6/25/2019

As ditaduras (Conto), de Brito Camacho



As ditaduras
 As oposições vão intensificar o seu combate ao governo por ter violado a Constituição.
(Dos jornais)
Chamava-se Constituição por ter nascido em 29 de abril, aniversário da outorga da Carta pelo sereníssimo duque de Bragança, o Sr. D. Pedro IV. O avô andara nas lutas contra D. Miguel, e andou mais tarde nos movimentos da patuleia, furioso contra os Cabrais, a quem atribuía todas as calamidades da Nação.
Já velho, ainda se abrasava em ódio quando narrava episódios das batalhas em que entrara, sem nunca ser ferido, como se tivessem medo dele as balas. De modo que ao nascer-lhe a neta, num amanhecer fresco de abril, ele notou logo a coincidência, e disse para o filho, apontando a cachopita — há de chamar- se Constituição.
O prior da freguesia, descendente de miguelistas, era ele próprio miguelista, sem rebuço dizendo por toda a parte que o constitucionalismo fora uma das dez pragas do Egito, a pior de todas, que caíra sobre a Nação.
Quando, a lavrar o termo do batismo, na sacristia, preguntou como se havia de chamar a menina, o avô usurpando os direitos do padrinho, respondeu— Constituição.
Serenamente o padre, interrompendo-se, colocou a pena no livro dos assentos, com o bico para fora, e encarando com firmeza o contumaz e impenitente liberal, disse-lhe, quase a soletrar as palavres:
— Este lugar não é próprio, sr. Batista, para se fazer política. A menina não pode chamar-se Constituição, porque nome semelhante não figura no fios sanctorum, e nunca houve santa, que eu saiba, que se chamasse assim.
— Sei muito bem que neste lugar se não deve fazer política, e muito lamentável é que a faça quem menos devia fazê-la — o prior da freguesia. Eu não pretendi ofender o seu miguelismo, e o senhor, negando-se a inscrever a menina com o nome de Constituição, não podendo basear o seu procedimento em qualquer disposição da lei civil ou do direito canônico, sequer ao menos em qualquer provisão vinda de Roma, propositalmente agrava os meus sentimentos liberais, e insulta gratuitamente a memória de quantos morreram nos combates travados contra o usurpador, fanáticos duma religião que o senhor não compreende, a Liberdade, porque lha escurenta o negrume da batina.
— Se em vez de uma menina fosse um menino, com o ataque de brotoeja política que lhe chegou fora de tempo, era capaz de querer que se chamasse Liberal.
— Não, senhor. Se em vez de uma menina fosse um menino, queria que se chamasse Torquemada, para lhe ser agradável. Seria como se na Arvore da Liberdade, se o não ofendo, se fizesse um enxerto de Figueira do Inferno.
Por feliz acaso, encontrava-se ali, na qualidade de convidado, o juiz de direito, homem de uma grande austeridade, por todos respeitado, nunca tendo lavrado uma sentença, condenando ou absolvendo, que a opinião pública não reputasse justa. Era absolutamente neutral em política; seu pai fora soldado de D. Pedro, e um irmão do pai andara nos bandos de D. Miguel. Ele confundia a memória de um e outro no mesmo respeito, porque ambos tinham sido valorosos combatentes, cada um deles honestamente convencido que a sua causa é que era justa.
Sabendo que das palavras facilmente se passa aos atos, e vendo eminente o escândalo de uma cena de pancada, quase nos degraus do altar, o juiz interveio, por todos escutado em silêncio.
— O Sr. padre há de desculpar, mas quer-me parecer que lhe não seria possível justificar perante a autoridade eclesiástica a recusa de fazer o registro nos termos em que se pretende que ele seja feito. A lei permite tudo quanto não proíbe, e não há disposição legal, no profano e no religioso, que proíba registrar- se uma criança com o nome de Constituição.
Calaram estas palavras no ânimo do prior, fazendo-se o registo da menina à vontade do avô.
Filha de gente pobre, teve uma educação abandonada, sempre metida com os rapazes da vizinhança, escondendo-se pelos cantos, aprendendo palavrões, iniciando-se em deboches.
Ainda não era mulher e já conhecia toda a ladainha das vielas, espreitando à porta dos bordeis, numa grande ânsia de curiosidade.
Um dia abandonou o lar paterno e foi viver em casa própria. Cedo perdeu a frescura, aquele viço de mocidade que é uma forma especial da beleza. Entrava um, entrava outro, e com todos ela tinha as mesmas condescendências, a todos prodigalizava os mesmos favores. Era uma baixa clientela a sua — fadistões cadastrados na polícia, souteneurs de profissão, alguns com maneiras de gente fina e susceptibilidades fidalgas.
Na vizinhança toda a gente sabia quem era a Constituição, mas raramente ela aparecia à janela, e quando se apresentava na rua — afetava tais ares de senhora, que nem sombras de escândalo provocava a sua passagem. Nunca a polícia se intrometeu na sua vida, e de uma vez que a chamaram aos tribunais, foi posta a exceção de incompetência, e ela recolheu a sua casa, a continuar o seu fadário. Se fora educada com mais recato, em criança, e a tivessem livrado das más companhias, já mulher, outra seria a sua conduta, que o seu natural, diziam as pessoas que de perto a conheciam, não era vicioso nem era mau. Por isso, e porque na rua afetava ares de senhora, não provocando o menor escândalo, os que a não lamentavam, eram-lhe indiferentes.
Ora sucedeu que uma noite, quando no bairro todos-dormiam a sono solto, e o guarda noturno meditava, encostado a um candeeiro, com a sua lanterna à cinta, de repente ouvem-se gritos aflitivos, desesperados, pedindo socorro — quem acode! quem acode!
Tudo acordou na vizinhança, e muita gente saltou para o meio da rua, em fralda de camisa, supondo que tinha fogo no prédio, embora não visse fumo nem chamas.
Os gritos vinham justamente da casa onde morava a Constituição, um prédio velho, que fora convento de frades, e como o guarda noturno, mais vigilante que a polícia, fosse o primeiro a acudir, foi ele o primeiro a saber do que se tratava. Prendeu o homem contra o qual a Constituição pedia socorro, e a. ela deixou-a em paz. Segurando-o por um braço, dispunha-se a levá-lo para a esquadra mais próxima, a não ser que no caminho encontrasse um guarda a quem o entregasse. O homem não oferecia resistência, e a todos dava a impressão de um cinismo revoltante, calmo depois do crime que praticara... e que ninguém sabia qual fosse. Assediado de perguntas, vendo que o não deixariam caminhar se não desse as informações que lhe pediam, o guarda no- turno explicou:
— Foi este sujeito que violou... que violou aquela menina — disse sacudidamente, apontando a Constituição, que assomara à janela...
O pânico converteu-se em troça, uma destas troças que ficam na memória dos homens, pelas gerações adiante,
— Olha a Constituição violada!... Olha a Constituição violada!
Retiniam as gargalhadas quebrando a serenidade daquela noite luarenta; cruzavam-se no ar os comentários picantes, os ditos apilarados, dum realismo canalha, que faria corar, à luz do dia, um carregador da alfandega, e já o sol assomava na fimbria do horizonte, doirando os pontos altos da cidade, e ainda os habitantes do bairro, os que tinham vindo para a rua aos gritos de socorro, exclamavam uns para os outros, rindo descompassadamente:
— A Constituição violada! Esta nem lembrava ao diabo!...



---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...