Aromas campesinos
Ao João do Eido, o jornaleiro viúvo
da Engrácia, conhecido em toda a freguesia, morrera-lhe o seu único filho, uma
criança de cinco anos. O pobre homem estalava de dor. O pequenito, já deitado
no caixão forrado de paninho vermelho, com os olhos mal cerrados, parecia olhar
para o pai, que, sentado ao lado, sobre um banco tosco de castanho, o ameigava
com as mãos sujas e calosas, passando-as ao de leve, para o não magoar, por
cima da cara fria do anjinho, que as moscas mordiam desapiedadamente. Vizinhas
entravam com abadas de flores do campo, que lançavam no estreito caixão. Ao
verem a dor muda do pai, represavam as lágrimas, que em grita vinham dispostas a
verter, e, benzendo-se, saíam desconfiadas. Fora iam comentando, acompanhando
de glorias os propósitos que aventavam.
– Ele, no fim, dizia uma, até
é capaz de estimar. Para um homem só, um pequeno daquela idade era até um
empecilho!
– Cruzes, Santo Deus! resmungava
uma velha, a mim é que nunca me enganou. Ainda ninguém o viu chorar! É de pedra,
o homem!
A Rita da Cancela, que vinha
chegando, ao ouvi-las, ralhou:
– Também era melhor que vocês
tratassem de acender o lume ao Sr. João, que há três dias não come coisa
nenhuma.
E entrando:
– Guarde-o Deus. O seu filho
está no céu, ao colo da mãe, a pedir por vossemecê. Vamos, é tratar da vida;
vou acender o lume e fazer-lhe um caldo de azeite.
Da porta chamou a Joana, que
lhe trouxesse umas folhas secas, e fosse pedir à tia Rosa um braçado de couves.
Curvada defronte da lareira,
com as saias entaladas entre as pernas, esgaravatava com um pau, que encontrara
ali, ao lado, as cinzas frias e apagadas.
– É o que eu digo, há três dias
que se não faz lume nesta casa! Deita aí essas folhas, rapariga; dá-me um molho
de cavacos.
– Aqui não há.
– Pois vai buscá-los lá fora.
Acendendo um fósforo por
debaixo das folhas, a casa encheu-se de fumo. Aproximou as pedras denegridas,
que serviam de trempe, e, como a Joana não chegasse, partiu o pau que tinha na
mão em pedaços, cruzando-os sobre as folhas, entre as pedras. A chama principiou
a morder neles, crepitando, e como fossem verdes, a seiva refluía nas
extremidades em gotas, como lágrimas. O fumo escapava-se lentamente por entre
as telhas vãs.
João do Eido, olhando para a
lareira, exclamou:
– Ai, Sra. Rita, que me
queimou a vara do meu rapaz!
– Olhe que lhe devia ser agora
muito precisa; deixe lá.
E às voltas, remexendo tudo
como se estivesse na sua própria casa, principiou a fazer o caldo.
Era uma excelente mulher a
Rita!
Da porta o mulherio anunciava:
– Aí vem o Joaquim do Portelo
com os quatro rapazolas que hão de levar o anjinho.
Minutos depois entrava Joaquim
do Portelo, um homem alto, desempenado, dos seus trinta e alguns anos, forte,
espadaúdo, de suíças ruivas, cortadas rentes; atrás os pequenos, descalços, de
calças de cotim arregaçadas, em mangas de camisa, de cabeças rapadas, segurando
nas mãos as carapuças; com os olhos esbugalhados, medrosos, desconfiados,
arreceando-se de entrar. As mulheres empurravam-os aos encontrões para dentro da
casa.
– Pois compadre, disse o
Joaquim limpando com as costas da mão as bagas de suor, que da testa lhe
escorriam pela cara abaixo, tenho uma má noticia a dar-lhe. Quando ainda agora
fui lá cima à residência buscar estes rapazes e prevenir o Sr. abade que dentro
em pouco lá estaríamos com o anjinho, soube que o meu afilhado não podia ser
enterrado dentro da igreja!
As mulheres, que de bruços
espetavam no corpo inanimado da criancinha morta alfinetes para que uma vez no
céu pedisse a Deus por elas, ergueram aterradas as cabeças e até a própria
Rita,
que nesse momento, segurando o
testo da panela onde fervia o caldo, deitava para dentro uma mancheia de sal,
se voltou espavorida. E todas à uma protestaram contra semelhante sacrilégio!
