6/02/2019

Amores... Amores... (Conto), de Thomaz Lopes



Amores... Amores...
CAPÍTULO 1
Na suave paz daquela gloriosa manhã de maio, toda harmonia e perfumes, o Henrique, Henrique Duarte de Oliveira Neto, despertou muito feliz e alegre, o coração deliciado de uma doce ventura. E logo abriu, de par em par, as janelas do quarto, por onde o sol entrou rebrilhante.
Depois, estendeu os formosos olhos azuis pelo céu e pelas montanhas. O firmamento claro refulgia esplên­dido, sem manchas e sem nuvens. Sob o azul indefinido, o Corcovado se erguia, com uma cor vaga de chumbo tostado. As montanhas iam-se-lhe prendendo, mostrando o robusto corpo de pedra cravejado de ligeira vegetação ou o vasto seio verde e fecundo coroado de copas. Do outro extremo, o Pão de Açúcar surgia do mar glauco e azul, de esmeraldas e turquesas, que lhe morria aos pés, chiando, em flocos de espuma, e desafiava com o seu corpo da cor das pérolas, batido pelo sol benfazejo de maio, as ondas incansáveis dos oceanos largos. Nas árvores vizinhas havia canto de passarinhos e através das folhagens as últimas cigarras chilreavam.
— Que bela manhã! Quanta luz e quanto per­fume!
E, envolto numa grossa túnica felpuda, desceu ao jardim em busca do banheiro, que se ocultava entre uma touceira cheirosa de madressilvas e camélias brancas.
Depois do demorado banho, com a pele fresca e úmida, onde ainda tremiam gotas brilhantes d'água clara, voltou para casa, beijado por uma volúpia sutil e inexpressiva, cantarolando abemolados trechos d'ópera. E outra vez em casa, depois do conforto de um saboroso café, perfumado e quente, tendo entre os dedos de unhas polidas um cigarro consolador, donde fugiam azuladas fumaças transparentes, tomou os jornais e pensou nas delícias que a noite próxima devia trazer.
Era o aniversário de sua adorada Maria José. Fazia 22 anos, e para festejar-lhe o aniversário feliz, seu pai, o Dr. Hermínio da Fonseca, oferecia-lhe um delicioso baile. E, como devia ser bela aquela festa, que também era dele! Desse-lhe Deus coragem para dizer a Maria José, francamente, tudo aquilo que ela já sabia, mas que nunca ouvira dos seus lábios trêmulos, senão por frases muito incompletas e muito vagas! Como ele se sentiria feliz, quando, dentro de algumas horas, ouvisse de sua própria boca, de sua boquinha de criança, as palavras apenas suspiradas: Eu também te amo!... Decerto, ela devia confessar; não havia dúvida que o amava!
Passou os olhos pelos telegramas e pelo noticiário, leu sem interesse os anúncios de teatro, jogou os jornais em cima da mesa, retomou-os para largá-los novamente, e foi a uma estante, tirou um livro que não leu, e abriu um, e folheou outro, e afinal, por acaso, parou diante deste pedaço do intermezzo:
"Chorei em sonho; sonhava que tinhas morrido; despertei, o pranto correu dos meus olhos cansados.
Chorei em sonho; sonhava que me esqueceras por outro; despertei e chorei amargamente horas perdidas. Chorei em sonho; sonhava que ainda merecia o teu amor; despertei, e torrentes de lágrimas eternas eterna­mente correm das minhas faces pálidas."
— Como é triste o meu pobre homônimo!
— "Henrique, Henrique, levanta-te, curarei as feri­das do teu coração!
— Não me posso erguer, atravessei o crânio com uma bala, meu amor, meu amor!"
— Pobre Henrique, quem sabe se eu...
Nesse momento, a campainha do hotel, para onde ele se mudara depois que seus pais e sua irmã, mocinha de dezoito anos, foram para a Europa, repicou, vibrante e argentina, claro som de metal. Era a hora do almoço, e Henrique desceu ao jardim, e floriu a lapela do casaco de casimira clara com uma rosa de inverno, cheirosa e rubra. A toalha da mesa alvejava, cheirando a linho bem lavado, onde se estendiam as porcelanas e os cristais. Depois de olhar vagamente a carta do dia, o hóspede feliz partiu entre os dedos um pedaço de pão, à espera do primeiro prato do almoço, fitando uma gaiola dourada, onde um canário cantava.
