Antônio Fraldão
(A Columbano Bordalo Pinheiro)
Noite
velha, saía o Antônio Fraldão de casa da Alonsa, quando viu, a curta distância,
escoar-se um vulto que parecia de gente.
O
Fraldão saía à esconsa e por isso não se afirmou; – mas ainda que se afirmasse,
provavelmente não conhecia quem era, pois já não havia luar àquela hora, e as
estrelas, ao alto, esmoreciam. Demais, os dois seguiram em sentido contrário;
ele a meter-se em casa, e o outro, se era gente, direito à cova dos
castanheiros, onde se internaria na treva densa.
Aquilo,
a princípio, não deu que pensar ao Fraldão; – mas ao chegar a casa pouco
depois, no extremo oposto da pequena aldeia, já com a mão na aldraba da porta,
suspeitou:
–
Ora quem seria o melro?! Se teremos história?!...
Ainda
lhe vieram, num ímpeto, ganas de voltar atrás, de farejar o rasto até dar com o
vulto, algures, e de o obrigar, se fosse embuçado, a mostrar a cara. Mas
presumindo que já o não encontrava, e nada suspeitoso, ainda, dos beijos da
Alonsa e das suas juras, abriu a porta e foi-se para a cama – embora, lá no
íntimo, arreliado...
Quando
depois acendia a candeia, ao pé do catre, reparou que a mão lhe tremia; – e
deitando-se, não havia maneira de pegar no sono, às voltas debaixo da manta.
–
...Está bonito, está! E esta?!
A
mãe, que ficava num quarto contíguo, separado apenas por um tabique, ainda lhe
perguntou de lá se estava doente, ou que é que tinha. Mas ele, respondendo que
não tinha nada, parece que até na sua ouviu a voz da mentira, – e se mal estava
pior ficou.
Agora,
umas guinadas de impaciência picavam-no todo até à alma, e entrou, pouco a
pouco, a cismar se seriam ciúmes...
–
Ciúmes! – admirava-se ele. – Mas ciúmes de quem?
Considerando,
aquilo não passava talvez de uma curiosidade, talvez de uma simples suspeita –
curiosidade de conhecer o vulto, suspeita de ter sido conhecido, ele...
Mas
logo a seguir tranquilizava-se:
–
Agora! Tanto como eu o conheci também! E quem sabe até se não seria algum
lobo... – aventava o Fraldão a ver se dormia.
Mas
não dormia; e no quarto ao lado, aflita, a mãe pegava-se já a Nossa Senhora: –
“Ave-Maria, cheia sois de graça, o Senhor é convosco..."
–
Bem digo eu! – arriscou-se a viúva a dizer outra vez. – Ora queira Deus, Antônio;
queira Deus e Deus o queira, que te não deem pela cabeça estas noitadas...
–
Isso! – replicou o rapaz. – Agoure-me vossemecê agora, inda por cima!
Um
galo cantou a distância, nalguma capoeira.
–
Ouve, minha mãe? Deixe-me vossemecê dormir, que já cantam os galos.
Mas
espantara-lhe o sono o cuidado que entrara com ele, – nem sabia de quê; e
embora de olhos cerrados, e imóvel p'r amor da mãe, as ideias, agora,
tomavam-lhe certo rumo, já fixo. – Aquilo com a Alonsa era ainda de fresco, e
namoros, pelo visto, a rapariga não tinha nenhum.
Ela
mesmo lho havia jurado pouco antes mais uma vez, – e que tirante aquele que a
perdera, e que depois a botara ao desprezo, não conhecera mais homem nenhum –
nem queria. Boa moça, vivendo à jeira do seu trabalho, sozinha, parecia com
efeito que gostava dele, a pobre da rapariga; – e de uma vez que lhe tinha
falado em se casarem, fitou nele os seus grandes olhos negros, marejados de
lágrimas, e com a cabeça disse-lhe que não.
–
Não?! Mas se eu quiser? – perguntara ele.
–
Não! Tu tens tua mãe.
–
Mas minha mãe...
–
Tua mãe precisa de ti.
E
abraçando-se a ele e apertando-o, agora a chorar com alma, entregara-se-lhe
dizendo assim:
–
Deixa lá!