Só o pai se conservava calado. Joaquim, vendo naquele silencio um sinal de
assentimento, ele que vinha farto de discutir em vão com o abade, aproveitou o
ensejo, acrescentando:
– Calem-se para aí, mulheres. É
como lhes digo. Pelos modos, por essas Europas, anda uma doença má que mata
tudo, e foi o Acipreste por mandado do Sr. arcebispo, mais o regedor, que deram
a ordem. Por agora toda a gente que morrer enterra-se no adro, enquanto a junta
da paróquia não faz um cemitério como o da Vila. Rapazes! agarrem nessas
azelhas e vamos, que se está fazendo tarde. Deixe lá, compadre, e, tomando o
caixão trouxe-o para fora da porta, onde os rapazes lhe pegaram.
As mulheres saíram atrás
praguejando entre dentes. A Rita rezando continuou a sua tarefa. O pobre pai,
como se estivesse pregado no banco de castanho, continuou a enxotar com a mão
as moscas, do cepo, sobre o qual, momentos antes, descansava o filho
estremecido! Lá fora os sinos da igreja principiaram a repicar alegremente.
João, ao ouvir o repicar festivo, levantou-se cambaleando e foi-se à porta onde
se quedou arrimado à ombreira. Alvejava, no cimo do monte, por entre as árvores
copadas, o esguio campanário. O sol, um sol de agosto, enchia de claridades a
encosta, e, numa volta do caminho, João do Eido pôde seguir com a vista, até ao
momento de transpor o portelo da bouça do fidalgo, o triste cortejo que lhe
levava o melhor do seu coração! A vista pregada no portelo, ali se ficou até
que os sinos se calaram. Então voltou-se para dentro da casa, onde nunca mais
brincaria o seu Manuel a cavalo, às correrias, na vara com que a tia Rita tinha
acendido o lume daquele dia! Sobre a banca, dentro duma enorme malga de barro
vidrado enfeitada de arabescos amarelos, fumegava o caldo apetitosamente ao
lado dum enorme naco de broa.
Vorazmente, como um selvagem,
pegou na broa, esfarelou-a dentro do caldo, e, agarrando na tigela com ambas as
mãos principiou a beber como um glutão, a largos tragos. A Sra. Rita triunfante
advertia:
– Repare homem, olhe que se
escalda!
***
Passado um mês, dobravam a
finados os sinos da freguesia. Morrera o do Casilho, o pai do regedor. Na aldeia
perguntava-se com curiosidade se também seria enterrado no adro como o filho do
João do Eido. Era em fins de setembro, estava à porta o São Miguel. Andava tudo
numa grande faina; cortara-se o milho das terras altas, onde agora os gados
pastavam nos restolhos; nas eiras, as raparigas esfolhavam, cantando
alegremente ao desafio; limpavam-se, pintando-se de novo, as grades dos
espigueiros vermelhos; os troncos dos altos choupos esguios vestiam-se de medas
com a palha seca dos milharais; começara-se a vindima; à porta das adegas
concertavam-se e lavavam-se as vasilhas; dependurados nos galhos das árvores,
homens, mulheres e crianças colhiam as uvas deitando-as para dentro dos estreitos
cestos vindimos; os velhos lagares de pedra enchiam-se pouco a pouco. A
natureza e os homens despiam os campos. Só o milho das terras fundas, das
terras lentas, já muito doirado, se conservava ainda de pé, aproveitando os
últimos dias de sol. Ia um rico S. Miguel.
João do Eido, que naquele dia
trabalhava na Juncosa, apenas ouviu tocar a defunto e soube quem era o morto,
largou o trabalho e apressadamente dirigiu-se à igreja, uma légua bem puxada, a
indagar o que havia. Chegado ao cruzeiro viu que da janela da residência o abade
falava para baixo com o próprio regedor, o Sr. Josezinho do Casilho, montado na
égua rabona em que costumava ir às feiras, à vila. Para não ser visto, coseu-se
com o muro do passal e caminhando vagarosamente foi postar-se, à escuta, no
angulo da meia laranja que defronta com os degraus do adro. O abade, com os cotovelos
fincados no peitoril, dizia para baixo, sorvendo uma pitada:
– É que não vejo outra volta a
dar-lhe. Siga o meu conselho, que não vai mal. Vossemecê vai daqui à vila falar
com o Arcipreste e com o administrador. Com ordem deles e com a licença da
fidalga, cá se arranja o resto. As eleições estão
À porta, todos sabem que temos
a freguesia na mão; é que nem sequer lhe põem uma duvida.
– Veremos. Então diga lá, Sr. abade,
no fim de contas o que é que eu hei de dizer?
– Homem, primeiro que tudo,
que morreu seu pai, que lhe mandou fazer um caixão de chumbo, que vai pedir à fidalga
licença para o enterrar na sepultura da casa, é uma sepultura particular, o
povo não tem nada que dizer, e em estando feito o cemitério que faz a
transladação. Depois vai à fidalga, volta a falar no caixão, explica que os
ossos do seu pai se não misturam lá com os dos fidalgos, e está a coisa
arrumada. Vá-se com Deus.
