Exercia a profissão de jornalista em
Pitangui, quando, entre os jornais de permuta, veio um que era novo. Chamava-se
O Contemporâneo:
foi o primeiro que li, pois que nele tudo me agradava — a paginação, o estilo,
anunciando a bela ousadia de um espírito rebelado contra as normas, então muito
carranças da imprensa mineira.
Recordo-me de haver saudado o colega
em entusiástico local, tanto, apreciara a maneira por que ele se apresentou na
lide.
Foi assim que vim a saber da
existência de Artur Lobo, em plena juventude, em pleno sonho de poeta, compondo
os seus primeiros versos na Tebaida onde vivia, a cidade de Sabará, que
inúmeras páginas lhe inspirou.
Conhecemo-nos pessoalmente no Rio:
Artur, imberbe, ar infantil, modestamente trajado, foi dar comigo num distante
arrabalde, em sítio em que dominava o operariado.
Havia ele publicado um folheto intitulado
Ritmos e Rimas, no qual bem claro se
notava a promessa do poeta parnasiano que foi depois. Provinciano desajudado de
padrinhos, Artur passou pela sensaboria de se ver criticado com a ferocidade
característica dos que, àquela quadra, se presumiam os impecáveis da
literatura, no Rio de Janeiro.
O autor magoou-se com a crueldade do
trato, caindo num quase desalento de cuidar mais de letras. Esforcei-me por lhe
levantar o espírito abatido por coisas de nonada.
Tornamo-nos amigos; mantivemos assídua
correspondência juntos trabalhamos em O
Contemporâneo, posto notasse eu não
ser Artur muito agarrado ao jornalismo, pois mais lhe sorria e o encantava a
literatura.
Tentando o gênero difícil que é o
“conto”, logrou láureas com o Escândalo,
vencedor no concurso da Semana, de
que era diretor Valentim Magalhães. Mas Artur não descurava a consciência das
musas, compondo já lindos versos de amor; já formosas rimas de acentuado
indianismo, preparando destarte o seu segundo volume a que deu o título, um
tanto esquisito, de Quermesses. A
esse tempo, mercê da afeição que lhe consagrava, o coronel Rodolfo Abreu, o
nome do poeta mineiro, começava a romper o silêncio que lhe reinara em sendo
publicado versos seus no País, onde
granjeou também as simpatias de Figueiredo Pimentel.
Motivos de ordem intima forçaram o
velho Silva Lobo, progenitor de Artur, e um dos caracteres mais severamente
austeros que tenho conhecido, a transferir residência para a capital da Bahia,
para onde também foi o poeta, que, a esse tempo, unira o seu ao destino do
jovem sabaraense. Naquela cidade, Artur aproveitou lazeres para tanger ainda a
teorba e, reunidas em volume, esses seus versos receberam o nome de Evangelhos.
Regressos da Bahia, foram todos, se
não laboro em engano, morar em Ribeirão Preto. No ano da revolta, em 1893,
Artur Lobo, que desejava imensamente residir no Rio, localidade de sua
predileção, passou uma temporada nessa cidade, contando com a nomeação de um
cargo no Correio; por ocasião da reforma. Era eu então inspetor escolar, e
quase diariamente estávamos juntos. Porque quiséssemos cavar uns cobres,
combinamos escrever uma Mágica. Lemos
vários capítulos da Ilíada, sonhamos
uns mundos fantásticos a que não faltou o monstro de vigor, e escrevemos a Princesa Flor de Abril: a prosa era de
nós ambos, os versos de Artur, uns versos suaves, cristalinos, musicais.
Faltava apenas um “quadro” do terceiro ato, que me cabia escrever, quando Artur
propôs-se a falar a respeito da nossa peça com um ator que, pareceu-lhe não nos
seria infenso visto dever obséquios ao nosso poeta.
Ingênuo amigo! Contava com a gentileza
do artista, quando, tão sabido é que gente do palco timbra, no mais das vezes,
em se esquecer dos favores que nós jornalistas lhes fazemos. O ator, na
importância da popularidade, recebeu o Artur como um ministro recebe um pobre
diabo pretendente: de mau humor, e logo lhe cortou a palavra declarando que,
para a peça ser representada, era preciso tivesse, como autor, um “nome de
cartaz”. Nenhum de nós o tinha...