Gostava
da rapariga desde então, só por isso; – e procurando-a de noite, às escondidas,
era mais por lhe fazer a vontade a ela para que a publicidade dessas relações o
não desairasse, do que por envolver estas em um mistério, que, por não ter de
que se envergonhar, até lhe pesava! Casaria com ela, decerto, quando a demovesse
ao casamento; – e essa objeção da mãe, com que ela, coitada, lhe viera mais uma
vez ainda essa noite, a própria mãe acabava de o desfazer lá do seu cubículo, dizendo-lhe quando já luzia o buraco, e ao
tempo a que todos os galos da vizinhança tagarelavam de longe uns com os
outros:
–
Olha, Antônio! Se esses cuidados são o que eu penso...
Deteve-se...
–
Que tem? – provocara o rapaz o resto da frase.
–
Que tem?!... O melhor é casares-te!
Não
respondeu.
***
Nesse
mesmo dia, depois de cear com a mãe o caldo das versas, o Antônio Fraldão
deu-lhe as boas-noites, pegou no chapéu e ia a sair...
–
Não te era melhor ires-te p'r' a cama, Antônio?! – perguntou a viúva.
–
Eu não me demoro, minha mãe. Deite-se vossemecê, que eu venho já.
Dirigia-se
para a porta, mas a mãe ainda o admoestou que tivesse cuidado, – que os perigos
donde quer surdiam...
–
Não tem dúvida, minha mãe. Não se aflija.
E
cerrando a porta atrás de si, achou-se, de repente, na rua escura. No céu,
muito alto, luziam estrelas em cardumes, e não havia lua; e nas casas vizinhas,
janelas e portas estavam fechadas, e a aldeia, prestes a adormecer, parecia
deserta. Ladravam cães aqui e além, disseminados, de guarda às curraladas; e só
das bandas do campo, embalando o dormir da paisagem, um ruído atenuado e doce,
que era, àquela hora, a fusão do canto dos ralos, dos grilos e das cigarras,
vinha, difuso, embriagar de sonho o silêncio das coisas...
Sublinhadas
de luz, uma agora, outra logo, raras portas no interior da aldeia; e na taberna
do Grincho, entreaberta, sob a fumaceira dos cigarros, que ondulava no ar como
um nevoeiro, a mesa do jogo rodeada de gente.
Cortara
a aldeia toda o Antônio Fraldão, sem ser visto; e quando chegou à casa da
Alonsa, a rapariga, que já o esperava fisgando a rua por uma frincha, abriu-lhe
a porta e cerrou-a logo:
–
Valha-me Deus, Antônio! Tenho tanto medo que te veja alguém!
–
E eu nenhum! Tem de se saber: pouco me importa!
E
já defronte da rapariga, ajeitando-lhe o rosto para lhe ver os olhos,
perguntou- -lhe se estava triste.
–
Não... Triste por quê?!...
–
Estás, isso estás!
–
É modo meu, não estou...
Mas
aos olhos da Alonsa, a desmenti-la, afloraram logo duas grandes lágrimas.
–
Vês?! – tornou o Fraldão. – Bem digo eu! Estás a chorar. Eu não gosto de te ver
chorar.
–
Não! Pois não! – anuía ela enxugando os olhos. – Já não choro. Mas esta minha
vida...
Sentou-a
numa arca de pinho que havia ao pé; sentou-se ao lado dela; tomou-lhe as mãos.
–
Mas anda cá, vem cá, sossega! – suplicava o rapaz. – Mas essa tua vida que é
que tem?
–
Ora!
–
Ora quê, sossega!
–
Ao menos enquanto ando por lá, quer chova, quer neve, até parece que alivio
penas! Respirou muito fundo, mordeu o beiço para reprimir as lágrimas.
–
Deixa lá, já te disse, não te aflijas! – continuava o Antônio. – De hora a hora
Deus melhora.
–
Sim, sim... Mas o que lá vai...
Desdenhava
o Fraldão, para a animar:
–
Ora, o que lá vai! O que lá vai, lá vai! O que lá vai dei-xá-lo ir! E
fitando-a, a rir-se:
–
És tu minha amiga?
–
Sou.
–
Muito?
–
Muito. Não posso ser mais.
Mas
aqui, sem querer, veio-lhe outro hausto; e escondendo a cara no avental, como
envergonhada, entrou a chorar convulsamente.
–
Maria, então?! Isso que é?! – procurava reprimi-la o rapaz. – Ouve! Escuta!
Olha que eu zango-me!