O regedor esporeou a égua e
partiu a galope na direção da vila, repetindo como uma criança o sermão que o abade
lhe ensinara.
João do Eido era a primeira
vez que ali vinha depois da morte do filho. Sabia pelo compadre, que o seu
anjinho se enterrara à porta da igreja, do lado direito. Quis ver a sepultura,
mas faltou-lhe o animo para subir os degraus do adro.
Trepou acima do banco de pedra
que cingia a meia laranja e espreitou por cima do parapeito. Lá estava. A terra
remexida abaulada, cobrira-se de fresca relva, viçosa.
Fitando com ternura aqueles
poucos palmos de terra, o seu coração descobria, através do pequeno tapete
esmeraldino, o querido filho da sua alma, sorrindo meigamente como no dia em
que o compadre Joaquim lho fora buscar a casa para nunca mais voltar! E parecia-lhe
que de dentro da igreja, fechada àquela hora, saía a voz de Inácia, que em choro,
suplicante, lhe pedia que lhe levasse lá para dentro o filho tão amado! Alucinado,
saltou abaixo do banco e a correr encaminhou-se para casa da fidalga, que foi
encontrar no jardim, rodeada de criadas, a encher de flores as jarras da capela.
Confusamente explicou-lhe o que ali o trazia.
Vinha pedir-lhe licença para
que o do Casilho, a quem tinham feito um caixão de chumbo, e insistia nesta
particularidade, fosse enterrado na sepultura da casa.
– Então, perguntou a fidalga,
é do mando do regedor que cá vieste?!
Confessou que não; mas que,
sabendo que o regedor lhe vinha fazer aquele pedido ele viera primeiro e lhe
pedia muito, e erguia as mãos em ar de suplica, que a fidalga consentisse.
– Olha, João, disse a velha
fidalga suspirando, hoje a lei é igual para todos; e quando eu morrer, de nada
me servirá ter lá em cima a sepultura onde estão os fidalgos desta casa, Deus
lhe fale n'alma.
– Mas o Sr. abade... e, como
se sentisse no pátio o tropear dum cavalo acompanhado dos latidos dos cães, concluiu:
há de ser o Sr. Josezinho; ele explicará melhor do que eu.
– Vai dizer-lhe que estou
aqui.
O José de Castilho explicou
tanto e tão bem a sua petição, que a boa da fidalga acedeu facilmente ao
pedido, pensando talvez que um dia, apesar da dureza das leis, lhe consentiriam
que o seu frio corpo gelado fosse descansar ao lado daqueles que mais amara na
vida!
***
O dia seguinte amanheceu
sombrio e carregado. O sol subia no horizonte, escondido por densas nuvens
pesadas, que se acastelavam na atmosfera. O galo da torre andava num rodopio
sem saber para que lado se havia de voltar. As folhas secas, desprendendo-se
das árvores, subiam em espirais envoltas em poeira. Para as bandas do sul
desenrolava-se uma comprida fita escura. Os tons verdes dos pinheiros, dos
castanheiros, sobreiros e choupos, sem sol que os fizesse ressaltar,
confundiam-se tristemente esbatendo-se nas encostas cobertas de giestas. Somente
a flor amarela dos matos quebrava nas bouças a melancolia da paisagem.
O ofício tinha sido demorado.
Juntaram-se os padres de todas as freguesias em redor. João do Eido, ao entrar
na igreja, pousara a enxada ao lado do desengonçado guarda-vento e
encostando-se à pia assistiu impassível à longa cerimônia. Findo o enterro os
padres conversando, tiravam as suas vestes, na sacristia. Pouco a pouco vinham
saindo, com as batinas embrulhadas em trouxas, em grandes lenços vermelhos, metidas
debaixo dos braços, e segurando na mão os pesados guarda-chuvas e as velas de cera
que além da meia coroa, cada um acabava de ganhar com o seu fanhoso latim. João
contava-os um a um. Quando o último saiu, dirigiu-se à sacristia, onde o abade,
debruçado ainda sobre o arcaz, com os óculos acavalados no nariz, lançava no
livro dos óbitos o nome de Francisco do Casilho. A igreja despejara-se; apenas
o sacristão levantava de cima da eça o velho pano preto muito pingado de cera.
O abade, acabando de escrever e limpando a pena às abas da batina, perguntou:
– Que há de novo?
– Há, Sr. abade, gaguejou o
João muito pálido, que eu venho pedir a vossa senhoria, que mande enterrar o
meu filho dentro da igreja.
