As
boas madrinhas
Sentada à lareira, a ingênua velhinha,
de faces engelhadas e os olhos cansados de tanto mundo terem visto, relembra os
tempos suaves da sua infância, os idílios meigos e doces, as ilusões da sua
juventude que uma clara beleza iluminava; e, por um momento, como num mistério
sagrado, as coisas remotas acordam da sombra e ressurgem para a vida. Ela
sorri, enlevada. A sua cabeça, duma inocência ideal e tão branca que dir-se-ia
banhada pelo cândido luar duma noite inteira, desenha-se finamente na meia
tinta do casebre, dando a impressão duma Madona, de Paolo, emergindo, alva como
um lírio, duma fotosfera de ouro ardente...
Nos seus dedos magros canta o fuso e na
sua roca, presa da cinta, quanto linho imaculado! A humilde fiandeira vai
tecendo o bragal duma neta que é noiva e que traz sonhos, como rosas, no coração
namorado. Que os lençóis sejam macios e que as saias cheirem a camoesas, ao
feno dos prados e às altas ervas das várzeas!...
Hoje é velha, mas na mocidade foi muito
formosa. Os seus cabelos fulvos punham-lhe uma auréola sidérea à volta da
fronte juvenil, e os seus olhos, que as lágrimas queimaram e amor- teceram,
pareciam duas violetas. Vai tão longe a sua meninice! Todas as imagens mortas
se perdem num brando e religioso crepúsculo, cheio de nostalgia e de amarga
saudade. Antigamente, nos bailaricos, pelos eirados batidos de lua, as suas
cantigas eram sempre as mais belas, e nas romarias, nos arraiais ruidosos, dava
gosto vê-la dançar, lançando à vibrante aragem das manhãs a sua voz tão pura
como o som dum lúcido cristal que se parte.
O fuso anda num rodopio, fiando as
estrigas alvas. Ela há de vestir a neta, na hora inefável e romântica do seu
noivado, pôr-lhe na capela angélicas flores!...
Com o olhar perdido na fogueira
crepitante, evoca tudo o que foi amado e tudo o que morreu. E o céu fulge de
estrelas como um vergel quimérico e a lua descansa na paz inviolável da noite.
Rodeiam-na os netos, criancinhas pobres, de caras chupadas e sem viço e as mãos
cobertas de chagas. O lume consola-os, aquece-lhes o sangue, toca-lhes as faces
duma cor rosada. A geada cai sobre os telhados que alvejam à claridade lunar e
as pombas adormeceram, arrulhando, nos pombais. A toada festiva dum sino vem de
longe, relembrando um hino do Catolicismo primitivo. É o Natal que chegou. Para
a igreja passam ranchos, cantando à desgarrada, ao gemer das violas; e a
velhinha, parando de fiar, conta o nascimento de Jesus, filho de gente sem
vinha ou rincão de terra, num curral de Belém, sobre as palhas:
— Quando ele veio ao mundo, logo as vaquinhas
o aqueceram com seu bafo morno, porque estava muito frio...
— Como foi isso, avó?... Diga! — pedem
os pequenitos, puxando-lhe pelos braços ressequidos como galhos de árvores que
já tivessem florido e frutificado.
Todos os anos ela diz a lenda
amorosamente crista do louro Nazareno, a fuga da Virgem para o Egito, montada
na burrinha, e São José adiante, abrindo o caminho com seu bordão de açucenas,
através cie sarçais e de montes ermos; mas as crianças gostam de ouvir a
história piedosa dum Jesus como pobrezinho, que alumia de sonho as suas almas
purificadas. E a velhinha começa:
— Ora, havia em terras que ficam no cabo
do mundo, uma mulher sem mácula e sem pecado, que não trazia arrecadas nas
orelhas nem calçado nos pés, casada com um carpinteiro muito bom e que a
tratava com o maior respeito. Ora, estando ela uma tarde, à porta do seu casal,
remendando roupa, desceu do azul um anjo que veio bater as asas de neve perto
do rosto de Maria... Porque ela chamava-se Maria, como tu, minha filha...
E deu um beijo na neta que estava para
casar e que a escutava com enternecimento, talvez orgulhosa de ter o mesmo nome
da bondosa Mãe dos homens.
— Ora, o anjo — continuou ela — veio
anunciar à Virgem que ela daria à luz, em breves tempos, o Redentor, que por
nós derramaria o seu sangue, padeceria muito e seria- crucificado num madeiro.
E logo a Virgem se recolheu e foi dizer a boa nova a São José, que murmurou: “Seja
feita a vontade do Senhor. “ Daí a meses, o Deus Menino nascia e a terra
brilhava tanto que cegava.
Espalhou-se a notícia e nesse ano as
searas deram mais trigo e a chuva não faltou...
A velhinha treme de emoção, estendendo
para o fogo, que sobe até ao telhado, numa língua vertiginosa, as suas mãos
encarquilhadas.
— Quando Jesus veio a este vale de lágrimas,
um astro, desprendendo-se, deixou um rasgão de luz nos céus; e foi esta luz que
guiou os Santos Magos à cabana, onde o Menino dormia, entre a jumentinha e os
bois, o seu primeiro sono.
— E o gado não fazia mal a Jesus?
— Qual? Se era tudo por encanto, tudo
por ordem de Deus!
Outra vez retoma o fuso e reata o fio
quebrado das suas meditações. Também ela teve o seu Natal, também ela! À meia-noite,
de volta do templo com seus dourados góticos, os altares resplandecendo entre
as jarras das rosas frescas, de fumos de incenso toldando as naves silenciosas
e o órgão tocando trechos triunfais de alegria e de glória, a velhinha simples
rezava muito, com unção e fé. Mas o fuso tomba morto no chão, e ela exclama:
— Vocês sabem? A Virgem, que quer muito
aos pequeninos, manda nesta noite as boas madrinhas visitar os casebres e os
berços. Quem deixar os sapatos no calor do borralho, tem nos pela madrugada
atochadinhos de prendas...
— E que prendas são, avó?
— Dinheiro, relógios, comboios... Tu que
queres, João?
— Eu cá, um ror de vinténs.
— E tu, Rosalina?
— Uma boneca muito grande...
— Pois, não se esqueçam. Vocês verão! Há
um minuto de sofrimento entre a ninhada... Eles, coitadinhos, nunca tiveram sapatos.
O pai é cavador e mal ganha para os sustentar com pão duro; e a mãe está
entrevada há anos, a chorar no leito.
— E são precisos sapatos, avó?
— Pois, sem sapatos, não há prendas.
Onde querem que as boas madrinhas as guardem?...
Foram-se deitar, muito tristes. Sapatos,
só os filhos dos ricos os têm, de veludo, bordados a ouro, de arminho, de penas!
Eles nunca os possuíram — nem pelas procissões! E perder tantas riquezas...
Mas, durante o seu sono profundo, um
anjo veio diante deles, trazendo uma palma de luar e ouro nos seus dedos
celestiais, e a cama em que repousavam juncou-se de jasmins e lilases e violetas...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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