–
Não! Não! – repetiu ela com haustos.
–
Sim! Mas sim! Ouve! O que tu queres dizer bem sei eu...
Rogava-lhe
a Alonsa que se calasse, adivinhando no que lhe ia falar.
–
Não, não, Antônio! Tem piedade!
–
Sim! Hei de dizer! O outro!...
–
Por alma de teu pai, Antônio! – suplicava a Alonsa pondo as mãos.
–
O outro, sim! O outro! – recalcava o Fraldão. – Mas queres então que te diga?
–
Oh, não, não! Cala-te!
–
Sim! Hei de dizer! Vou dizer: – Tanto como ele valho eu agora!
Ela
repeliu o avental, espantada:
–
Tu?!
–
Sim! Eu! Inda menos!
–
Oh, Antônio! – exclamou a Alonsa pondo as mãos. – Não digas isso, que pecas!
Mas ele, como a cravar-se um punhal, insistiu:
–
Esse enganou-te, não é verdade? Disse que se casava contigo e não se casou!
Mas eu...
–
Mas tu...?! – provocou a rapariga sem perceber. O Fraldão desfechou:
–
Eu... Foi um empurrão que te dei p’r’ a desgraça, arredando-te dele!
–
Mas se foi ele que não quis casar, Antônio! – objetou desvairada a rapariga.
–
Foi! Mas agora, mulher de dois, mulher de cem! Deixasse-te eu estar como
estavas, que o desonrado não eras tu!
Percebera,
a Alonsa! E caiu num grande marasmo, que assustou o rapaz.
Para
a reanimar, o Fraldão ameigou a voz e atraiu-a para ele:
–
Ora mas anda cá! Vem cá! Não te aflijas! Vais-me falar então toda a verdade,
prometes?!
Ela
não respondeu, absorta...
–
Prometes – disse por ela o Fraldão. – Olha então bem p’ra mim.
–
Responde! Tu inda gostas dele?! Chisparam-lhe de ira os olhos acesos:
–
Eu?!
–
Então anda cá! Vem cá! – ameigou-a o Antônio. – Pois se já tu vês que fui pior
do que ele...
–
Ó Antônio!
–
...Perdoas-me?!...
–
Perdoo!
–
E casas-te comigo?
–
Não! Isso não!
–
Mas eu perdão só quero esse!
–
Deixá-lo!
–
Deixá-lo por quê?!
Desdenhando
de si, a rapariga ergueu os ombros.
–
Inda o perguntas, Antônio!
Mas
nisto, parece que no silêncio da rua, perto da porta, ouviram-se passos...
–
Escuta... – disse o Fraldão.
–
Não é ninguém! – conteve-o a Alonsa sobressaltada.
Mas
o Fraldão, desconfiado, ficou em brasas, – lembrado do vulto da véspera.
Desviou-se,
mediu-a. Agarrando-lhe os pulsos interpelou-a:
–
Ouves?! Tu enganas-me!
Caiu
de rojo a rapariga, fulminada:
–
Por alma de minha mãe, Antônio! Mas ele repeliu o juramento:
–
Não! Só dizendo que sim ao que te vou perguntar: – Casas-te comigo?
–
Caso! – respondeu ela com energia.
Levantou-a
num ímpeto o Fraldão, apertou-a contra o peito, despediu-se; – e carregando o
chapéu até aos sobrolhos, apagada a luz por precaução, desandou a chave e saiu
para a rua.
Cantavam
os galos... Em casa, sentada ao lume quase apagado, a mãe de Fraldão desfiava o
rosário, – rogando pelo filho a Nossa Senhora: – "Ave-Maria, cheia sois de
graça, o Senhor é convosco..."
***
Já
no escuro, cá fora, o Fraldão pôs-se a farejar como se fosse um lobo. – Sentira
passos, não se enganava, e era o vulto da outra noite, com toda a certeza! Mas
agora, rondando com o olhar à volta dele, – na treva imóvel e silenciosa,
debaixo do céu melancólico onde as últimas estrelas já feneciam, nenhum vulto,
nenhum ruído, lhe feriam a atenção. Contudo, esse ar frio que respirava, ia
jurar que um hálito inimigo o empestava – de alguém por ali escondido,
algures... Mas um exame atento e perscrutador, do ouvido principalmente, não
lhe dava nada, e os olhos, inquietos em todas as direções, como os dos lobos
quando têm fome, continuavam a receber do escuro a mesma impressão de vazio –
que o afligia e o exasperava!
