Amor
e angústia
Vagarosos, lentos anos passaram já sobre
a estranha, a fúnebre narrativa que Frederico nos fez nessa vaga e longínqua
noite de estio, alarmando a nossa consciência — e ainda sinto vivamente a
angústia que nesse momento me apertou o coração...
Eu e Maria Luísa estávamos então na
aldeia, para onde fôramos repousar das fadigas e dos tédios citadinos,
procurando para a pacificação, para o contentamento do nosso amor tão puro e
cada vez mais forte, os claros horizontes, as atmosferas calmas e translúcidas,
as serenidades, e uma confiança que não queríamos que morresse — e que até
hoje, bendito seja Deus, nunca deixou de dar flor nas nossas almas, apesar de
há muito termos entrado nas tristezas elegíacas do entardecer da existência.
Nascêramos o primeiro filho que surgiu entre nós, com o seu corpinho sem
mácula, os seus imensos olhos virginais em que se iluminava a beleza dum céu
azul, e a sua fronte cândida, como uma bênção celeste. Ele era o suave enleio
da mãe ditosa, que estava sempre à beira do seu pequenino berço, afofado entre
rendas frágeis e vaporosas cambraias, espreitando-lhe o sono tranquilo e
velando a inocência dos seus sonhos ágeis e cor de rosa como uma divindade
presente: e eu sorria do enlevo daquela adoração casta, se surpreendia Maria
Luísa curvada sobre a cabecinha loura — como a dos anjos de Fra Angélico — e a
face gorda e cheia de covas do pequenino, idealizando para ele, com essa
ternura que apenas as mulheres conhecem, os mais venturosos destinos, todas as
grandezas e todas as glórias humanas. De quando em quando, para a fazer zangar
a para captar o indizível afago das suas carícias, eu exclamava:
— Sabes, Maria Luísa? Começo a julgar
que me não amas, que sou para ti, para o teu afeto, unicamente uma figura
secundária e que outros cuidados mais nobres absorvem a tua adoração...
Ela fitava-me muito séria, muito corada,
conservando nas suas mãos, em que cintilavam, brilhavam à luz pedrarias de
anéis, as mãos da criancinha, e preguntava:
— Por que dizes isso, Carlos?
Sem lhe responder, aproximava-me de berço,
beijava comovidamente — de leve, para o não acordar — o rosto do meu filho e
ficava extasiado no encanto e na claridade que de toda a sua caminha tenra se
exalavam como o aroma se exala duma rosa orvalhada.
— Por que dizes isso? — insistia Maria
Luísa. Que diferença notas em mim, na minha dedicação, na minha abnegação por
ti? Responde!
Voltando-me para ela e com um riso feliz
que me iluminava e. denunciava a minha placidez interior, eu acudia:
— Digo isto por tudo... Não fazes nenhum
caso de mim, de manhã à noite consagras inteiramente as horas e as meiguices a
este figurão que também me pertence, que trago na minha esperança e nos meus
sentidos com a veneração dum crente...
— Ah! bem! Estás a brincar — acrescentava
Maria Luísa, passando ligeiramente a mão magra, que tinha delicadezas de asa e
maciezas de seda, sobre a cara da criança.
— A brincar? Não se brinca com coisas
desta ordem... Olha que chego a ter ciúmes do menino, Deus me perdoe! Desejava
estar no seu lugar, possuir a sua infância virgínea de botão de rosa, a sua
graça amimada, dormir igualmente num berço, como ele dorme, só para que
estivesses muito tempo junto de "mim, me beijasses com a infinita ternura
com que o beijas, me trouxesses constantemente no pensamento... Que enormes
saudades daquela Maria Luísa com quem me casei há dois anos e que não podia
viver um instante longe do meu amor!...
