6/05/2019

Amor e angústia (Conto), de João Grave



Amor e angústia

Vagarosos, lentos anos passaram já sobre a estranha, a fúnebre narrativa que Frederico nos fez nessa vaga e longínqua noite de estio, alarmando a nossa consciência — e ainda sinto vivamente a angústia que nesse momento me apertou o coração...

Eu e Maria Luísa estávamos então na aldeia, para onde fôramos repousar das fadigas e dos tédios citadinos, procurando para a pacificação, para o contentamento do nosso amor tão puro e cada vez mais forte, os claros horizontes, as atmosferas calmas e translúcidas, as serenidades, e uma confiança que não queríamos que morresse — e que até hoje, bendito seja Deus, nunca deixou de dar flor nas nossas almas, apesar de há muito termos entrado nas tristezas elegíacas do entardecer da existência. Nascêramos o primeiro filho que surgiu entre nós, com o seu corpinho sem mácula, os seus imensos olhos virginais em que se iluminava a beleza dum céu azul, e a sua fronte cândida, como uma bênção celeste. Ele era o suave enleio da mãe ditosa, que estava sempre à beira do seu pequenino berço, afofado entre rendas frágeis e vaporosas cambraias, espreitando-lhe o sono tranquilo e velando a inocência dos seus sonhos ágeis e cor de rosa como uma divindade presente: e eu sorria do enlevo daquela adoração casta, se surpreendia Maria Luísa curvada sobre a cabecinha loura — como a dos anjos de Fra Angélico — e a face gorda e cheia de covas do pequenino, idealizando para ele, com essa ternura que apenas as mulheres conhecem, os mais venturosos destinos, todas as grandezas e todas as glórias humanas. De quando em quando, para a fazer zangar a para captar o indizível afago das suas carícias, eu exclamava:

— Sabes, Maria Luísa? Começo a julgar que me não amas, que sou para ti, para o teu afeto, unicamente uma figura secundária e que outros cuidados mais nobres absorvem a tua adoração...

Ela fitava-me muito séria, muito corada, conservando nas suas mãos, em que cintilavam, brilhavam à luz pedrarias de anéis, as mãos da criancinha, e preguntava:

— Por que dizes isso, Carlos?

Sem lhe responder, aproximava-me de berço, beijava comovidamente — de leve, para o não acordar — o rosto do meu filho e ficava extasiado no encanto e na claridade que de toda a sua caminha tenra se exalavam como o aroma se exala duma rosa orvalhada.

— Por que dizes isso? — insistia Maria Luísa. Que diferença notas em mim, na minha dedicação, na minha abnegação por ti? Responde!

Voltando-me para ela e com um riso feliz que me iluminava e. denunciava a minha placidez interior, eu acudia:

— Digo isto por tudo... Não fazes nenhum caso de mim, de manhã à noite consagras inteiramente as horas e as meiguices a este figurão que também me pertence, que trago na minha esperança e nos meus sentidos com a veneração dum crente...

— Ah! bem! Estás a brincar — acrescentava Maria Luísa, passando ligeiramente a mão magra, que tinha delicadezas de asa e maciezas de seda, sobre a cara da criança.

— A brincar? Não se brinca com coisas desta ordem... Olha que chego a ter ciúmes do menino, Deus me perdoe! Desejava estar no seu lugar, possuir a sua infância virgínea de botão de rosa, a sua graça amimada, dormir igualmente num berço, como ele dorme, só para que estivesses muito tempo junto de "mim, me beijasses com a infinita ternura com que o beijas, me trouxesses constantemente no pensamento... Que enormes saudades daquela Maria Luísa com quem me casei há dois anos e que não podia viver um instante longe do meu amor!...

