Todas
as noites, antes de se meter na cama, ajoelhava sobre uma almofada, em frente
do oratório, a rezar as suas devoções. Não dormiria tranquila, se urna vez só
que fosse deixasse de cumprir essa espécie de penitência, a que se habituara
desde pequenina, quando apenas sabia gaguejar o padre nosso, e raramente
deixava de fazer na testa a cruz que devia fazer no peito. Por maneira que
todas as noites, antes de se meter na cama, ajoelhava sobre uma almofada, em
frente do oratório, a rezar as suas devoções, parecendo-lhe que os santinhos
lhe sorriam, amorosos, por entre flores de papel, onde ela via com mágoa a
irreverência das moscas. A todos adorava e queria muito, mas o Cristo ocupava
um lugar privilegiado nas suas devoções e nas suas simpatias. Era, na verdade,
uma linda imagem em bronze escuro, pregada numa cruzinha de pau preto, suspensa
duma fitinha benta, que o seu noivo lhe tinha dado, numa romaria, antes de
partir para África. As cartas que dele recebia, muito solicito em escrever-lhe,
lia-as fechando-se no seu quarto, ajoelhada em frente do oratório, sobre uma
almofada de suma-à-uma, e era como se as lesse ao seu adorado Cristo, pregado numa
cruz. Tinha por certo que ele havia de preservar o seu noivo dos variadíssimos
perigos de África, deferindo os seus rogos fervorosos, as suas enternecidas
suplicas. Parecia-lhe, às vezes, que ele ia descerrar os lábios para lhe dizer
que tivesse confiança, para lhe assegurar que os seus votos seriam exalça- dos,
que as suas orações seriam ouvidas. E então lhe vinha um desejo louco de o
beijar, de o meter no seio, do lado do coração, quase dentro do peito, a sentir
queimar-lhe as carnes, como a Santa Tereza, uma chama lubrica, embora divina.
Muito
pudica, muito decente, quando acabava de rezar as suas orações, ajoelhada sobre
uma almofada, à hora de se deitar — o quarto frouxamente iluminado por um candeeiro
de azeite, tapava o oratório com uma toalha de rendas simples, e só então se
desembaraçava das roupas brancas, metendo-se entre lençóis, com a camisa de
dormir.
Ora
sucedeu que uma noite, já tinha voltado de África o seu noivo, são e escorreito
como para lá partira, ela deixou de ajoelhar sobre a almofada, rezando as suas
devoções, e como se esquecesse, no seu sonho de noiva que se entrega, de cobrir
o oratório com a toalha de rendas simples, que fizera pelas suas próprias mãos,
e não servia para outra coisa, apenas metida na cama, louca de amor, cortando o
silêncio do quarto pequenino, que uma lâmpada sem vigor alumiava frouxamente,
ouviu o Cristo gritar dentro do oratório, numa fúria de possesso:
— Ó
que grande pouca vergonha!
Durante
o dia não se atreveu a entrar no quarto, retinindo-lhe aos ouvidos aquela
apostrofe violenta que o seu adorado Cristo soltara, e que seria talvez a
condenação da sua alma, apanhada em flagrante pecado de luxuria.
Como
fora possível toldar-lhe assim o juízo a embriaguez de um gozo que não seria
menos intenso pelo fato de ser mais recatado, a volúpia de um prazer que ainda
seria doce se o temperasse um bocadinho de pudor?
Nunca
se despojava da roupa branca para se meter na cama, tendo rezado as suas
devoções, sem tapar o oratório com uma toalha de rendas, e esta pratica era sem
dúvida agradável ao Cristo, porque ela bem via que ele tinha o ar de lha
agradecer, prestes a descerrar os lábios para lhe dar as boas noites. Perante a
sua consciência reconhecia-se duplamente pecadora; mas seria possível que lhe
não perdoasse o Cristo, ele que perdoara à Madalena, pecadora toda a vida,
fazendo do pecado a sua profissão?
Na
outra noite, quando ajoelhou sobre a almofada, a rezar as suas orações, os
olhos mortificados do muito que chorara, a face macerada do muito que sofrera,
pareceu-lhe que o Cristo se tinha deslocado na sua cruzinha de pau preto, e
como o fixasse muito, a querer adivinhar na sua inalterabilidade de bronze o
sentimento que lhe inspirava agora, desfolhada a sua coroa de inocência, bem
via que ele já não lhe sorria como antigamente, e quis-lhe parecer que os
outros santinhos, mais livres que Jesus, escondiam a cabeça para traz das
flores de papel, onde ele nem via agora a irreverência das moscas.
E
nunca mais se meteu na cama, tendo rezado as suas devoções, sem cobrir o oratório
com uma toalha branca de rendas, que não servia para mais nada, e ela fizera
por suas mãos.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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