Maria Luísa, muito risonha, muito
afável, vinha então para mim de braços abertos, ofertando-se toda à minha
veneração, ao culto fervoroso do meu reconhecimento, contente por se saber
amada com tanta constância e tão inalterável lealdade, prendia-se ao meu
pescoço, pousava a cabeça desfalecida no meu ombro, cerrava os olhos num delíquio
e murmurava em palavras que apenas eu ouvia:
— Sim! Amo-te agora mais do que nunca,
acreditas? Depois que o nosso filho nasceu, é uma loucura! Não sei como isto
foi, mas digo-te a verdade, toda a verdade. O meu amor por ele é teu, porque és
tu que mo inspiras:
— Eu sei, querida, eu sei... —
sussurrava em voz trémula, estreitando-a contra o peito e com as pálpebras
molhadas de lágrimas — oh! mas umas lágrimas que me purificavam como se fossem
água lustral, umas lágrimas que me desoprimiam, me tornavam melhor. Duvido eu
lá de ti — eu, que sou tão imperfeito, de ti, que és tão perfeita, tão boa, tão
santa!...
— Não! Santa, não...
— Sim! Uma santa! Antes de conhecer-te,
de ligar a minha personalidade à tua e para sempre, desconhecia-me a mim próprio.
Fizeste um milagre! Ensinaste-me a observar-me, a analisar a minha individualidade
psicológica, deste-me, com a ventura, a subtileza.
— Meu Deus, o que aí vai! Chegas ao exagero
para lisonjear- me!... Tenho apenas um mérito, uma virtude — a de saber estimar-te
como mereces. Mas sou egoísta e exijo uma compensação...
— Qual, Maria Luísa?
— A de que me tu ames também. Prometes?
— Até à morte!... Ouve bem! Até à morte!...
Exaltadamente, ela tomava-me a cabeça
entre as mãos angélicas e trementes, mirava-me com fixidez como se quisesse
perscrutar-me as emoções da intimidade moral e beijava-me com paixão nos
cabelos, na face, na boca...
Uma vez por outra, acontecia, nestes
nossos adoráveis idílios, que a criança despertava, abrindo os olhos azuis como
os miosótis do norte e soltando um débil vagido; Maria Luísa corria
imediatamente para ela, abandonando-me e sacudindo com os dedos nervosos as
madeixas rebeldes que as minhas carícias tinham desatado e que se lhe anelavam
sobre a testa ebúrnea e alta, por detrás da qual eu seguia continuamente a
formação duma ideia que era para mim.
— Vês? — afirmava eu. Por mais que
pretendas esconder, não o consegues. Queres mais ao teu 'filho do que me queres
a mim!...
Envolvia-me num olhar de inexprimível
brandura e gratidão — um olhar conjuntamente apaixonado e transbordante de
bondade — pegava no pequenino ao colo, dizendo-lhe toda a sorte de doçuras, e
voltava para perto de mim, exclamando com esse orgulho que é, nas mães
amorosas, um dos mais belos dons:
— Olha que é muito lindo!
— Se se parece contigo...
— Não! É o teu retrato. Ora repara: — o
nariz, o rosto, certos traços que já se desenham nitidamente...
— Coitado do anjinho!... Só a tua vista
descortina essas coisas, Maria Luísa!...
— Tu é que não vês, não queres ver...
Evoco estes devaneios íntimos — e há
realmente, nas minhas evocações, um admirável reflorir de alegrias de ouro —
para fixar uma ténue impressão da minha felicidade nessa era que já vai tão longe
e que eu comparo ao lenço alvo que, na curva duma estrada, diz saudosamente
adeus aos que seguem o seu caminho para paragens ignoradas, misteriosas,
deslumbrando os olhos no encantamento das paisagens, que ficam para trás, nesta
jornada tão curta da vida...
Frederico, o excelente Frederico, meu
companheiro de mocidade e que viera para a aldeia depois de concluir o curso
médico, visitava-nos amiudadas vezes. A sua casa distava alguns metros da nossa
quinta rústica, que pertencera aos pais de Maria Luísa e que constituía o seu
dote. Era um amigo. Era um irmão. Eu e minha mulher admirávamo-lo pelas
excelsas virtudes de carácter, pelo espírito sensível, pela culta e elevada
inteligência — e a presença de Frederico em nosso lar representava a certeza de
mais uma afeição incomparável e segura à nossa roda.