Maria Luísa, muito risonha, muito afável, vinha então para mim de braços abertos, ofertando-se toda à minha veneração, ao culto fervoroso do meu reconhecimento, contente por se saber amada com tanta constância e tão inalterável lealdade, prendia-se ao meu pescoço, pousava a cabeça desfalecida no meu ombro, cerrava os olhos num delíquio e murmurava em palavras que apenas eu ouvia:

— Sim! Amo-te agora mais do que nunca, acreditas? Depois que o nosso filho nasceu, é uma loucura! Não sei como isto foi, mas digo-te a verdade, toda a verdade. O meu amor por ele é teu, porque és tu que mo inspiras:

— Eu sei, querida, eu sei... — sussurrava em voz trémula, estreitando-a contra o peito e com as pálpebras molhadas de lágrimas — oh! mas umas lágrimas que me purificavam como se fossem água lustral, umas lágrimas que me desoprimiam, me tornavam melhor. Duvido eu lá de ti — eu, que sou tão imperfeito, de ti, que és tão perfeita, tão boa, tão santa!...

— Não! Santa, não...

— Sim! Uma santa! Antes de conhecer-te, de ligar a minha personalidade à tua e para sempre, desconhecia-me a mim próprio. Fizeste um milagre! Ensinaste-me a observar-me, a analisar a minha individualidade psicológica, deste-me, com a ventura, a subtileza.

— Meu Deus, o que aí vai! Chegas ao exagero para lisonjear- me!... Tenho apenas um mérito, uma virtude — a de saber estimar-te como mereces. Mas sou egoísta e exijo uma compensação...

— Qual, Maria Luísa?

— A de que me tu ames também. Prometes?

— Até à morte!... Ouve bem! Até à morte!...

Exaltadamente, ela tomava-me a cabeça entre as mãos angélicas e trementes, mirava-me com fixidez como se quisesse perscrutar-me as emoções da intimidade moral e beijava-me com paixão nos cabelos, na face, na boca...

Uma vez por outra, acontecia, nestes nossos adoráveis idílios, que a criança despertava, abrindo os olhos azuis como os miosótis do norte e soltando um débil vagido; Maria Luísa corria imediatamente para ela, abandonando-me e sacudindo com os dedos nervosos as madeixas rebeldes que as minhas carícias tinham desatado e que se lhe anelavam sobre a testa ebúrnea e alta, por detrás da qual eu seguia continuamente a formação duma ideia que era para mim.

— Vês? — afirmava eu. Por mais que pretendas esconder, não o consegues. Queres mais ao teu 'filho do que me queres a mim!...

Envolvia-me num olhar de inexprimível brandura e gratidão — um olhar conjuntamente apaixonado e transbordante de bondade — pegava no pequenino ao colo, dizendo-lhe toda a sorte de doçuras, e voltava para perto de mim, exclamando com esse orgulho que é, nas mães amorosas, um dos mais belos dons:

— Olha que é muito lindo!

— Se se parece contigo...

— Não! É o teu retrato. Ora repara: — o nariz, o rosto, certos traços que já se desenham nitidamente...

— Coitado do anjinho!... Só a tua vista descortina essas coisas, Maria Luísa!...

— Tu é que não vês, não queres ver...

Evoco estes devaneios íntimos — e há realmente, nas minhas evocações, um admirável reflorir de alegrias de ouro — para fixar uma ténue impressão da minha felicidade nessa era que já vai tão longe e que eu comparo ao lenço alvo que, na curva duma estrada, diz saudosamente adeus aos que seguem o seu caminho para paragens ignoradas, misteriosas, deslumbrando os olhos no encantamento das paisagens, que ficam para trás, nesta jornada tão curta da vida...

Frederico, o excelente Frederico, meu companheiro de mocidade e que viera para a aldeia depois de concluir o curso médico, visitava-nos amiudadas vezes. A sua casa distava alguns metros da nossa quinta rústica, que pertencera aos pais de Maria Luísa e que constituía o seu dote. Era um amigo. Era um irmão. Eu e minha mulher admirávamo-lo pelas excelsas virtudes de carácter, pelo espírito sensível, pela culta e elevada inteligência — e a presença de Frederico em nosso lar representava a certeza de mais uma afeição incomparável e segura à nossa roda.

