6/13/2019

Amor!... Amor!... (Conto), de Pinheiro Chagas




Amor!... Amor!...
(Memórias de uma mulher casada)

Sentei-me com desalento numa cadeira, e deixei pender a cabeça nas mãos. Senti quando é horrorosa a soledade quanto se tem vinte anos e um coração ardente. Nessas noites de temporal, em que é tão suave a reunião familiar, via – me eu só, abandonada, entregue a todos os pavores que a solidão inspira, num aposento, que mais parecia túmulo de mortos que habitação de vivos. Era esse quarto o símbolo da minha existência, tal como o destino ma fizera, cárcere sombrio e lúgubre onde eu tinha que encerrar todas as aspirações da minha juventude, todo o fogo vital que me incendia o sangue.

Ergui a cabeça para respirar desafogadamente, porque esses pensamentos haviam – me oprimido o coração, e dei um grito de terror. Defronte de mim um vulto pálido mirava – me como que aterrado. Lágrimas silenciosas deslizavam – lhe pelas faces.

Era a minha imagem que se refletia num espelho em que eu ainda não reparara. Sorri – me do engano; ergui – me e dirigi – me ao espelho. “Pois és tu, Margarida, – exclamei eu – és tu a criança descuidosa, que há pouco dançavas nos bailes com tão mimoso colorido nas faces? És tu a flor das salas? Como estás desbotada, rosa das valsas! Definhas à sombra; mas que sol te poderia reanimar?”

“O amor!” suspirou uma voz íntima, e o quarto iluminou – se com vagos e ignotos clarões, e a tempestade como que se acalmou por encanto, e a sua voz expirante balbuciou aos meus ouvidos: “O amor!” E as linhas do papel arredondaram – se também em graciosas curvas, e murmuraram: “Amor! amor! amor!” Voejaram no quarto invisíveis pombinhas cândidas, e eu ouvia – lhes o harmonioso bater das asas. O rosto, refletido no espelho, desfranziu – se num sorriso, e expulsou as nuvens que lhe toldavam a fronte.

– Que loucuras! – balbuciei.

E levantei – me, peguei num castiçal, e dirigi-me à biblioteca a procurar um livro, que me distraísse o espirito destes perigosos devaneios.

A livraria era uma casa pequena, toda cercada de estantes, que vergavam ao peso de formidáveis infólio. Tirei ao acaso o primeiro volume que se me deparou. Era o segundo tomo dos Trabalhos de Jesus. Isso exatamente eu desejava. O túmulo prometia-me um admirável exorcista contra o demônio cor de rosa que ameaçava perseguir-me. Volte pé ante pé, e entrei no quarto. Coloquei o pesado alfarrábio à cabeceira do meu leito, e principiei a despir-me.

Já não ouvia gemer o vento, nem estalar a trovoada. Tive curiosidade de ver o aspecto da atmosfera e, meio despida, corri à janela e entreabri um postigo.

A janela deitava para o jardim. Cessara de chover, e a lua, filtrando os seus raios por entre as nuvens, banhava os canteiros no seu mágico fulgor. O vento abrandara, e transformara-se numa brisa suave, que agitava as folhas nascentes das árvores. Parecia-me assistir à transição do inverno para a primavera, e cheguei a pensar que esse momento era o momento exato em que findava o reinado dos gelos, e principiava o das flores. A natureza, cansada da luta, deixava-se embalar no regaço da primavera, que surgia coroada de estrelas, e cintilante de poesia e de amor! Amor, sim; essa doce palavra vi-a claramente escrita no vidro em letras de prata por um raio luminoso, que se desprendeu languidamente do seio doa namorada Febe.

Cerrei a janela, e corri para o leito. Ao passar por diante do espelho, relanceei para ele a vista, e divisei um rosto que me sorria com os olhos banhados em vaga languidez. Involuntariamente escondi o seio com os braços cruzados, e, toda trémula e risonha, meti-me na cama, lançando logo a mão a ponderoso volume de Fr. Tomé de Jesus. Abri ao acaso e li:

“Ó amor divino, como prendes, quando na alma te acendes: como cativas, quando à alma descobres alguma parte da formosura de tua face divina! Sem te ver claramente a alma peregrina, só pelo que de ti a vida sente, e pode com tua graça experimentar, como fica livre de si e das prisões da terra, e cativa de ti, e presa de teu amor! Estas tuas amorosas e suaves prisões tanto a atam e possuem, que até dos corporais sentidos lhes mudas o gosto em ti, porque tudo lhe trazes sujeito à tua mão, e obediência do teu amor. Se quer dormir, tu a acordas, se quer descansar, a aguilhoas, se que comer, lhe tiras o sabor, se quer conversar , a apartas; toda a prendes, toda a queres, tudo lhe defendes; sempre amigo, sempre cioso; porque todo te dás, e toda a tomas; todo te entregas, e toda a prendes.”

Deixei descair o livro, cujas páginas rescendiam não sei que namorados eflúvios; sentia volitarem em torno de mim silfos e fadas, que pareciam, ocultos na sombra, segredar uns aos outros dulcíssimas harmonias. O clarão suave da vela parecia oscilar brandamente ao meigo e perfumado sopro desses habitantes do ar. As letras do livro eram outras tantas teclas, que suspiravam melodiosamente as mais voluptuosas árias de Bellini e de Rossini com letra de Fr. Tomé de Jesus. Fui cerrando os olhos, como se o fluído magnético, que enchia o quarto, me oprimisse as pálpebras. A vela estava quase expirando, e, nas vascas da agonia, projetava clarões fantásticos nas cortinas vermelhas do meu leito. Suspirei brandamente, fui-me deixando adormecer, murmurando a palavra: “Amor!... Amor!”

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