***
Henrique Duarte de Oliveira Neto nasceu em São Paulo, em princípios do ano de 1865. Terminando o curso de humanidades, matriculou-se na Academia de Direito, onde cursou até o terceiro ano. Datam dessa época os jornais de vida efêmera que dirigiu em com­panhia de alguns colegas audaciosos. A Luta, O Clarim, O Paladino, atacaram impenitentemente a escravatura e o barão de Cotegipe, prostraram-se aos pés da estátua da Liberdade — "essa figura de deusa e de virgem, im­poluta e branca, que os carrascos do Continente Negro queriam profanar para trucidar depois!" O jovem jornalista não passou pela vida acadêmica sem a manifes­tação dos sonetos, onde geralmente a sua alma de moço se confrangia em torturas dolorosas, e o seu rosto era um palhaço:
O meu rosto é um palhaço arrebicado
Que anda de feira em feira a se mostrar...
Depois de cometer todas essas barbaridades senti­mentais, foi reprovado no terceiro ano, e nas vésperas de vir para o Rio estudar medicina quebrou uma ben­gala às costas de um ex-colega, seu rival nos amores, porque uma vez na academia, diante de muita gente, ousou dizer que o Neto tinha uma cara de clown.
Quando, em princípios de 1886, o expresso do Brás conduziu-o à corte de D. Pedro II, Henrique trazia vinte e um anos e grandes projetos de vitória. Ainda mal chegara, começou a cultivar as relações com o Dr. Hermínio da Fonseca, médico de nomeada, com muita clínica e uma filha encantadora, a Maria José, mais moça do que ele apenas dois anos. Viu-a o Henrique e não a amou imediatamente. Gostava de conversar com ela, apreciando a sua palestra recatada e modesta, cheia de inteligência cultivada, de ouvir-lhe a voz meiga e de senti-la a seu lado. Ao fim de seis meses, quando a encontrava, já sentia uma espécie de tremor gelado meio paralítico no coração; mas a si próprio dizia que não a amava, que tinha mais em que pensar, e que já não possuía ilusões! Sabendo, porém, que ela ia a um teatro, entrava inconsciente no mesmo teatro, pertur­bava-se quando seus olhares se encontravam e quase estremecia quando Maria José lhe apertava docemente a mão. Mais uns dois meses e a intimidade entre eles era grande. Muitas vezes escapavam, rápidos, uns vocês mal pronunciados e que não eram corrigidos, e uma noite, quando o Henrique tocava a campainha em casa do Dr. Hermínio, veio abrir-lhe a porta Maria José; viu-o e estremeceu; ele, corando e baixando os olhos: — Ah!... É a senhora...
Quando às onze horas recolheu a casa, vinha triun­fante: — Não há dúvida!
Daquela noite em diante uma vida nova começou para o Henrique. Amava muito, mas era um amor deli­cado, sem grosserias, um amor sutil que o invadia, com um vago tom de doçura, suavemente voluptuosa como os perfumes do Japão. Se, às vezes, alguma nuvem inter­ceptava aquela felicidade, Henrique não se maldizia nem arrancava os cabelos. Voltaram os sonetos, agora suaves, como o fio cristalino d'água clara:
Quando te vejo, oh, pálida querida,
Minh'alma para tu'alma vai fugindo;
Bebo o teu riso que me está sorrindo
Como um sol novo que ilumina a vida.
Quando te vejo...
Henrique teve a delicada reserva de não confiar o seu segredo a ninguém, escondendo-o cheio de cuidados, como quem trata de uma débil planta, apenas nascida, que precisa de todos os carinhos para vicejar.