A quinta era vasta, ocupava todo um vale
com suas extensas terras de cultivo — que nas estiagens, durante os tórridos
calores, águas espertas e vitalizantes regavam, fluindo e cantando por entre relvas
úmidas e veludosos musgos, nos saibros grossos e pedregosos, levando a seiva às
raízes e reluzindo ao sol com uma fulguração de joia; com o seu pomar onde a
fruta amadurecida pelo outono, perfumava o ar; com os seus pinheirais umbrosos
e de rama verde-negra; com o seu parque onde árvores seculares e de nodosos
troncos esgalhavam grandes ramarias para todos os lados, oferecendo guarida aos
ninhos e aos pássaros que, nas alvoradas gloriosas, os vestiam de asas
palpitantes. A vivenda rural fora construída, em épocas remotas, no meio dum
jardim em que, pelas primaveras românticas, havia sempre flores viçosas
entoando a sinfonia maravilhosa das cores e das formas. Em maio, da janela do
meu quarto, eu e Maria Luísa passávamos momentos deliciosos contemplando as
roseiras de trepar que subiam pelas paredes, caiadas dum amarelo forte,
desatando-se em grinaldas e festões balouçando, ondulando à aragem; os
canteiros de cravos de todo o ano estrelando as verduras de coloridos
estridentes e incensando com o seu perfume o ambiente salubre; as azáleas que
pareciam bandos de borboletas pousadas levemente sobre as folhagens; as mimosas
de que caía, com lentidão, uma chuva aromática e dourada. E os dias, as semanas deslizavam apressadamente sem
deixarem na nossa sensibilidade cristalizações de aborrecimento e de cansaço,
sem nos inclinarem para o gosto das coisas amargas e sem serem notados na sua
fuga incessante.
Como a felicidade morava na nossa
vivenda, Maria Luísa desejava ardentemente que, em volta de si, tudo fosse
venturoso também, que não houvesse pobreza, miséria, aflição nos casais
desabrigados dos jornaleiros, infâncias nuas ou esfarrapadas, orfandades
transidas e suplicantes aos acasos do infortúnio. Se saíamos com Frederico, em
vagarosos passeios pela povoação, ela levava sempre o seu saco cheio de roupas
para os rotos, de pão para os esfomeados, de dinheiro para aliviar os
sofrimentos da penúria. Os pequenitos já a conheciam e, se a viam aparecer,
sorridente e compadecida, dirigiam-se-lhe numa algazarra jovial, agarrando
-se-lhe às saias. Frederico ria; eu, enlevado, ria igualmente...
Uma tarde, lembro-me de que o padre
Júlio — um melancólico sacerdote muito seco, muito mirrado, com um rosto
cortado de rugas e de vincos, que envelhecera entre a gente humilde a quem
revelava e explicava o verbo divino de Jesus — encontrando-a a lavar, na fonte
da povoação, a perna ferida e ensanguentada dum menino que caíra, tirou o
chapéu respeitosamente, dizendo -lhe que apenas na Bíblia vira mãos tão fidalgas
exercendo santamente a caridade. Frederico, com uma comoção que não pudera
disfarçar, bateu brandamente no ombro do padre Júlio, apoiando-o; eu chorei, e
Maria Luísa, erguendo para o bom clérigo o rosto afogueado, interrogou-o nestes
termos:
— Pois, não é o meu dever? E merece, porventura,
o dever realizado tantos aplausos?
— Decerto, merece, minha senhora, porque
vão sendo raras as pessoas que sabem cumpri-lo — asseverou o sacerdote.
Dizendo isto, padre Júlio seguiu o
trilho do atalho que rompia através dos campos, no meio de valados e sarças
onde as madressilvas enfloravam. Muito bem me recordo de que Frederico apertou
silenciosamente a mão de Maria Luísa e de que eu a beijei com transporte e
devoção pela sua piedade que se estendia a tudo o que padecia dos males
inevitáveis, às amarguras, as desditas, aos fundos desesperos. Ela, muito enleada,
exclamou:
— Ai está... Por um ato trivial que nenhuma
criatura se negaria a praticar, quase me canonizam! Que fiz eu, justos céus?