A quinta era vasta, ocupava todo um vale com suas extensas terras de cultivo — que nas estiagens, durante os tórridos calores, águas espertas e vitalizantes regavam, fluindo e cantando por entre relvas úmidas e veludosos musgos, nos saibros grossos e pedregosos, levando a seiva às raízes e reluzindo ao sol com uma fulguração de joia; com o seu pomar onde a fruta amadurecida pelo outono, perfumava o ar; com os seus pinheirais umbrosos e de rama verde-negra; com o seu parque onde árvores seculares e de nodosos troncos esgalhavam grandes ramarias para todos os lados, oferecendo guarida aos ninhos e aos pássaros que, nas alvoradas gloriosas, os vestiam de asas palpitantes. A vivenda rural fora construída, em épocas remotas, no meio dum jardim em que, pelas primaveras românticas, havia sempre flores viçosas entoando a sinfonia maravilhosa das cores e das formas. Em maio, da janela do meu quarto, eu e Maria Luísa passávamos momentos deliciosos contemplando as roseiras de trepar que subiam pelas paredes, caiadas dum amarelo forte, desatando-se em grinaldas e festões balouçando, ondulando à aragem; os canteiros de cravos de todo o ano estrelando as verduras de coloridos estridentes e incensando com o seu perfume o ambiente salubre; as azáleas que pareciam bandos de borboletas pousadas levemente sobre as folhagens; as mimosas de que caía, com lentidão, uma chuva aromática e dourada. E os dias, as semanas deslizavam apressadamente sem deixarem na nossa sensibilidade cristalizações de aborrecimento e de cansaço, sem nos inclinarem para o gosto das coisas amargas e sem serem notados na sua fuga incessante.

Como a felicidade morava na nossa vivenda, Maria Luísa desejava ardentemente que, em volta de si, tudo fosse venturoso também, que não houvesse pobreza, miséria, aflição nos casais desabrigados dos jornaleiros, infâncias nuas ou esfarrapadas, orfandades transidas e suplicantes aos acasos do infortúnio. Se saíamos com Frederico, em vagarosos passeios pela povoação, ela levava sempre o seu saco cheio de roupas para os rotos, de pão para os esfomeados, de dinheiro para aliviar os sofrimentos da penúria. Os pequenitos já a conheciam e, se a viam aparecer, sorridente e compadecida, dirigiam-se-lhe numa algazarra jovial, agarrando -se-lhe às saias. Frederico ria; eu, enlevado, ria igualmente...

Uma tarde, lembro-me de que o padre Júlio — um melancólico sacerdote muito seco, muito mirrado, com um rosto cortado de rugas e de vincos, que envelhecera entre a gente humilde a quem revelava e explicava o verbo divino de Jesus — encontrando-a a lavar, na fonte da povoação, a perna ferida e ensanguentada dum menino que caíra, tirou o chapéu respeitosamente, dizendo -lhe que apenas na Bíblia vira mãos tão fidalgas exercendo santamente a caridade. Frederico, com uma comoção que não pudera disfarçar, bateu brandamente no ombro do padre Júlio, apoiando-o; eu chorei, e Maria Luísa, erguendo para o bom clérigo o rosto afogueado, interrogou-o nestes termos:

— Pois, não é o meu dever? E merece, porventura, o dever realizado tantos aplausos?

— Decerto, merece, minha senhora, porque vão sendo raras as pessoas que sabem cumpri-lo — asseverou o sacerdote.

Dizendo isto, padre Júlio seguiu o trilho do atalho que rompia através dos campos, no meio de valados e sarças onde as madressilvas enfloravam. Muito bem me recordo de que Frederico apertou silenciosamente a mão de Maria Luísa e de que eu a beijei com transporte e devoção pela sua piedade que se estendia a tudo o que padecia dos males inevitáveis, às amarguras, as desditas, aos fundos desesperos. Ela, muito enleada, exclamou:

— Ai está... Por um ato trivial que nenhuma criatura se negaria a praticar, quase me canonizam! Que fiz eu, justos céus?

