As
aparências enganam
Sempre
tivera a paixão das mulheraças, importando-se pouco que fossem bonitas ou
feias. Todos os encantos femininos eram redutíveis, segundo o seu critério e
gosto, a gramas e centímetros. Bem entendido, a mulher comprida, esgalgada,
expressa numa só dimensão, o comprimento, embora lhe chamasse a atenção, não
lhe perturbava os sentidos. O mesmo lhe sucedia com as mulheres baixas e
repolhudas, as madamas estilizadas em abobora, com mais de noventa quilos, peso
limpo.
Era
capaz de correr a cidade inteira, em todas as direções, atrás desses Himalaias
de saias, e por mais de uma vez lhe sucedeu continuar a viagem, em comboio,
muito para além do seu destino, atraído por qualquer Eva de um metro e setenta
e cinco de altura, não levando em conta os saltos, e a largura correspondente.
Era
um fetichismo burlesco, no gênero de muitos outros que andam descritos em
certos livros de medicina e constituem um dos capítulos mais interessantes da psicopatologia
dos sexos, Sobre a maior parte dos outros fetichismos amorosos, que ele nem
conhecia de leitura, jamais tendo prendido a sua atenção a essa ordem de
estudos, este tinha a vantagem de não o sujeitar a percalços graves, sempre a
respeitosa distância das madamas que seguia, a menos que um olhar acariciador caísse
sobre ele, como um convite.
Falava
do Oriente com muito desdém, por causa da pequenez das mulheres, talvez estimáveis
bibelôs, cheios de
frescura e de graça, mas bibelôs em
todo o caso. Lera, algures, que as crianças são mulheres pequeninas, e logo
invertera a máxima, para seu uso, dizendo que as mulheres pequenas são crianças
grandes. Ora as crianças, na sua minusculidade de bonecas, eram indiferentes,
absolutamente indiferentes aos seus apetites amorosos, eminentemente sexuais.
Fosse
como fosse, as mulheraças exerciam sobre ele, bonitas ou feias, uma atração
irresistível, a tal ponto que algumas vezes lhe sucedeu continuar a viagem, em
comboio, muito para além do seu destino, prezo aos encantos de uma Vênus
culatrona, comprida e larga.
Entrou
no baile sem nenhuma intensão de se demorar; mas viu aquela enorme máscara,
dominando a multidão, e ficou talqualmente como um saloio que dando uma topada
numa pedra, encontrasse um tesouro. Tinha um rebolar de ancas como têm geralmente
as varinas, e era de uma elegância tamanha a dançar, que dir-se-ia uma estrela
coreográfica aplaudida e consagrada pelas mais exigentes plateias. Véstia de
Judite de Betúlia, segundo a narrativa bíblica, e ele não se importava de ser o
Olofernes, com tanto que antes de lhe cortar a cabeça, ela se lhe tivesse
entregado sem restrições.
Pôs-se
a segui-la devorando a com os olhos, lamentando-se de não saber dançar, o que
tornaria fácil a abordagem, aliás nunca extremamente difícil num baile de máscaras,
com entradas pagas.
Notou
que ela andava em completa liberdade, dançando com este, dançando com aquele,
conversando com uns, conversando com outros, mas livre como um passarinho na
eira ou como um cabrito na pastagem.
Tanto
fez que ela o notou, demorando se a fitai-o por detrás da máscara, naquele
momento atrelada a um cavalheiro que lhe dava pelo ombro, e era dos homens mais
altos que havia na sala.
Já
perto da meia-noite, vendo-a no bufete, encheu-se de coragem e convidou-a para
cear, se quisesse dar-lhe esse prazer — ali mesmo ou n’um gabinete reservado.
Agradeceu,
fazendo uma reverencia, e voltou para a sala do baile, alta como a Torre dos
Clérigos, ancha como o zimbório da Estrela.
Continuou
a persegui-la, agora com mais insistência, às vezes perdendo-a de vista, no
turbilhão dançante, e então farejando-a como um podengo, no mato, fareja um
coelho.
Passou
revista à carteira, e verificou que tinha bagagem suficiente para empreender
uma batida àquela peça de caça grossa, que certamente não era uma ressurreição
da Lucrécia romana, e a ser uma Imperatriz, seria a famosa Catarina da Rússia,
cantada pelo Bocage.
Nunca
se vira assim enternecido, fascinado por uma mulher, talvez bonita, talvez
feia, o que pouco lhe importava, porque o seu critério de beleza feminina era o
quilo e o metro.
Na
verdade, era uma grande mulher, uma enormíssima mulher, as ancas largas como se
fosse o cavalo de Troia antes de parir todos aqueles guerreiros que lhe atafulhavam
o ventre.
Pediu
a um amigo que fosse dançar com ela, para ele ter um bom pretexto para se
aproximar, entabulando uma conversa que tivesse resultados decisivos.
Assim
foi.
O
amigo retirou-se logo que a conversa pegou, e ele então, mais animado que no
bufete, a ver que as horas iam passando, e o baile acabaria antes do sol fora,
não esteve com grandes cerimônias — propôs-lhe saírem, indo acompanhar à casa.
Houve
a inevitável resistência, começando pelo desdém, vindo a seguir o protesto mais
afetuoso que violento, acabando numa enternecida condescendência, guardadas as
devidas cautelas — mulher casada, com filhos...
Morava
longe, era muito conhecida no Bairro, e aquela hora, já quase dia, algum vizinho
podia estar à porta ou à
janela, ou recolher de uma noitada carnavalesca, encontrando-se na rua, de nada
lhe servindo a máscara.
O
porteiro do hotel, quando os viu entrar, estacou diante d’aquela bisarma de
saias, tendo a impressão de ver na sua frente uma baleia mascarada. Ele então,
radiante, parecendo ainda mais pequenino ao pé daquela mole gigantesca, tinha o
ar babado de um serviçal que a patroa admite na sua intimidade.
—
Haverá quarto?
O
porteiro, já velhote, permitindo-se uma liberdade que, em qualquer outra época,
não teria com o hospede da mais humilde condição, disfarçando um riso velhaco
sob a espessura d um bigode branco pela idade e amarelado pelo cigarro,
respondeu:
—
Quarto ha, com certeza; agora cama que dê a conta...
E
servindo-se dos olhos como de um compasso, mediu-os de alto a baixo, primeiro o
cavalheiro, depois a dama, mal resistindo à tentação de lhes dizer que no Hotel
não havia leito onde pudesse estender-se tão agigantada pessoa sem ficar com as
pernas dependuradas.
Subiram,
e logo ao cimo da escada lhes apareceu um criado, o de vela, perguntando o que
desejavam.
—
Um quarto, se há.
—
Sim senhor, há quarto. É só para dormida?
—
É. Por que faz essa pregunta?
—
É porque o quarto só para dormida paga-se adiantado.
Tirou
dinheiro da carteira e pagou — dando logo gorjeta.
O
criado desapareceu, levando um castiçal na mão; voltou daí a pouco, e
disse para o cavalheiro, muito atencioso:
—
Façam favor acompanhem-me.
Ninguém
soube, ¡amais, o segredo daquele tête-à-tête, mas daí a nada o homenzinho,
deixando no quarto a mulher himalaica e mascarada, saía em pé de vento, murmurando
esta imprecação raivosa:
— Malandro!... Grandíssimo
malandro!
---Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019
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