— Mostrou que é, realmente, uma mulher
no que as mulheres têm de superior, pela comiseração, pelo espírito de
sacrifício, pela tendência para o bem, pelo carinho, pela afetividade — atalhou
Frederico.
Continuamos, calados, o nosso passeio,
durante algum tempo interrompido pelo incidente. A tarde baixava sobre a terra
como uma flor de aragem e de luz que se desfolhasse e já à beira das sebes se
desenrolavam grandes panos de sombra. Das granjas, das herdades tranquilas,
ascendiam colunas direitas dum fumo branco dissipando-se no ar límpido e macio.
Encontrávamos de instante a instante manadas de bois que regressavam aos
currais, voltando das pastagens por onde todo o dia tinham andado atolados nos
ervaçais viçosos, conduzidos pela varinha — de aguilhada reluzindo à luz como
uma estrela — de lindas boeirinhas descalças que Maria Luísa afagava. Pelas
congostas solitárias e adormecidas chiavam pesados carros que recolhiam da lida
campestre, assustando os melros pelas balsas. Qualquer coisa — talvez a mudez
em que nos abismávamos — nos inquietava: e foi Maria Luísa, com o seu fino
sentimento feminino, quem reincitou o diálogo, dizendo:
— O padecimento dos desgraçados aflige-me,
certamente, e se eu pudesse sará-lo como quem sara uma chaga, com que
entusiasmo me dedicaria a essa obra humana! Mas há outro padecimento que mais
me punge: — é o das criancinhas. Tenho meditado longamente na desigualdade da
sorte enigmática que a uns com generosidade oferta todos os regalos, todas a
opulências, todas as riquezas, e que para outros nada tem. Enquanto uns vivem
entre sedas, veludos, flores, outros rasgam os pobres pezinhos nas pedras, passam
fome e frio, agonizam lentamente. E porquê, meu Deus, por quê?
— Eis aí uma ambição de igualdade que
somente uma doce mãe pode formular com tanta justiça! — comentou Frederico.
— Na realidade, sou mãe, tenho um filho
que é toda a minha fortuna e é ele, decerto, que dita as minhas palavras... E
quem sabe para que está destinado? — murmurou ela, parando e interrogando-nos
com a vista.
— Maria Luísa — gritei eu — Maria Luísa,
que horrível hipótese!...
Efetivamente, minha mulher, com uma
simples dúvida que as agruras e as asperezas irremediáveis da existência
inspiraram à sua emotividade materna, tinha-me feito entrever, num relâmpago,
as maiores crueldades para o nosso filho que eu ansiava por ver crescer num mundo
inalterável de paz e de amor, e para quem aspirava os maiores triunfos, as
maiores vitórias.
Frederico compreendeu a minha perturbação,
entendeu o meu sobressalto e, para desviar o fio da conversa, preguntou
alegremente:
— É verdade, Carlos, já pensaste na
carreira que escolherás para o teu morgado? E vossa excelência a também, Sra.
D. Maria Luísa? É importante isto.
— Por mim, já pensei — disse eu, agradecendo
a delicadeza de Frederico.
— Então, qual é?
— Decidi fazê-lo milionário, conquistar-lhe
esta esplêndida soberania.
Maria Luísa sorria, encantada,
exclamando:
— Oh! meu pobre amor! Que diz sobre a
escolha, Frederico?
— Eu digo, minha senhora, que mesmo
nestes dias hostis de revoluções, de movimentos terríveis, de quedas de
potentados, o ouro é ainda uma grande, uma invejável comodidade.
— Pois, está claro que é — aclamei. Tu
estás no segredo da verdade, és sagaz, Frederico!