— Mostrou que é, realmente, uma mulher no que as mulheres têm de superior, pela comiseração, pelo espírito de sacrifício, pela tendência para o bem, pelo carinho, pela afetividade — atalhou Frederico.

Continuamos, calados, o nosso passeio, durante algum tempo interrompido pelo incidente. A tarde baixava sobre a terra como uma flor de aragem e de luz que se desfolhasse e já à beira das sebes se desenrolavam grandes panos de sombra. Das granjas, das herdades tranquilas, ascendiam colunas direitas dum fumo branco dissipando-se no ar límpido e macio. Encontrávamos de instante a instante manadas de bois que regressavam aos currais, voltando das pastagens por onde todo o dia tinham andado atolados nos ervaçais viçosos, conduzidos pela varinha — de aguilhada reluzindo à luz como uma estrela — de lindas boeirinhas descalças que Maria Luísa afagava. Pelas congostas solitárias e adormecidas chiavam pesados carros que recolhiam da lida campestre, assustando os melros pelas balsas. Qualquer coisa — talvez a mudez em que nos abismávamos — nos inquietava: e foi Maria Luísa, com o seu fino sentimento feminino, quem reincitou o diálogo, dizendo:

— O padecimento dos desgraçados aflige-me, certamente, e se eu pudesse sará-lo como quem sara uma chaga, com que entusiasmo me dedicaria a essa obra humana! Mas há outro padecimento que mais me punge: — é o das criancinhas. Tenho meditado longamente na desigualdade da sorte enigmática que a uns com generosidade oferta todos os regalos, todas a opulências, todas as riquezas, e que para outros nada tem. Enquanto uns vivem entre sedas, veludos, flores, outros rasgam os pobres pezinhos nas pedras, passam fome e frio, agonizam lentamente. E porquê, meu Deus, por quê?

— Eis aí uma ambição de igualdade que somente uma doce mãe pode formular com tanta justiça! — comentou Frederico.

— Na realidade, sou mãe, tenho um filho que é toda a minha fortuna e é ele, decerto, que dita as minhas palavras... E quem sabe para que está destinado? — murmurou ela, parando e interrogando-nos com a vista.

— Maria Luísa — gritei eu — Maria Luísa, que horrível hipótese!...

Efetivamente, minha mulher, com uma simples dúvida que as agruras e as asperezas irremediáveis da existência inspiraram à sua emotividade materna, tinha-me feito entrever, num relâmpago, as maiores crueldades para o nosso filho que eu ansiava por ver crescer num mundo inalterável de paz e de amor, e para quem aspirava os maiores triunfos, as maiores vitórias.

Frederico compreendeu a minha perturbação, entendeu o meu sobressalto e, para desviar o fio da conversa, preguntou alegremente:

— É verdade, Carlos, já pensaste na carreira que escolherás para o teu morgado? E vossa excelência a também, Sra. D. Maria Luísa? É importante isto.

— Por mim, já pensei — disse eu, agradecendo a delicadeza de Frederico.

— Então, qual é?

— Decidi fazê-lo milionário, conquistar-lhe esta esplêndida soberania.

Maria Luísa sorria, encantada, exclamando:

— Oh! meu pobre amor! Que diz sobre a escolha, Frederico?

— Eu digo, minha senhora, que mesmo nestes dias hostis de revoluções, de movimentos terríveis, de quedas de potentados, o ouro é ainda uma grande, uma invejável comodidade.

— Pois, está claro que é — aclamei. Tu estás no segredo da verdade, és sagaz, Frederico!