–
Ah cão! – regougava o rapaz. – Não te encontrar eu, que te comia os fígados! –
Oh, mas havia de encontrá-lo! Fosse como fosse! Fosse onde fosse! No inferno!
Sete braças abaixo do chão! Havia de topá-lo! Era o vulto da outra noite, não
tinha que ver! – Era malandro que o espreitava!
–
Pois a cova tenhas tu onde pões os pés, ladrão! Não se abrir a terra que te
comesse, grande malvado!
E
ao mesmo tempo que se não queria arredar para longe, e sondava o escuro, com
pertinácia, na direção da casa da Alonsa, vinham-lhe ganas de procurar mais lá,
mais ao largo,
por todas as bandas, de não deixar
polegada que não perscrutasse, – de mexer e remexer com as unhas, sendo
preciso, a própria terra onde tinha os pés!
–
Cão do diabo! Cão tinhoso! Tão longe estejas tu do inferno, como estás de mim,
– ladrão!
Agora,
como os olhos se lhe iam habituando ao escuro, a exploração corria melhor; – e
porque conhecia o terreno como as suas mãos, e caminhava por isso com
segurança, procurou, sondou, farejou, – até se convencer que não havia ninguém.
–
Sumiu-se! Um raio venha que o parta! Não dou com ele! Mas de repente deu-lhe um
palpite:
–
Tate! Fugiu-me p’r’ a cova! Detrás dalgum castanheiro é que eu o topo!
E
largando para lá como uma bala, pouco tardou que não lobrigasse um vulto que
fugia, –
e sentiu-lhe ainda o trupido dos pés.
–
Eh cão! É agora! Já me não escapas, malandro!
Mas
na dianteira que lhe levava o outro, de mais a mais correndo em declive, no mesmo
instante perdeu-o de vista, – sumido, como que diluído, no escuro dos
castanheiros!
–
Ah ladrão! que era o último dia da tua vida! Mas acabou-se! Algum diabo tinhas
por ti! Ah, malvado!
E
apanhando do chão duas grandes pedras, ainda as arremessou, com fúria, ao seio
do escuro. – Mas só ouviu ramalhar os castanheiros, o baque dos matacões caindo
no solo, – e nada mais.
–
Pronto! Foi-se! Alma do diabo! Não tinha de ser inda esta noite! E desandou
direito à aldeia, furioso.
–
Amanhã! Deixa! Não as perdes! Eu te armarei a esparrela se voltares!
…Mas
agora, regressando, só o preocupava saber quem seria o vulto, – de todo
inclinado já, contra a Alonsa, à ideia de que o atraiçoava:
–
…Oh, a grande magana!... Tinha outro!... Vão-se lá fiar!... A grande magana
tinha outro!...
Defronte
da porta da rapariga, parou, – imprecando de punhos cerrados:
–
Ah traidora! Agora é que era matar-te! O que tu precisavas era morrer! Ah
traidora!
E
num repelão, desvairado, foi-se ao postigo e bateu.
–
Se abre é porque o esperava, a desavergonhada! E capaz sou eu de a matar!
Mato-a! Mato-me, acabou-se!
Mas
de dentro não acudia resposta: tornou a bater. Senão quando, rente ao postigo,
ouviu-se muito aflita a voz da Alonsa:
–
Vai-te! Deixa-me! Não me persigas! Por alma de tua mãe tem dó de mim!
–
Abre! – rugiu o Fraldão empurrando a porta.
–
Não! Não! E se abres mato-me! – tornou de dentro a voz da Alonsa. – Vai-te! Bem
bonda o que me fizeste! Vai-te!
–
Oh! – regougou espantado o Fraldão. – "O que me fizeste..."
Percebera!
Percebia tudo agora!... O vulto era então o José Cherugaço, o de Valdamadre...
– e o malvado, depois de ter enganado a rapariga, e de andar por lá a enganar
outras, voltava à mesma por desfastio, voltava à mesma por inveja! Era o
costume, já se sabia! Oh, o grande malandro! Por isso – lembrava-se agora –
quando o encontrara outro dia à Cruz da Carreira, caminho do Souto, o meliante
se rira para ele de certo feitio, como se riem os lobos...