Ficava esquecido, horas perdidas, defronte de Maria José, fitando-a com amor e respeito, como um crente que contempla uma imagem, adorando-a, sentindo-a viver nele, olhando seus olhos, que apenas, medrosos, de corrida, paravam nos dele. Ela ficava distraída, levantava-se, voltava a sentar-se, acariciava-o rapida­mente com os olhos, e conversava com outra pessoa. Entretanto, nunca houve entre eles uma palavra trai­dora, uma indireta numa frase; eram apenas os olhos e as ações que falavam.
Uma vez, de dia, quando Henrique chegou à casa de Maria José, encontrou-a tecendo um manto azul para Nossa Senhora das Dores:
— Quer fazer um manto para mim?
Ela fitou-lhe nos olhos os seus grandes olhos tão docemente que ele estremeceu. E aqueles olhos banhando de uma luz preciosa as suas faces pálidas de raro ônix semelhavam a superfície clara de um lago de leite.
Nunca mais o Neto esqueceu aquele olhar, aquele olhar que era uma declaração de amor.
Com o tempo que foi passando, o amor de ambos transpareceu na menor palavra e no menor gesto. O Henrique não se conteve e confessou; Maria José por um requinte de castidade negou firmemente, mandando-lhe recados, — que nunca o tinha amado, que não o amava, que perdesse as esperanças, porque nunca havia de amá-lo! Ao princípio, aquele vulcão que explodia, envolvendo-o de fumarada espessa, abalou-o profundamente. Mas, com a continuação de vê-la, de senti-la comovida a seu lado, as mãos frias e a voz trêmula, chegava a dizer:
— Olhem: se Maria José me disser a mim próprio que não ama, eu lhe não direi nada, por delicadeza, está claro! Mas continuo a jurar diante de todos os santos da corte celeste que ela me adora!
Cessaram os recados e os aborrecimentos, e a vida para eles continuou a correr feliz, alegrada por aquele amor recíproco, cheio de delícias sempre novas.
Foram os meses largamente passando. Naquela ro­sada manhã de maio de 1889 completavam três anos os amores do Neto.

CAPÍTULO 2
Na luminosa tarde daquele dia, antes das seis, Hen­rique saltava de um bonde à porta do hotel. Vinha radiante, e para compor ainda mais a sua alegria, da lapela do casaco bem talhado, debruçava-se sobre o coração um ramo todo branco de violetas brancas. Entrou no quarto, atirou sobre a mesinha um embrulho de cigarros e voltou a pensar na noite que já vinha descendo, cheia de esperanças e promessas. Na cidade, não tinha feito outra coisa, senão rir; tinha um sorriso constante, que parecia falar: — Olhem, eu é que vou; vocês não vão vê-la nem ouvi-la. À porta do Pascoal um sujeito gordo e pesado pisou-lhe com força o sapato amarelo de couro fino.
— Oh! senhor, desculpe!
— Absolutamente. Sou eu quem lhe pede mil per­dões, ora essa...
Deu esmolas a todos que estenderam a mão, e não houve criado de confeitaria que não tivesse gorjeta.
Henrique Duarte de Oliveira Neto, pondo os braços em cruz sobre o peito forte, como se quisesse cada vez mais aconchegar a felicidade, levantou-se e foi à janela que olhava para o mar e para os lados da Gávea. Por trás do Corcovado o sol morria, muito grande e ver­melho. Em torno, o azul se rasgara e grandes nuvens rútilas se abriram como que para engolir aquele gigante de luz. Por fim desapareceu de todo. Henrique ainda ficou muito tempo à janela; viu sair, barra fora, um grande navio da Royal Mail, a proa recortada, todo preto, levando à popa o estandarte vermelho da rainha dos mares. Quando nem mais se lhe viam os grandes mastaréus esguios era noite. Por cima do Corcovado brilhava a primeira estrela, como um santelmo por cima de um mastro negro, e dos lados da barra vinha sur­gindo uma lua cheia, toda vermelha como uma laranja colossal de sangue e de opala. Para o lado direito de Santa Cruz, Niterói tremeluzia intermitente, com as luzes muito trêmulas e vagas, querendo apagar-se, como um grande pássaro que debate as asas nos estertores da última agonia.
