasse
todas as ansiedades, todas as inquietações, todos os cuidados do seu amor. No
entanto, considerava que Florinda devia conhecer já esse amor forte e confiante,
pelo olhar triste e implorativo com que a contemplava e pela súbita palidez do
seu rosto, quando em certos domingos a encontrava na cidade, com a mãe:
— As mulheres são subtis — dizia ele
para sossegar as suas dúvidas — e adivinham por instinto, os segredos que os
homens que amam não ousam revelar-lhes.
Ora, quando este sonho feliz se cobria
de rosas, Antônio recebeu inesperadamente a notícia cruel de que Florinda ia
casar-se, viver talvez contente e adulada, com um homem entrado no outono da
existência, rico certamente, mas que não trazia a refletir-se no olhar fulgor
de inteligência, de bondade, de superioridade espiritual. Ao amigo, que lhe
levara a nova perturbante, quis Antônio iludir com um riso cortante e seco e a
zombaria amarga dos sarcasmos: mas ele facilmente compreendeu quanta dor havia
nas ironias e numa ácida gargalhada, que afloravam à boca antes que as lágrimas
aflorassem aos olhos.
— Homem, para que hás de representar,
ser comediante, se eu leio no teu espírito, e perfeitamente entendo o teu
despeito? — atalhou, de súbito, o amigo.
— Despeito? Ora essa!... Eu conheço a
sociedade do meu tempo. A ambição não poupa mesmo estes lindos anjos femininos,
que nós andamos constantemente a engrinaldar de flores e de virtudes! Em que é
que eu posso julgar-me ofendido?
— Não é bem uma ofensa, o caso de que se
trata. Muito pior, talvez: — é uma humilhação... E as humilhações sempre doem,
não é verdade?
Antônio acendeu um cigarro, ficou-se um
instante a seguir as espirais do fumo azulado que se torciam no ar, e exclamou
bruscamente:
— Deixa-me só! Tenho necessidade da solidão
para fazer uma romagem piedosa ao passado.
— Da melhor vontade! — acudiu o amigo,
despedindo-se.
Deu alguns passos à volta da sala,
espreitou durante algum tempo a rua através da vidraça e com um profundo
desalento no coração começou a meditar sobre o singular desfecho do idílio que
durante alguns meses fora o seu enlevo. Florinda ia casar-se! Toda a ventura
que idealizara em horas de placidez e de confiança se esfumava como um fugidio
nevoeiro. Tinha na alma a sua luarosa imagem e sentia invadi-lo uma impetuosa
cólera contra essa doce rapariga que lhe parecera tão resplandecente de
candidez e de gracilidade, tão inocente, e que afinal era fútil como todas as
mulheres, entregando-se a um homem com dinheiro para satisfazer todos os seus
caprichos femininos, todas as suas absorventes aspirações de luxo. Então,
enfurecia-se contra si próprio, porque ainda a amava apesar de desdenhado e de
traído, numa grande abdicação de personalidade, de dignidade, de orgulho.
Experimentou uma enérgica revolta contra a sua fraqueza, e sentando-se, apertando
a cabeça nas mãos, murmurou:
— Acabou-se! Caiu-me uma flor a uma pocilga...
Para que hei de interessar- me por ela?
Recuperando, porém, a sua placidez,
acalmada a sua tempestade interior, considerou:
— Terei eu, no entanto, o direito de
acusá-la? A sua vontade é livre. Não posso impor a ninguém uma simpatia pela
minha pessoa. De resto, nem sequer lhe falei uma só vez! Amei-a em segredo, com
pudor, com recato, como um colegial!
Nunca lhe tinha falado, com efeito! Mas
costumara-se à muda saudação de Florinda, que todas as manhãs o esperava à
janela, sorridente, com a auréola dos cabelos de ouro novo esplendendo à volta
da sua testa, que era ebúrnea e alta, inteligente e pensativa, e imaginava que
só por isto ela lhe devia constância, fidelidade, gratidão! Ah! o acanhamento,
o medo infantil, que lhe afogava a voz na garganta, sempre que tinha de revelar
o seu amor a uma mulher! Relembrava a sua mocidade, que se ia fanando, correndo
continuamente atrás de quimeras nunca alcançadas! Tinha o coração cheio de
imagens mortas — e cada uma dessas imagens o fizera sofrer amargamente. A de
Florinda, então, mais venerada do que todas as outras, causar-lhe-ia angústias!
Resignar-se-ia... Ela ia casar, ter filhos, um braço dedicado que a amparasse.
Não lhe queria mal por isso, com certeza! Mas, na sua amargura, pensava que uma
mulher assim, se fosse boa e leal, seria o encanto da sua vida, faria reflorir
rosas na sua melancolia, iluminaria as suas incertezas com uma fé
resplandecente e purificada. E Antônio havia de ser o seu escravo mais dócil,
um crente de todos os instantes. Levaria a sua abnegação a um tal ponto, que se
ela precisasse do sofrimento e das lágrimas de alguém para a sua perfeita
felicidade, choraria e sofreria só para que ela se não lamentasse!