Espreitava-o,
o refinado patife! Estava ao fato de tudo! E era por inveja – ele conhecia-o! –
era só por inveja, que voltava outra vez à porta da Alonsa, – a perseguir a
rapariga e a desinquietá-la!...
–
Oh, mas deixa!... Não as perdes!... Grande malandro, que as não perdes!...
E
já distante, pois que deixara em paz a rapariga, a sua vontade foi ir-se dali
até Valdamadre, – ajustar contas com esse ladrão!
–
Vou! Atiro-me a ele, que o como vivo! – Mas parecendo-lhe aquilo uma surpresa,
reconsiderou:
–
Não! Há de ser de dia! À luz do sol é que há de ser!
E
entrando em casa quase contente, o Fraldão fingiu ralhar com a mãe por o ter
esperado, e pedindo-lhe a bênção foi-se para a cama.
–
Vê lá se vens com frio, Antônio! Aqui inda há umas brasas.
–
Não, minha mãe! Não esteja vossemecê agastada! O que eu não queria era vê-la a
pé. Vá-se vossemecê deitar, ande, e tenha paciência.
Dormiu
o rapaz o resto da noite, de um sono pegado; e ao acordar de manhã para ir para
o trabalho, antes do romper do sol, pareceu-lhe tudo aquilo um pesadelo – o que
se passara na véspera!...
–
Olha que tal, han?!... Como o diabo as arma, às vezes! – lembrava-se ele ainda aterrado.
No
íntimo, porém, tirante esse ódio ao Cherugaço, o Antônio Fraldão sentia-se bem;
– e logo que o ouviu cantarolar, já levantado, – também a viúva ficou contente:
–
Ora graças, Antônio! – festejou ela muito alegre. – Graças que já te ouço
cantar!
–
Então, minha mãe! É que vi passarinho novo!...
–
Ah! – fingiu a viúva que se admirava. – E bonito? – perguntou a rir com certa
malícia.
–
Mas sim! Muito!
Não
insistiu a mãe do Antônio, e o rapaz calou-se também; – mas quando se despediu
para sair para o campo, a um olhar da mãe mais perscrutador o Fraldão
começou-se a rir...
–
Então?... – desafiou-o a viúva.
–
Então quê, minha mãe? Não é nada! – disfarçou ele. – É cá uma coisa.
–
Mas diz!...
Hesitou.
Houve um silêncio...
–
Pois digo, acabou-se! – condescendeu o rapaz. – Mas vossemecê há de me prometer
primeiro que guarda segredo...
–
Guardo! – prometeu ela.
Outra
pausa...
–
É que me está a parecer que vossemecê...
Quedou-se
outra vez.
–
Anda! Desembucha!
–
...Inda vai ter uma filha depois de velha!
Deu-lhe
a mãe uma grande risada, fingindo que não percebia.
–
Isso! A boas horas!... Está feito!
E
como o filho já ia na rua, correu a dizer-lhe da porta:
–
Ouves, Antônio? – E ria-se muito. – Agora só se forem netos...
Já
distante, o filho voltou-se para trás, também a rir:
–
Ó minha mãe!... E se forem?...
***
Nessas
manhãs de fim de Verão, quase outoniças, o sol, lá em cima, nasce muito pálido;
e já faz frio. Mas esse mesmo "arzinho" agreste, muito puro,
rarefeito pela grande altitude, tonificava o sangue do Antônio Fraldão, que
horas antes, por esses mesmos lugares, lhe subira à cabeça quase a escaldar.
As
ideias, agora, vinham-lhe lúcidas e chilreantes, – alegres como essa passarada
ligeira que por cima dele passava a cantar. Parecia-lhe o campo também mais
claro, e mais alegre; – e certas árvores suas amigas, que já tinham conhecido
de pequeno o avô dele, ouvia-as mesmo felicitá-lo, quando passava:
–
Bons-dias, Antônio! Do que tu te livraste! – Um poço aos pés – dizia-lhe um
olmo – e tu por um triz a malhares lá dentro!...
–
É verdade! É verdade! O demônio como quer as arma! Nosso Senhor nos livre de
tentações!
–
Bons-dias! Adeus!
–
Adeus! Bons-dias!
E
certo pombal por onde passou, todo caiado de branco, sorriu-lhe como um
noivado:
–
Adeus, Antônio! Quando te casas?...