A campainha do hotel cantou a primeira chamada do jantar. Henrique deixou a janela; no céu azul pal­pitavam as primeiras estrelas.
Muito antes de terminada a refeição, abandonou a sua mesa, e logo que uns dez minutos passaram sentou-se à secretária. Então, cheio de delícias, começou a escrever uma preciosa carta a um amigo, que na Academia de São Paulo cursava o último ano:
***
"Meu querido amigo — Sinto-me tão feliz, que nem sei por onde começar o muito que tenho para dizer-te. Tu que tens acompanhado a longa história do meu amor, calcula como devo estar, ao ver que se aproxima o triunfo completo, sentindo-me inteiramente feliz, não invejando nada neste mundo, não tendo inveja de nenhum homem sobre a terra.
Não podes fazer ideia da alegria que domina toda a minh'alma. Dentro de duas horas eu serei feliz, intei­ramente feliz. Todas as dúvidas se dissiparam; Maria José adora-me, Maria José morre de amores por mim. Ainda ontem lá estive, e ela apertou-me suavemente a mão e sorriu-me com aquele sorriso encantado, banhou-me de luz os olhos de luz dos seus olhos derramados e lânguidos, e ofereceu-me, vencida, todas as valsas do seu carnet: Todas quantas quiser, foi assim que ela me disse. Depois, como para dizer que nós, ela "e eu, está­vamos ambos apaixonados um pelo outro, cantarolou à meia voz algumas romanzas d'amor. Depois, uma infinidade de pequeninas coisas, que são ridículas, talvez, como talvez ridícula seja esta carta. Mas, meu amigo, eu amo, só vivo de amor. Antes de amar Maria José, já era amado por ela. Estudei-a como filósofo indiferente, e hoje adoro-a como escravo! Não sou homem de arre­batamentos, mas sinto-me viver unicamente da vida dela. Não é preciso que eu fale para ela me entender; não é necessário que ela dê palavra, para eu compreendê-la. Amamo-nos, meu amigo, eis tudo! Adeus, vou vestir-me. Quero ouvir mais tarde dos seus lábios trêmulos a con­fissão suprema: Eu também te amo! Adeus, é tarde! Abraça o teu amigo muito feliz — HENRIQUE."
***
Trancou a carta na gaveta e abriu a porta de espe­lho do guarda-casaca:
— Oito e meia já? Vai ficando tarde.
E, deliciado, começou a vestir-se. Pouco depois das nove horas, pronto, contemplou-se ao espelho. Alto e esbelto, vestido de casaca de casimira preta, que o en­volvia num tom severo de elegância distinta, o rosto oval, de nariz grande, os olhos suavemente azuis e os cabelos ondeados de cor castanho muito claro, pálido e branco, um pequenino bigode, cor dos cabelos, tinha uma expressão de suavidade meiga e de beleza viril.
Enfim, ia chegar. Um tílburi, que estava parado à porta do hotel, partiu, ao trote curto do cavalinho magro.
***
Quando, depois das nove e meia, Henrique subia a escada do palacete e entrava na sala de espera, encon­trou D. Ritinha, mãe de Maria José:
— Boas horas! Julguei que não viesse!
— Oh! não, senhora!...
Maria José, toda de branco, sorriu-lhe com carinhos. Ainda não se havia dançado a primeira valsa. Henrique lançou os olhos pela sala. Aquele velho, de nariz aqui­lino, cabeleira grisalha, longas suíças, óculos quadrados d'ouro, era o barão de Santo Inácio, muito mesureiro e con­servador, amigo da ordem e das instituições, que outrora sonhava para noivo da filha com um príncipe da Rússia e que era atualmente o sogro das mãos papudas de um mocinho rechonchudo — conceituado negociante da nossa praça. Mais adiante, o Dr. Miranda Portela, advo­gado, muito moço, cheio de pensamentos republicanos, mostrava um alto desdém pelas ideias atrasadas do S. Inácio. O comendador Sousa, muito surdo e muito grave, olhava com circunspeção a sociedade e falava pouco, mas solidamente:
— Não haverá muitos dias, eu disse ao Ouro Preto: meu caro visconde, enquanto a nobreza existir, a mo­narquia estará de pé.