Tínhamos chegado, sem darmos por isso, ao portão da quinta, que era de ferro. Toquei a campainha, que retiniu fortemente na solitude da tarde expirante. Não tardaria o crepúsculo a adelgaçar e a alongar as formas paradas. Manuel, um criado de confiança, veio abrir. Presos à sua corrente, ao fundo do jardim, os meus dois cães da serra, de pelo fulvo e dentes afilados, ladravam furiosamente.

— Entra! — disse eu para Frederico, enquanto Maria Luísa corria para o filho que a ama lhe mostrava, de longe. Jantas conosco.

— Já jantei, homem! Na aldeia, sigo os costumes dos camponeses, janto ao meio dia. À tarde, apenas tomo um caldo.

— Pois, tomarás o caldo à minha mesa, que diabo! Olha que não me arruínas com isso...

— Está bem. Entro...

E entrou, pegando no meu filho com a solicitude dum pai — ele, que era um solteirão incorrigível! — o que fez dizer a Maria Luísa, com um sorriso afável:

— Sabe que tem muito jeito? Mas por que se não casa, por quê?

— Porque sou um bicho serrano e não saberia tratar com cuidado a flor que fosse minha mulher, Sra. D. Maria Luísa.

— Desculpas de mau pagador. Não casas porque és egoísta — afirmei eu.

— Egoísta? Essa agora! Egoísta por não querer que a mulher que se me devotasse viesse a sofrer? Altruísta, se fazes favor.

— Maria, temos em nossa casa São Francisco de Assis... À sopa!

O jantar, a que Frederico assistiu sem comer, decorreu entre as jovialidades duma conversação animada, que minha mulher dourou com a sua extraordinária vivacidade: — e foi ao café, que tomamos na varanda já em pleno ocaso da luz, que Frederico nos fez, impensadamente, a narrativa que tanto penalizou Maria Luísa e que me causou um tão profundo desgosto que ainda hoje — ao cabo de sonolentos anos! — se não diluiu completamente na minha emoção.

A ama havia recolhido ao quarto, levando o nosso filho que já reparava nas coisas e já sorria, com a sua boquinha sem dentes, quando o amimavam. Então, Frederico, fumando indolentemente um cigarro, ao passo que eu e Maria Luísa nos aconchegávamos nas nossas amplas cadeiras de verga, começou:

— Sempre que vejo crianças pequeninas, ocorre-me o mais doloroso e imprevisto espetáculo da minha vida de clínico.

— Qual foi? Conta — pedi eu.

— É muito triste. Não sei se deva...

— Por que não? — alvitrou Maria Luísa. Também na tristeza há formosura.

— Ah! se vossa excelência a ordena!... Pois, foi este: — pouco tempo depois de eu ter aceitado este partido médico, em que espero morrer, era procurado por uma infeliz rapariga com um pequenito de mama ao peito, toda banhada em lágrimas e com as saias embrulhando-se-lhe nas pernas. Soluçando, implorou-me que fosse ver depressa o marido, que adoecera de súbito e não dava acordo de si.

— Uma desgraça, meu senhor, uma desgraça! — explicou ela.

— Bem! Sossegue que eu vou já. Não há de ser nada.

— Deus o ouça. Mas é... E era tão meu amigo, coitado, tão meu amigo!...

Calcei umas botas grossas, peguei no chapéu e na bengala e parti em companhia da mulher que, sem descanso, chorava e se lamentava, acabrunhada, vencida pela sua mágoa.

— Não chore, não chore — repetia eu, para a consolar. Verá que a doença do seu homem tem remédio.

— Ai! assim seja, meu senhor. Estávamos casados há um ano. Esta criancinha tem só dois meses de idade... E ele é o nosso único arrimo.

Quando entrei no casebre enfumaçado e escuro, deparei a um canto, estendido numa enxerga esburacada, por onde saía a palha de centeio, um corpo inerte. Era o enfermo. Auscultei-o e logo observei que o caso era melindroso.

— Morreu? — inquiriu Maria Luísa, fitando, enternecida, o meu amigo.