— Mas, a que conduzirá este devanear
absurdo? — preguntava Antônio. Ela vai casar!... E eu, desiludido, hei de
esquecê-la, certamente...
Vagarosos e lentos anos se passaram, e
Antônio não a esqueceu. Sabia-a venturosa e como no seu coração se tinham
apagado todos os maus sentimentos por essa mulher, a ventura que a envolvia refletia-se
também em Antônio, que trazia ainda a alma dorida, cheia da sua graça, da sua
beleza, da poesia de uma adoração malograda e longínqua. Às vezes, passava à
porta de Florinda, para melhor ressuscitar a paixão dos dias findos, e
surpreendia-a a cantar à varanda, entre dois filhos louros e tendo os olhos
azuis como os dela. Esta cena enternecia-o e levava-o a ruminar no que, com
Florinda, perdera para sempre. Afastava-se a passos apressados, para que
ninguém notasse a sua perturbação, perto daquela casa em que se refugiara uma
parte do seu próprio ser. De resto, Florinda nem sequer reparava nele, como
outrora, nas límpidas manhãs em que o mundo tinha, para os seus olhos, uma
formosura nova. Parecia tão contente, tão satisfeita, tão sossegada!...
Antônio experimentou a necessidade
imperiosa de aproximar-se mais da mulher que, em certo momento da sua vida
psíquica e moral, resumira as suas supremas ambições — e procurou uma
apresentação, facilmente encontrada, certa noite em que, em casa duma família
das suas relações, havia uma reunião mundana a que Florinda assistia também. E
como a sua beleza de flor nova radiava, entre os nevoeiros das rendas, o brilho
das sedas, a faiscação das joias irizando-se à luz! Estava então em pleno
esplendor da formosura: e, como não ignorava a fascinação que exercia, pela sua
graça, entre os homens, expunha-se voluntariamente às admirações envolventes,
para dominar os que a cortejavam.
Antônio seguia-a insistentemente como
olhar, espiava os seus mais vagos gestos e expressiva mobilidade dos suas
linhas fisionômicas, no secreto intuito de lhe surpreender no rosto o cuidado
duma lembrança mais grata por ele, que tão puramente lhe quisera; mas, se
Florinda recordava o episódio sentimental doutras épocas volvidas, nada, em
todo o caso, deixava transparecer. Parecia por tal modo desinteressada que,
fitando-o, nem sequer mostrou que o conhecia.
— Ah! as mulheres! Que enigmas!... —
monologava. Chamamos-lhes seres de devoção e de sacrifício e, afinal, o que as
caracteriza é uma pontinha de perversidade e de ingratidão pelos mais nobres afetos.
Quando um homem da intimidade da casa de
Florinda lhe apresentou Antônio, que tremia e torcia nervosamente as luvas, foi
com gentileza que ela lhe estendeu a mão — uma linda, magra e branca mão
fulgurante de anéis — dizendo banalmente:
— Muito prazer em conhecê-lo!
Antônio, ao dirigir-se-lhe, ingenuamente
pensava que ela empalideceria um pouco, que não conseguiria esconder o seu
espanto por aquela audácia, que o repreendesse com um olhar mais severo — ou
que o acolhesse então francamente, com uma alegria sem disfarces. Eis, porém,
que o encontro há tanto esperado fora duma naturalidade que o despeitava.
— Eu conhecia vossa excelência a há
muito — tartamudeou, ao ficar só com Florinda. Não se recorda também de mim?...
— Não!... — acudiu com um sorriso indefinível.
E acentuando as palavras
intencionalmente:
— De resto, como vivemos numa cidade
muito pequena, todos nos conhecemos uns aos outros, pelo menos de vista...
Esta zombaria desconcertou Antônio, que
atalhou bruscamente:
— Eu imaginava!...
Florinda deteve-se um minuto a observá-lo,
brincando com o leque indolentemente, e exclamou:
— Não!... Não me recordo, com efeito.
Poderia dizer o contrário, por amabilidade, mas eu não sei mentir...
Antônio, que começava a sentir-se
grotesco, ergueu-se, cumprimentou-a e retirou-se da sala... Já na rua, ia
meditando na singularidade dos sores femininos que parecem trazer a verdade na
boca, que mentem com tanta arte, tanta candura e tanta convicção, e que se
vingam cruelmente.
— Será esta mentira de Florinda,
porventura, a prova dum amor que não quer revelar-se? — preguntava ele, para
lisonjear a sua vaidade melindrada.
Mas, como na sua agitação se julgava
incapaz de análises profundas e de sagazes psicologias, concluiu que o amor era
uma estopada, um absurdo, uma doença de sentimento.
— Por mim, considero -me curado! —
afirmou.
E foi esperar, sob a frialdade da noite,
que Florinda reentrasse na sua vivenda, contente, desdenhosa e feliz, pelo
braço do marido, só para vê-la mais uma vez ainda.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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