— Mas se não há nobreza, arriscou o Portela.
— Como não há nobreza! indignou-se o Santo Inácio. E nós onde estamos, nós, os titulares que representamos muitos séculos de fidalguia? Não há nobreza, ora essa!...
Numa roda de moças, o Sr. Vital, antigo professor de latim, um velhote muito bem conservado, com muito bons dentes, gordo, corado, um pouco de bigode e um pouco de barba, as unhas limpas e bem aparadas, um riso perene de felicidade e barriga cheia, todo ele metido em roupas muito esticadas e muito escovadas, desfazia-se em galanteios. Outros senhores graves pela sala, alguns rapazes, moços de todos os tipos que falavam em segredo, sempre que viam o Neto. Henrique, ao entrar no largo terraço, em frente ao salão nobre e com uma vista magnífica que deixava a descoberto o mar, encontrou-se com um homem, que ele apenas uma ou duas vezes vira em casa do Dr. Hermínio. Era o Dr. Manuel Dias de Sousa, médico, formado com a última turma, rapaz que não era de todo feio, apesar dos longos pelos que lhe enfeitavam a cara sem expressão. Era rico, fizera o curso da escola em oito anos e passara em tese por antiguidade.
— Como tem passado, doutor?
— Bem obrigado, e o Sr. seu Neto?
E dirigiu-se para a sala, ainda trêmulo, daquele aperto de mão extraordinariamente forte, que lhe ma­goara todos os flácidos e mirrados músculos.
— Esse homem é idiota! Foge de mim sem razão!
E ficou a fumar um cigarro.
Quando tocou a primeira valsa, Henrique entrou no salão e tirou Maria José. Era uma valsa lânguida, de um encanto cheio de tristeza e de saudades. Hen­rique tentou dizer tudo aquilo que horas antes julgara tão fácil de dizer, mas ficou enleado, trêmulo como um colegial defronte ao professor, e apenas pôde balbuciar:
— Meus parabéns... pelo seu aniversário... Maria José estremeceu:
— Obrigada...
E aos compassos langorosos da valsa, foram desli­zando, docemente, como que esquecidos do mundo e da gente que os cercava, sentindo-se um do outro, nascidos um para o outro, criados um para o outro.
Terminou a valsa, e, depois de duas ou três voltas, Henrique sentou-se entre algumas amigas, e já ia para entrar no gabinete, quando, ao passar por D. Lulu, uma senhora de sua intimidade, D. Lulu chamou-o:
— Então, sente-se aqui, converse comigo... Diga-me alguma coisa...
O Neto estranhou aquele tom que escondia alguma coisa oculta. Maria José olhava-o muito pálida.
— Que quer a senhora que eu diga?
— Ora conte-me as suas tristezas!
— As minhas tristezas? Creio que não tenho razão para andar triste...
— Se tem...
— Perdão, minha senhora, explique-se.
— Mas será possível que o senhor não saiba uma coisa que todo mundo já sabe? O senhor está fingindo, quer mostrar-se forte.
Maria José dirigiu-se para o interior da casa.
— Mostrar-me forte? Palavra d'honra que eu não compreendo o que a senhora diz! Explique-se pelo amor de Deus!
— Francamente, não tenho coragem! Se eu des­confiasse que o senhor não sabia ainda, não lhe dizia nada.
— Mas diga!
— Não posso; é um golpe muito forte.
— Pelo amor de Deus!?
— Então, seja forte: o senhor não sabe que Maria José...
— Maria José...
—... que Maria José foi pedida e que está noiva?
Uma onda de sangue beijou as faces de Henrique, e logo depois uma palidez de morte cobriu-as. Mareja­ram-se-lhe os olhos, e a voz era apenas perceptível:
— Maria José... noiva... de quem?... Não é possível l
— Ora, se é...
Henrique levantou-se, quase cambaleando, mas, ao chegar ao gabinete, estacou, varado e lívido. Maria José, D. Ritinha e o Dr. Manuel Dias de Sousa formavam um grupo.
