6/30/2019

Aquela família... (Conto), de Ladislau Patrício


Aquela família...
A princípio eu ia só, numa carruagem de segunda, o que me permitia desfrutar o panorama e gozar uma relativa comodidade. Mas mais adiante, numa estação qualquer, mal o comboio parou, a portinhola abriu-se e o meu compartimento foi invadido de assalto por uma família inteira que atravancava tudo: redes, bancos, o menor espaço disponível, com malas, embrulhos e cestinhos, — uma infinidade de volumes!
O chefe do rancho era um homem nédio, sanguíneo, que rebocava uma senhora pesada (onde eu adivinhei a esposa) e mais duas raparigas e um garoto, de marinheiro, magrinho, linfático e triste.
Auxiliei-os. Fiz menção de ajudar as damas a subir. E quando a máquina apitou e o trem se pôs em marcha com um ranger de molas e de engates, ainda nós todos dispúnhamos a bagagem amontoada nas proporções dum Himalaia.
Agradeceram, muito penhorados; e depois de instalados convenientemente, o dono de tudo aquilo, que limpava com um lenço enorme as bagas de suor, pediu-me licença para tirar o casaco e envergar o guarda-pó.
— Parece que estamos no Congo! justificou. Este calor está mesmo a exigir tanga...
Eu sorri, relanceando um olhar às donzelas, que sorriram também, ruborizadas, daquela ideia africana do papá. E este, farejando em mim uma índole comunicativa, inquiriu satisfeito:
— O cavalheiro vem de Lisboa?
— Não senhor. Eu sou da Beira.
— Da Beira!... Então é de Viseu?
Sorri de novo, discretamente, respeitando as noções coreográficas do viajante simplório, que o acaso colocara assim na minha presença.
Apressei-me por isso a confirmar:
— Sou de Viseu...
— Nesse caso conhece lá o Gastão?
— O Gastão?!
— Sim, o Gastão Vieira, dos Impostos.
Achei divertido conhecer o Gastão. Recordei-me:
— Ora se conheço! Estou doido! Conheço perfeitamente...
Mas depressa caí em mim, refleti que podia ser colhido na mentira. Foi, portanto, para eximir-me a perguntas que ferviam já nos lábios do companheiro que eu perguntei do meu lado:
— E vossa excelência? Vossa excelência é daqui destes sítios?
— Sim senhor. Mas agora vamos para banhos. Isto que o Sr. aqui vê (com um gesto circular indicava a família) pertence-me. O rapaz é fraquito, tem escrófulas (apontava o pescoço do fedelho) olhe! — Dizia-me o Dr. Maia... Conhece?
Declarei que não.
— Pois admira... Espere, agora me lembro: deve conhecer. Ele até costuma ir muito a Viseu. É irmão do padre Levi, Levi da Maia, duma família muito ilustre que tem uma irmã viscondessa. O Sr. conhece com certeza...
E como eu insistisse na negativa:
— O padre Levi, homem! o que escreve no Vouga... Não conhece o senhor outra coisa!
Tive de lhe dizer que sim.
Havia-me insinuado já no ânimo duma das meninas com quem entretinha desde a última estação um namoro matreiro: e apontava-lhe como flechas os olhos amorudos, dardejando-me ela os seus, redondinhos, negros, sertanejos...
— Pois o Dr. Maia, — tornava o pai— dizia-me muita vez: "Alves, leve você o rapaz ao mar; leve você o rapaz ao mar que se cura."— Mas ó doutor, veja lá, tenho agora tantos afazeres (e tinha) se o rapaz fosse coisa que se pudesse aí endireitar, que demônio, tomando umas drogas..."— Não, não, sem banhos não se põe direito."— Que havia eu de fazer? Que fazia o senhor nas minhas condições?
Esperou resposta; e como lha não desse:
— Saía, não é verdade?
— Pois claro!
— Foi o que eu fiz. Mando arranjar as malas, tranco a porta, meto toda esta tropa no comboio... e cá vamos!
— Faz muito bem.
— Acha?... — pousava a sua mão sapuda na minha coxa, todo familiar. — Acha então o cavalheiro que faço bem?...
— Mas isso nem se pergunta! aplaudi sem reservas. — Mesmo que não houvesse precisão, que infelizmente há; bastava só a ideia de irem gozar!
— Gozar! Mas olhe que se gasta um dinheirão!
— Pois gasta. E isso que tem? A gente não vive só do que mete no estômago. É preciso ver, dar de comer aos olhos.
— Dar de comer a quê?
— Aos olhos...
— Huum! mugiu.
Não percebera. Suava com o calor, nas fontes, nas bochechas, mormente nos refegos do cachaço, duma grande riqueza de tecidos celulares...
Entrou depois a divagar sobre economias expondo-me numa franqueza saloia o orçamento da viagem; e tentou por último explicar pela hereditariedade a compleição mórbida do filho:
— Isto é de família! O avô dele, meu pai, também assim era: sempre doente, sempre com remédios. Mas a avó, é curioso! robusta, corada, parecendo que vendia saúde... Eu, aonde me vê, nunca tive uma dor de cabeça! Mas já um tio que nos morreu há três anos... — Voltou-se para uma das filhas: — O tio Aristides...
— Ah!
E relatou o que era esse tio, com os seus achaques, suas mazelas, seus unguentos e seus tumores supurativos, em salvo lugar...
Alves dispunha-se em suma a fazer-me seguir todas as ramificações patológicas da sua ascendência! Passei a não lhe responder, dizendo-lhe a tudo que sim, com a cabeça.
E a rapariga, de lá, muito meiga...
No meio desta felicidade, porém, a certa altura — na altura de Ovar — passou-se um episódio triste, de que fui vítima, o qual produziu profundo desgosto em todos nós. Fora o caso que, sobranceira ao meu lugar, ia uma cesta; senão quando, aí se põe ela a mijar sobre mim, no meu chapéu mole, qualquer gorduroso líquido em fio... Ergo-me dum pulo. Houve um alvoroço no compartimento. Alves gritou: "oh, demônio! oh, demônio!"
Entretanto alguém explicava que tinha sido o molho do peixe que se entornara...
O molho do peixe!
Eu tinha então já tirado o meu chapéu e olhava desolado a nódoa negra, enorme, que alastrava, se embebia no feltro da aba, inutilizando-o sem remédio!
Coro de lamentações e desculpas:
— Ora esta!
— Uma assim!
— Só a nós é que acontece...
E de coração alanceado, com ânsias de espancar aquela gente bárbara, eu ainda ganhei forças para lhes dizer:
— Não faz mal; não se incomodem. Até tem graça! Pelo amor de Deus!...
Ocorreu todavia aqui uma coisa galante que me cativou: essa das duas meninas que me havia já endoidado o coração, num movimento impulsivo e no mais aceso da balbúrdia que se estabelecera, tira do seio o lencinho de assoar e veio enxugar com ele a nódoa indelével.
Esquivei-me desvanecido:
— Oh, minha senhora...
E com o lenço enrolado à laia de esponja, ela ia chupando, chupando...
— Se calhar era novo... — disse-me, a meia-voz.
Respondi:
— Era novo.
— E bom?
Fiz um gesto de grandeza:
— Dezoito tostões!
Alves voltou-se espantado para a esposa, que segredou a importância a outra filha, a quem o irmãosito — que viera à janela do vagão a ver a máquina — pedia choramingando e arregalando um dos olhos que lhe tirasse um algueiro...
Daí a momentos o comboio parava:
— Espinho!
Era a estação onde eles se apeavam. Alves foi o primeiro a levantar-se; tirou a carteira e entregando-me um bilhete ofereceu-me os seus "fracos préstimos", pedindo mais uma vez desculpa do desastre. As senhoras cumprimentaram igualmente e quiseram também que eu as desculpasse. Eu desculpei-as. E a mãozinha da minha efêmera namorada, ao despedir-se, tremia como um passarinho, quando lha apertei numa pressão significativa. Segui-a com a vista até desaparecer pela porta da estação; e numa derradeira vez que ela se voltou a olhar-me, não sei, mas ia jurar que lhe vi lágrimas...
Encostei-me então a um canto, sorumbático, a fumar. O meu espírito oscilava como um pêndulo entre a suave lembrança daquela trigueira (eu ainda lhes não disse que ela era trigueira) e a ideia negra do meu chapéu manchado. Ambos perdidos já agora para mim! ambos, pela força do Destino! Pela distância que ia separar-me dela para não mais talvez a tornar a ver; pela mácula que dele me apartava para nunca mais porventura o poder usar!
Encarava eu filosoficamente a situação por este lado, quando à janela do compartimento assomou de novo o focinho do Alves, a farejar-me, a dizer:
— Vossa excelência faz-me um obséquio? Não se esquece, quando regressar a Viseu, de me recomendar muito ao meu amigo Gastão. Eu, também, quando lhe escrever, hei de falar muito de vossa excelência e da simpatia que nos inspirou a todos. Criado de vossa excelência...
Ouviram-se os sinais da partida. Estendemos as mãos cordialmente; e ao pôr-se o comboio em andamento, Alves, com a minha destra apertada, lembrou:
— Ah! E que lá recebi as peras... Diga-lhe também isso, sim? Deliciosas! Deliciosas!
Corria junto da carruagem, ao longo da gare, gritando ainda a plenos pulmões:
— Deliciosas!


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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