— Morreu!... Não podia salvar-se... Mas o horror não está na morte, tão natural na humanidade perecível: — está no drama que se passou... Voltei ao pardieiro na manhã seguinte e a enfermidade agravara-se. O desgraçado tinha apenas algumas horas de vida, e eu, compungido, sentei-me num banco perto dele para suavizar a dor da mulher que ia ficar viúva e que ninguém socorreria na sua miséria.

— Está melhor, senhor doutor? — preguntava. O meu homem está melhor?...

Conservava-se de pé, a meu lado, com o filho nos braços; e eu, para a tranquilizar, mentia--lhe, porque me faltava a coragem para ser verdadeiro e desenganá-la.

— Não perca a esperança... Tenha fé!

— Pois, eu tenho fé, minha Mãe Santíssima! — murmurava a criatura.

Num dado momento, o doente, ardendo em febre, abriu os olhos embaciados, fitando a companheira que naturalmente já não via, e isto foi, para ela, uma trágica revelação.

— Ele morre, meu senhor! Acuda-lhe, que ele morre! — bradava, num desespero.

Apertava nos braços, nervosamente, o pequenino que vagia, fora de si, doida de angústia, desvairada.

— Estás sem pai, meu menino. Deus nos valha com a sua misericórdia!

— Então?! — bradei eu. Não grite assim, que lhe faz mal.

Oh! a desventurada! Sempre de pé, empregava esforços inauditos para sufocar os seus queixumes, para conter o seu pranto, monologando automaticamente:

— Mas, ele morre, ele morre! Ninguém tem pena de mim!

Conservava o pulso do moribundo na minha mão e ia observando, apavorado, a rapidez com que aquela existência tão honesta e indispensável ao amparo de seres aflitivos se apagava. De repente, as pulsações foram-se espaçando e enfraquecendo até que pararam totalmente. Arrepiaram-se-me os cabelos, ergui-me, lívido, com a sensação nunca experimentada de que um peso formidável me esmagava.

— Morreu? — bramiu a mulher com os olhos rasos de água.

— Tenha paciência... Conforme-se. Todos havemos de morrer — respondi, gaguejando.

— Ah! meu Deus! Ah! meu Deus!... Pilho, filho, foi-se-nos tudo... Filho, filho!...

Os músculos da face contraíam-se-lhe. Alucinada, perdida, dava voltas incessantes à roda da enxerga, gritando continuamente, numa espécie de inconsciência:

— Ah! meu Deus!... Ah! meu Deus!...

A criancinha, que ela estreitava cada vez mais contra o seio, soltou um gemido lancinante.

— Olhe o seu filho... Magoou-o!...

— Ah! meu Deus! Ah! meu menino! — soluçava ela.

Segurei-a, tirei-lhe o pequenino dos braços... Estava inanimado. Na sua amargurada perturbação, no seu intraduzível sofrimento, matara-o sem querer, de tanto que o apertava como se nele pretendesse encontrar uma proteção...

— Que pavor, Frederico! Que pavor! — bradou Maria Luísa, fugindo.

— Depois... — ia ele a continuar.

— Pelo amor de Deus, pela nossa amizade fraternal... Não contes mais! — concluí eu dirigindo-me ao compartimento onde Maria Luísa, pálida, cadavérica, se fechara, enquanto Frederico, pesaroso pelo terror que nos causara, se despedia.

— O nosso filho, Carlos, o nosso filho... Onde está? — exclamou ela.

— Tranquiliza-te, meu amor... Nada o ameaça — disse eu.

Maria Luísa adoeceu, com o abalo sofrido: mas logo que as forças lhe renasceram, teimou em sair da aldeia onde estávamos magnificamente instalados, sem ver Frederico que ela estimou sempre: e eu ainda hoje não consigo reavivar este episódio lúgubre — e já o meu filho é um esvelto, gentil, namorado moço! — sem que o coração me bata apressadamente dentro do peito e sem que um singular estremecimento me trespasse de frialdade até à medula...

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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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