D. Ritinha dirigiu-se para o Henrique e com a sua voz simpática:
— Não conhece, seu Neto? O Dr. Manuel Dias de Sousa, noivo de Maria José.
Henrique baixou de leve a cabeça:
— Já o conhecia, muita honra...
E, desvairado, entrou na sala de jogo.
— Oh! Neto, queres entrar?
— Vem dar sorte às cartas.
Henrique sentou-se, começou a jogar e a perder.
— Estás perdendo...
— Alguma coisa.
— Infeliz no jogo...
— Feliz nos amores...
As cartas caíram-lhe da mão. Perto de uma hora da madrugada, como continuasse a perder muito, levan­tou-se e pela porta do gabinete entrou no terraço.
Sentou-se no banco, deixou a cabeça cair sobre as mãos geladas e mal pôde conter as lágrimas, que pulu­lavam nos olhos e lhe tomavam a garganta. Ainda, poucas horas antes, estivera naquele banco, feliz e cheio de confiança... Multidões de reminiscências acudiram-lhe ao pensamento.
Via Maria José fitando-o com amor e carícia, pren­dendo-o a doçura incomparável de sua voz. Parecia um sonho. Imaginava-se noivo daquela criatura adorada; recebia parabéns; D. Ritinha tratava-o por seu filho; Maria José, o seu noivo. E agora, nem sequer tinha mais o direito de ficar comovido estando ao seu lado, de olhá-la como olhava dantes, de tratá-la baixinho por Maria José. E quem lhe roubara tanta felicidade?
Aquele medicote cheio de rr, mal vestido e fátuo, que não sabia estar defronte de senhoras, que fingia de homem educado, que não sabia ficar num salão, que não tinha talento e que seria incapaz de arriscar a vida para salvar a vida de Maria José! Era ele que ia pro­fanar-lhe a pureza imaculada — aquele idiota! E a carta que horas antes escrevera, e onde se declarava o homem mais feliz do mundo?... E a sua vida, de então em diante, como devia ser estúpida, sem a família para consolá-lo, árida como um deserto sem oásis. Sim! Ele não podia mais voltar à casa de Maria José, aquela casa a que já se acostumara como se fora sua; os pais de Maria José sabiam que ele gostava dela e davam o consentimento! E de que servia a ele voltar se lá não a encontrava? Se, em vez dela, havia um retrato infiel e sem vida, e se tinha de encontrar plantado numa cadeira, a dizer tolices e banalidades, aquele estafermo de pergaminho? De que lhe serviam a ele o talento, a coragem, a mocidade, a vida, a família, um futuro brilhante e um amor extraordinário por Maria José, se a tudo isto preferiram um doutor analfabeto! Devia morrer! Atravessar o coração com uma bala... Morrer! Mas morrer assim, na florescência da mocidade, estupi­damente, burguesmente?
Iria viajar a Europa a fim de esquecê-la. Mas, como devia ser triste o Atlântico, povoado de saudades mortas e recordações defuntas, e ele com o coração vazio, mas inteiramente cheio dela! — Antes morrer! Antes morrer! Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! E as lágrimas brotaram-lhe em cachoeiras. A quadrilha terminou; passos aproximaram-se do terraço. Era Maria José. Henrique levantou-se e ficou contemplando o céu, do­minado quase.
— Está ouvindo estrelas?
Henrique estremeceu e com a voz um pouco segura:
— Não, minha senhora, estou a ver se chove. Um vento sudoeste refrescava e partia o silêncio da noite. O céu ia ficando cinzento, ameaçando chuva.
—- Deixe a chuva cair... vamos para a ceia.
E envolveu-o nos olhos suaves, tão suaves como aqueles da tarde em que o Neto a surpreendeu tecendo um manto azul para Nossa Senhora das Dores.
— Ande, vamos para a ceia... Henrique, inclinando-se nervoso, a voz tremida, oferecendo-lhe o braço, que tremia:
— Se a senhora me permite...
Na nesga azul de céu palpitavam as últimas es­trelas...



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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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