Tínhamos chegado, sem darmos por isso,
ao portão da quinta, que era de ferro. Toquei a campainha, que retiniu
fortemente na solitude da tarde expirante. Não tardaria o crepúsculo a
adelgaçar e a alongar as formas paradas. Manuel, um criado de confiança, veio
abrir. Presos à sua corrente, ao fundo do jardim, os meus dois cães da serra,
de pelo fulvo e dentes afilados, ladravam furiosamente.
— Entra! — disse eu para Frederico, enquanto
Maria Luísa corria para o filho que a ama lhe mostrava, de longe. Jantas conosco.
— Já jantei, homem! Na aldeia, sigo os
costumes dos camponeses, janto ao meio dia. À tarde, apenas tomo um caldo.
— Pois, tomarás o caldo à minha mesa,
que diabo! Olha que não me arruínas com isso...
— Está bem. Entro...
E entrou, pegando no meu filho com a
solicitude dum pai — ele, que era um solteirão incorrigível! — o que fez dizer
a Maria Luísa, com um sorriso afável:
— Sabe que tem muito jeito? Mas por que
se não casa, por quê?
— Porque sou um bicho serrano e não saberia
tratar com cuidado a flor que fosse minha mulher, Sra. D. Maria Luísa.
— Desculpas de mau pagador. Não casas
porque és egoísta — afirmei eu.
— Egoísta? Essa agora! Egoísta por não
querer que a mulher que se me devotasse viesse a sofrer? Altruísta, se fazes
favor.
— Maria, temos em nossa casa São
Francisco de Assis... À sopa!
O jantar, a que Frederico assistiu sem
comer, decorreu entre as jovialidades duma conversação animada, que minha
mulher dourou com a sua extraordinária vivacidade: — e foi ao café, que tomamos
na varanda já em pleno ocaso da luz, que Frederico nos fez, impensadamente, a
narrativa que tanto penalizou Maria Luísa e que me causou um tão profundo desgosto
que ainda hoje — ao cabo de sonolentos anos! — se não diluiu completamente na
minha emoção.
A ama havia recolhido ao quarto, levando
o nosso filho que já reparava nas coisas e já sorria, com a sua boquinha sem
dentes, quando o amimavam. Então, Frederico, fumando indolentemente um cigarro,
ao passo que eu e Maria Luísa nos aconchegávamos nas nossas amplas cadeiras de
verga, começou:
— Sempre que vejo crianças pequeninas,
ocorre-me o mais doloroso e imprevisto espetáculo da minha vida de clínico.
— Qual foi? Conta — pedi eu.
— É muito triste. Não sei se deva...
— Por que não? — alvitrou Maria Luísa. Também
na tristeza há formosura.
— Ah! se vossa excelência a ordena!...
Pois, foi este: — pouco tempo depois de eu ter aceitado este partido médico, em
que espero morrer, era procurado por uma infeliz rapariga com um pequenito de
mama ao peito, toda banhada em lágrimas e com as saias embrulhando-se-lhe nas pernas.
Soluçando, implorou-me que fosse ver depressa o marido, que adoecera de súbito
e não dava acordo de si.
— Uma desgraça, meu senhor, uma desgraça!
— explicou ela.
— Bem! Sossegue que eu vou já. Não há de
ser nada.
— Deus o ouça. Mas é... E era tão meu amigo,
coitado, tão meu amigo!...
Calcei umas botas grossas, peguei no
chapéu e na bengala e parti em companhia da mulher que, sem descanso, chorava e
se lamentava, acabrunhada, vencida pela sua mágoa.
— Não chore, não chore — repetia eu,
para a consolar. Verá que a doença do seu homem tem remédio.
— Ai! assim seja, meu senhor. Estávamos casados
há um ano. Esta criancinha tem só dois meses de idade... E ele é o nosso único arrimo.
Quando entrei no casebre enfumaçado e escuro,
deparei a um canto, estendido numa enxerga esburacada, por onde saía a palha de
centeio, um corpo inerte. Era o enfermo. Auscultei-o e logo observei que o caso
era melindroso.
— Morreu? — inquiriu Maria Luísa, fitando,
enternecida, o meu amigo.