Sem desanimar, Artur mostrou o nosso
trabalho ao ator Flávio Wandeck que o leu os senões que devíamos corrigir, as
falhas que devíamos suprir e achou a mágica — muito representável.
Como seu irmão Alfredo, também Artur
conhecia música, mas não para se abalançar a compor, e a peça, muito
intercalada de canto, exigia o estro de musicista, que cheguei arranjar, mas
logo com o pedido de certa quantia adiantada. Recuei do propósito.
Em setembro, rebenta a malsinada
revolta. Deveres de família levaram-me a Minas; quando voltei, a capital era
uma caserna infernal e Artur Lobo, tornara, creio-o, a Sabará. Daí a um ano ou
mais, colaborava eu no grande diário paulista (O Município) e Artur Lobo, já em Uberaba, escrevia-me umas cartas
de forte cunho indianista que publiquei na seção “Efêmeras”, a meu cargo.
Artur, entendido em ourivesaria, metera-se a comerciar joias nas suas
excursões, foi dar com os ossos em Barretos, onde encontrou, exilado do mundo,
arredio do Parnaso, transformado em “leguleio”, o primoroso poeta Silvestre de
Lima.
Despojado em 1897 do cargo que
procurei honrar, tive que apelar magistério em Minas e, em junho, parti eu para
Belo Horizonte, assumindo a direção da Capital,
em cujas páginas dei publicidade a um trecho de capítulo do romance Um Escândalo, de feição realista, com
personagens desenhados, à perfeição, tirados de Sabará.
Quando se inaugurou a capital, Artur,
muito contrafeito na sobrecasaca, representou o País; e não houve meio de ele discursar. Vivia triste, metido
consigo, aborrecido. Na noite seguinte, houve passeata; eu tanto fiz, tanto
insisti, que Artur, em plena praça da Liberdade, disse, de improviso, uma
oração que lhe valeu estrondosa salva de palmas.
Estreitava-se a nossa convivência, era
eu assíduo na casa do velho Silva Lobo, palestrávamos muito; e, porque se
tivesse exonerado do cargo de professor de português e literatura da Escola
Normal, cargo que licitara em concurso, Artur, na capital, iniciava nova
profissão: de procurador de partes.
Em 1898, convidei-o para colaborar no Belo Horizonte. Acedeu, e escreveu sob o
título Caricaturas uns perfis, muito
espirituosos dos figurões da época, assinados por Caran d’Ache. Em 1899, fundando o Diário de Minas, o Dr. Mendes Pimentel, que tinha em elevada
cotação o talento do Artur, chamou-o para redator-secretário. Redigia ele a
crônica da semana, a seção Impressões,
estas últimas, com outros artigos que publicou em a Tribuna do Povo, de Uberaba, estão reunidos em um volume póstumo, Lazeres, sendo este o título da seção
por ele mantida no hebdomadário uberabense.
Para o Diário escreveu o esplêndido romance Rosais, moldado pela escola simbolista, que, por intermédio do
conhecido homem de letras Dr. Nelson de Senna, foi traduzido para uma revista
chilena.
Rosais deu largo
nome ao autor.
Comigo escreveu ele uma série de
contos infantis que pretendíamos reunir em volume sob o título de Livro de Zezé. Artur começava a
história, eu terminava: nossos estilos confundiam-se.
Com pronunciada inclinação para a
política, tendo sido francamente silvianista, florianista intransigente,
galardoado com o posto de tenente da Guarda Nacional, Artur, na segunda fase do
Diário de Minas, de que foi redator-gerente
a convite do Sr. Francisco Sales, definiu a sua posição de defensor
situacionista. Ao deixar o cargo de gerente do Diário, foi nomeado para a prefeitura, tendo tido antes bem
afreguesado escritório de procuratórios.
Para a companhia de Soares de Medeiros
escreveu Artur numa revista, em três atos, O
Gregório, música de Ramos de Lima. Foi isto em 1900. No ano seguinte,
embora bastante enfermo, publicou o romance O
Outro, interessante estudo do duplo eu, a revista teatral Volta do Gregório, representada pela
companhia Silva Pinto.