– Endoideceste! há mais dum
mês que ele se enterrou! Perdeste a cabeça!
– Oh! Sr. abade, pois o meu
filho, um anjinho, sem pecados, há de ficar como um cão fora da igreja, e o do
Casilho, Deus lhe perdoe, um pecador como todos nós, há de ser mais que um inocente?
– Homem, vai com Deus,
decididamente não estás em teu juízo. O teu filho a esta hora está podre, comido
dos bichos, percebes? Se lhe mexesse era uma peste que aí se levantava. Podre,
ouviste? E, levando o lenço ao nariz, como se já lhe cheirasse mal, saiu da sacristia.
Ao meio da igreja, voltou-se para o altar do Santíssimo e ajoelhou um momento.
Da porta recomendou ao sacristão:
– Que, depois de arrumar tudo
muito bem, fechasse a igreja e lhe levasse com as chaves os livros que tinha
deixado em cima do arcaz.
Fora, caia a chuva em grossas
gotas. A porta da residência estrondeou com força; era o abade que entrava.
João, resolutamente, foi-se ao guarda-vento, pegou na enxada, e, muito
serenamente, como se fosse fazer a coisa mais simples deste mundo, participou
ao sacristão que ia enterrar o filho na igreja.
– Cruzes, canhoto! Não que eu
ouvi o Sr. abade. Vou já dizer-lho.
João recuou um passo, passou a
enxada para o lado direito, estendendo-a a todo o comprimento do cabo, que
segurava com ambas as mãos, e ameaçador, com a cara completamente transformada,
os olhos pregados no sacrário, defronte do qual ardia escassamente a luz da lâmpada
de cobre, mordida pelo verdete, bramiu como uma fera:
– Tão certo como estar ali
nosso Pai, se dás um passo, escacho-te de meio a meio! E muito tranquilo,
debruçou-se sobre uma sepultura, arrancou-lhe a tampa, e depois, de pé, com a
sua enxada, principiou a abrir a cova. O sacristão, tremendo como varas verdes,
olhava aterrado para ele. Sabia que era homem decidido; e, naquele momento,
lembrava-se de o ter visto um dia, havia muito tempo, quando conversava a Engrácia,
varrer a feira na vila, com o seu varapau ferrado, só porque uns estúrdios lhe
tinham dirigido umas graçolas pesadas. João do Eido, todo entregue à sua faina,
nem sequer reparava nele. Feita a cova, endireitou-se, e no cabo da enxada, encostado
à perna, marcou um palmo acima do joelho, a altura do seu Manuel!
Curvando-se de novo, ajustou a
medida. Estava exata. Ao dirigir-se para fora, reparando no sacristão,
repetiu-lhe:
– Se tentas sair, estendo-te à
porta como um tordo.
Deixara de chover; o sol iluminava
alegremente o vale; as gotas da chuva faiscavam nas folhas das árvores; os
melros esvoaçando nos silvados, assobiavam contentes, e lá do fundo das eiras,
subiam repetindo-se num eco distante, as cantigas afinadas das raparigas do
campo. Com muito cuidado, como se descobrisse um tesouro encantado, João do
Eido desenterrava o filho. Descoberto o caixão esfarrapado, lançou-se de gatas,
tirando com as mãos a terra que o prendia dos lados. Quis abri-lo; mas não teve
animo. Pegou no caixão, que se desconjuntava, achegando-o contra o peito, e
entrou na igreja muito curvado, com a cabeça quase encostada a ele.
Ajoelhando-se à beira da sepultura que abrira, depositou nela o seu tesouro.
Com as mãos encheu a sepultura de terra, depois puxou a tampa assentando-a levemente
com meiguice e ali se deixou ficar de rastos a chorar!
O sacristão, que ao vê-lo
entrar sufocara um grito de pavor, encontrava agora animo de ir avisar o Sr. abade.
De vagar, pé ante pé, saiu da igreja recuando. Instantes depois entrava o abade.
Vinha apoplético, raivoso, disposto a fazer ir tudo pelo ar; mas ao ver aquele
homem rude, soluçando sentidamente, de rojo sobre a campa do filho que ele próprio
enterrara, sentiu um grande abalo e pareceu-lhe que do altar a imagem de Nossa
Senhora das Dores, traspassada de espadas, chorava realmente com os olhos fitos
em tão desventurado pai! Acercou-se dele; e, pousando-lhe amoravelmente a mão
sobre o ombro, disse comovido:
– Então, Sr. João, então!
João do Eido, agarrando-se-lhe
às pernas, como quem implora perdão, exclamou:
– Ai! Sr. abade! até cheirava
bem!
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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