— Morreu!... Não podia salvar-se... Mas o
horror não está na morte, tão natural na humanidade perecível: — está no drama
que se passou... Voltei ao pardieiro na manhã seguinte e a enfermidade
agravara-se. O desgraçado tinha apenas algumas horas de vida, e eu, compungido,
sentei-me num banco perto dele para suavizar a dor da mulher que ia ficar viúva
e que ninguém socorreria na sua miséria.
— Está melhor, senhor doutor? — preguntava.
O meu homem está melhor?...
Conservava-se de pé, a meu lado, com o
filho nos braços; e eu, para a tranquilizar, mentia--lhe, porque me faltava a
coragem para ser verdadeiro e desenganá-la.
— Não perca a esperança... Tenha fé!
— Pois, eu tenho fé, minha Mãe
Santíssima! — murmurava a criatura.
Num dado momento, o doente, ardendo em febre,
abriu os olhos embaciados, fitando a companheira que naturalmente já não via, e
isto foi, para ela, uma trágica revelação.
— Ele morre, meu senhor! Acuda-lhe, que ele
morre! — bradava, num desespero.
Apertava nos braços, nervosamente, o pequenino
que vagia, fora de si, doida de angústia, desvairada.
— Estás sem pai, meu menino. Deus nos valha
com a sua misericórdia!
— Então?! — bradei eu. Não grite assim, que
lhe faz mal.
Oh! a desventurada! Sempre de pé, empregava
esforços inauditos para sufocar os seus queixumes, para conter o seu pranto,
monologando automaticamente:
— Mas, ele morre, ele morre! Ninguém tem
pena de mim!
Conservava o pulso do moribundo na minha
mão e ia observando, apavorado, a rapidez com que aquela existência tão honesta
e indispensável ao amparo de seres aflitivos se apagava. De repente, as pulsações
foram-se espaçando e enfraquecendo até que pararam totalmente. Arrepiaram-se-me
os cabelos, ergui-me, lívido, com a sensação nunca experimentada de que um peso
formidável me esmagava.
— Morreu? — bramiu a mulher com os olhos
rasos de água.
— Tenha paciência... Conforme-se. Todos
havemos de morrer — respondi, gaguejando.
— Ah! meu Deus! Ah! meu Deus!... Pilho,
filho, foi-se-nos tudo... Filho, filho!...
Os músculos da face contraíam-se-lhe.
Alucinada, perdida, dava voltas incessantes à roda da enxerga, gritando
continuamente, numa espécie de inconsciência:
— Ah! meu Deus!... Ah! meu Deus!...
A criancinha, que ela estreitava cada
vez mais contra o seio, soltou um gemido lancinante.
— Olhe o seu filho... Magoou-o!...
— Ah! meu Deus! Ah! meu menino! — soluçava
ela.
Segurei-a, tirei-lhe o pequenino dos braços...
Estava inanimado. Na sua amargurada perturbação, no seu intraduzível
sofrimento, matara-o sem querer, de tanto que o apertava como se nele pretendesse
encontrar uma proteção...
— Que pavor, Frederico! Que pavor! — bradou
Maria Luísa, fugindo.
— Depois... — ia ele a continuar.
— Pelo amor de Deus, pela nossa amizade fraternal...
Não contes mais! — concluí eu dirigindo-me ao compartimento onde Maria Luísa,
pálida, cadavérica, se fechara, enquanto Frederico, pesaroso pelo terror que
nos causara, se despedia.
— O nosso filho, Carlos, o nosso filho...
Onde está? — exclamou ela.
— Tranquiliza-te, meu amor... Nada o ameaça
— disse eu.
Maria Luísa adoeceu, com o abalo sofrido:
mas logo que as forças lhe renasceram, teimou em sair da aldeia onde estávamos
magnificamente instalados, sem ver Frederico que ela estimou sempre: e eu ainda
hoje não consigo reavivar este episódio lúgubre — e já o meu filho é um esvelto,
gentil, namorado moço! — sem que o coração me bata apressadamente dentro do
peito e sem que um singular estremecimento me trespasse de frialdade até à
medula...
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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