Ao
Caminho Velho, saudando as raparigas que estavam na fonte, o Fraldão pôs-se a cantar:
Entre
canas e caninhas
Água deve de nascer,
Menina que está na fonte,
Água deve de nascer,
Menina que está na fonte,
Dê-me
água, quero beber.
Elas
agradeceram-lhe, a rir:
–
Adeus, Antônio! Adeus!
E
como se estivesse no grupo a Aninhas do Souto, que além de ser muito linda era
cantadeira, mandou-lhe esta – "só pra ela":
Fechei
na mão um sorriso
Da tua
boca formosa,
Quando
fui a abrir a mão
Tinha-a
toda cor-de-rosa.
–
Mas que linda, Antônio! Mas que bonita! – agradeceu a Aninhas.
–
Isso és tu! Bonita és tu! Linda como os amores! Adeus!
Mas
um pouco adiante, ao saltar a ribeira por umas poldras, uma velha que estava a
lavar interrogou-o:
–
Ó Antônio! Então tu diz que te casas?...
A
pergunta surpreendeu-o...
–
Eu, tia Claudina!?... – disfarçou o rapaz. – Isso sim! Tenho lá minha mãe. Pró
que eu ganho chegamos bem! Então tão cedo? – perguntou ele sem se deter.
–
Os cueiros dos netos! Que remédio!...
Apreensivo,
o Fraldão ia agora pensando:
–
Aquilo seria bruxedo?!... Ou a tia Claudina estaria a mangar?!...
Mas
à Cruz do Carlos, onde o caminho fazia uma encruzilhada para Valdamadre,
conheceu, já lá adiante, seguindo pela ladeira que levava à aldeia, o filho do
José do Cachão.
–
Ó Valentim! – gritou-lhe de longe o Antônio Fraldão.
–
Que é? – respondeu o outro conhecendo-o logo.
–
Tu vais pra Valdamadre?
–
Vou!
–
E és capaz de me fazer um favor?
–
Até dois!
–
Então – ouves?! – então diz-me lá a esse malandro do José Cherugaço...
–
Ao pai ou ao filho?
–
Ao filho! Diz-me lá a esse grande malandro, – diz-lhe lá! – que a primeira vez
que o topo, seja onde for, que lhe hei de arrombar com um pau a caixa dos
miolos! Tão certo como haver uvas!
O
outro quis voltar atrás.
–
Não venhas, adeus! Diz-lhe lá isto que lho mando eu!
–
Ó Antônio! – chamou agora o José do Cachão.
–
Que é?
–
Então que demônio é isso?!
–
Cá umas contas! Diz’-lho!
E
o José Cherugaço, prevenido pouco depois, só retrucou ao José do Cachão:
–
Deixa-o! Morto por isso estou eu!
***
Não tardou, pois, que os dois se encontrassem; mas nem o Fraldão procurou o Cherugaço, nem o Cherugaço, tão-pouco, buscou evitar o outro. Foi obra do acaso avistarem-se ambos no cabeço das eiras, num dia de feira; – e avistarem-se, o mesmo foi que irem um para o outro, lestos e de cabeça erguida. Já sabia o Cherugaço quem tinha pela frente; e porque o terreno o favorecia, e o inimigo era de respeito, tomou a ofensiva em vez de se defender, brandindo o pau contra o adversário. Errou o golpe, todavia; – e lesto como um gamo, o Fraldão, fazendo pé atrás, pôs a zenir no ar o pau de lódão, calculou, apontou, e atirando à cabeça do Cherugaço, com toda a gana, acertou- -lhe, prostrou-o à primeira, –matou-o.
–
Àq’ del-Rei! – Àq’ del-Rei! – Acudam!
Corria
gente de todas as bandas, era um torvelinho à roda do morto. Atirando com o
pau, o Fraldão, muito lívido, pedia aos que o rodeavam que o prendessem:
–
Prendam-me! Prendam-me! Matei um homem! Sou um desgraçado! Prendam- -me!
Prendam-me!
E
atirando para diante com ambos os braços, aflito que metia horror, parecia
oferecer já os pulsos às algemas, enquanto a feira, num alvoroço, se enovelava
toda naquele lugar.
–
Que é?!
–
Que foi?!
–
Quem mataram?!
–
José! Não te vás pra lá meter, anda cá!
–
Antônio! Foge p'r' aqui, olha que te esmagam!