A 25 de setembro desse ano (1901),
expirava Artur Lobo contando trinta e dois anos, pois nascera a 9 de setembro
de 1869, num arraial chamado Coração de Jesus do município de Montes Claros.
Seu pai exerceu o magistério primário
na Bahia e no norte de Minas: foi ele quem ensinou os rudimentos de leitura e
de música a Artur, que, adolescente, estudou humanidades no acreditado colégio
dirigido pelo monsenhor Reis (Ateneu Fluminense), no Rio de Janeiro. Feitos os
reparatórios para o curso de engenharia de minas, matriculou-se na Escola de
Ouro Preto, mas não tardou que se reconhecesse sem inclinação para carreira de
tão positivo estudo, incompatível com os devaneios de poeta, já lhe povoando o
cérebro.
Parnasiano a princípio, simbolista
depois, deixando-se influenciar pelo decadismo, Artur Lobo, no verso e na
prosa, deixou bem nítidas as transformações porque passou o seu espírito que,
como diz o clássico, cedo nele madrugou, como quem adivinhava não demoraria o
anoitecer da existência.
Na história literária de Minas, como
na história da sua imprensa, o nome de Artur Lobo ficou, e exemplifica a
perseverança no trabalho, a fé ardentíssima na carreira das letras. Quanto
deixou, e não quis o destino fosse muito, atesta bem alto o talento do mineiro
nortista sempre afável e risonho, adverso as exigências da moda, imberbe quase,
com sestro de pender ligeiramente a cabeça para um lado, acompanhando a frase
com o gesto expressivo, voz clara, sonora, melancólica no tom grave. Quando ele
morreu, os jornalistas belo-horizontinos propuseram que se lhe erguesse uma
herma no Parque, perto das árvores de que tanto gostava, no seu afeto de
Panteísta... Propuseram só...
Os mortos, nem mesmo deixando traços
bem feridos da sua individualidade neste mundo, são menos esquecidos que os
outros desaparecendo obscuros.
E, para que esta homenagem, sem o
brilho que devera ter, relembre bem a figura do homem que Uberaba conheceu como
professor, como jornalista, como funcionário forense, como político, como
orador, levando-lhe, no momento em que o infortúnio o golpeou cruamente, o
bálsamo de carinhosas consolações, — transcrevo uma das pequeninas cartas que,
na sua letra larga, com os N N
parecendo U U, Artur Lobo dirigia-me
de Uberaba em 1896, mandando a poesia Morte
de Ita.
Assim escrevia:
Meus
sufrágios hoje se alevantam em prol da paz do teu espírito e são meus votos
que, deleitoso e suave, se divise o fio de sua preciosíssima existência, oh
operoso e infatigável apóstolo que evangelizas a Palavra Sagrada entre a
profana multidão dos ímpios e dos incrédulos.
Deste
silencioso e empampanado jirau donde meus olhos contemplam o mirabolante
espetáculo da vida, tão imprevisto e singular como as composições fortuitas de
um caleidoscópio, remeto-te a singela necrologia de Ita, o velho índio vitimado
de marasmo senil, conforme atestou o pajé no registro civil cá da tribo, o
qual, em razão dos hábitos do ofício, deixou de celebrar a morte daquele
venerando e inobliterável ancião na toada épica e grandíloqua que merecia o
infausto passamento de tão lourejado herói.
Reparei
a falta, e reabilitei a memória daquele varão, compondo, às horas mais
sugestivas da tristeza e da saudade, estas lacrimejantes estrofes que digerirás
com aquela paciência e beatitude, tão peculiares aos apóstolos que doutrinam a
hermenêutica da Palavra Sagrada à profana multidão dos ímpios e dos incrédulos.
Que
os sacis não te persigam e Tupã se amerceie de ti.
Oca,
lunação III.
Dixi.
---
AZEVEDO JÚNIOR
Almanach
Uberabense (1909)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Belíssimo documentário sobre Artur Lobo, um poeta de Montes Claros. Um amplexo Dário Teixeira Cotrim - Instituto Histórico de Geográfico de Montes Claros
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