Eram
as mães a gritar pelos filhos, mulheres pelos maridos: um berreiro e um
alvoroço! E à tona desse vozeiro medonho, aqueles clamores que fazem as
possessas, trágicos e arrepiados, ferozes como gritos de hienas: – "Ihh!..."
Estava
já preso o Antônio Fraldão; e de jaqueta ao ombro, sem chapéu, seguia para a
vila no meio dos cabos, atrás do regedor que abria caminho; – enquanto outros,
tomando conta do morto, faziam círculo à roda do corpo, aguardando que viesse a
justiça.
Mas
passada a crise, entrava de comentar-se o acontecido, e já havia partidos: –
Quem atacara primeiro fora o Cherugaço! – o Fraldão, defendendo-se, fizera o
que outro faria! – Tal e qual! – Tal e qual!
–
Mas eles já andavam de rixa!
–
Deixá-lo! O que aqui se passou é que vale!
–
O Fraldão tinha-o desafiado!
–
Quem to disse?!
–
Está-o ali a contar o José do Cachão!
–
Recados! Sinal é que não foi traiçoeiro!
–
Também o Cherugaço lhe mandou dizer que morto por isso estava ele!
–
Ora aí está!
–
Pois aí está! O rapaz não teve culpa!
–
Não?!
–
Não!
–
Então assim se mata um homem?! – vociferou um de Valdamadre.
–
Isso é outro caso! E se fosse o Antônio que tivesse morrido?! Ele não lhe
atirou também à cabeça?!
–
E primeiro!
–
E primeiro, está visto!
–
Se o não apanhou foi porque não pôde!
–
E se o apanha era uma vez!
–
Está visto! Defendeu-se! Outro qualquer fazia o mesmo!
A
corrente, como levada impetuosa, era, pois, a favor do Fraldão; e quando se
ouviu, daí a pouco, gritar uma mulher lancinantemente, e se soube que era a
Alonsa, e porque chorava, o incidente acabou de voltar a feira a favor do
rapaz, e já ninguém, ostensivamente, tomava o partido do morto.
–
Coitada da Alonsa!
–
Coitado do Antônio!
–
E se nós fôssemos tirá-lo aos cabos, ó rapazes?! – desafiou um. – Vamos nós
tirá-lo aos cabos?!
–
Pronto!
–
É pra já! – anuíram uns poucos.
Mas
um velho de Variz, que estava a cavalo para ver melhor, meteu-lhes à cara a
cavalgadura, contendo-os:
–
Alto! Juízo! – gritou ele imperativamente. – Vocês que é que vão fazer?!
–
Arrede! – vociferaram muitos ao mesmo tempo. – Arrede!
–
Não arredo! – teimou o velho de cima da égua. – Quem é aí que manda arredar?!
Rodearam-no, iam atirar-se a ele.
–
Bem! Então agora é julgado! – increpou um com a boca a escumar-lhe. – E
julgado, lá vai p'r' a África, condenado?!
–
É assim?!
–
É assim?!
–
Vai o quê?! Vai o quê?! – clamaram uns poucos num crescendo. – Ao juiz que o
condenasse fazia-se-lhe o mesmo!
–
O mesmo! Pois está visto!
–
Está visto! Fazia-se-lhe o mesmo!
–
Morra!
–
Morra!
O
velho apeara-se, furioso:
–
Morra quem?! grandes animais! Cuidam vocês então, seus burros, que há juiz que
condene o rapaz?!
–
Viva!
–
Viva!
–
Tem razão o tio José!
–
Viva!
–
Viva!
...Ao
mesmo tempo que as grades do cancelão, abrindo-se e fechando-se logo, recluíam
o rapaz em nome da lei, – e o Cherugaço, de ventre p’r’ o ar, continuava,
estendido na feira, esperando que lhe fizessem a autópsia...
***
Não
foi condenado, com efeito, o Antônio Fraldão. Absolvido unanimemente, ao abraço
que lhe deu a Alonsa à saída da audiência, com todos à roda a quererem abraçá-lo,
o Fraldão respondeu a chorar – beijando-a como uma criança! Tinham-se casado na
cadeia, meses antes, – quando a mãe do Fraldão, coitada, receando pela sorte do
filho, se tinha já consumido a chorar por ele – e a chorar por ele e a rezar,
expelira, sem o ver, o último alento...
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