Sentei-me com desalento numa cadeira, e
deixei pender a cabeça nas mãos. Senti quando é horrorosa a soledade quanto se
tem vinte anos e um coração ardente. Nessas noites de temporal, em que é tão
suave a reunião familiar, via – me eu só, abandonada, entregue a todos os
pavores que a solidão inspira, num aposento, que mais parecia túmulo de mortos
que habitação de vivos. Era esse quarto o símbolo da minha existência, tal como
o destino ma fizera, cárcere sombrio e lúgubre onde eu tinha que encerrar todas
as aspirações da minha juventude, todo o fogo vital que me incendia o sangue.
Ergui a cabeça para respirar
desafogadamente, porque esses pensamentos haviam – me oprimido o coração, e dei
um grito de terror. Defronte de mim um vulto pálido mirava – me como que
aterrado. Lágrimas silenciosas deslizavam – lhe pelas faces.
Era a minha imagem que se refletia num
espelho em que eu ainda não reparara. Sorri – me do engano; ergui – me e dirigi
– me ao espelho. “Pois és tu, Margarida, – exclamei eu – és tu a criança
descuidosa, que há pouco dançavas nos bailes com tão mimoso colorido nas faces?
És tu a flor das salas? Como estás desbotada, rosa das valsas! Definhas à
sombra; mas que sol te poderia reanimar?”
“O amor!” suspirou uma voz íntima, e o
quarto iluminou – se com vagos e ignotos clarões, e a tempestade como que se
acalmou por encanto, e a sua voz expirante balbuciou aos meus ouvidos: “O amor!”
E as linhas do papel arredondaram – se também em graciosas curvas, e
murmuraram: “Amor! amor! amor!” Voejaram no quarto invisíveis pombinhas
cândidas, e eu ouvia – lhes o harmonioso bater das asas. O rosto, refletido no
espelho, desfranziu – se num sorriso, e expulsou as nuvens que lhe toldavam a
fronte.
– Que loucuras! – balbuciei.
E levantei – me, peguei num castiçal, e
dirigi-me à biblioteca a procurar um livro, que me distraísse o espirito destes
perigosos devaneios.
A livraria era uma casa pequena, toda
cercada de estantes, que vergavam ao peso de formidáveis infólio. Tirei ao
acaso o primeiro volume que se me deparou. Era o segundo tomo dos Trabalhos de
Jesus. Isso exatamente eu desejava. O túmulo prometia-me um admirável exorcista
contra o demônio cor de rosa que ameaçava perseguir-me. Volte pé ante pé, e
entrei no quarto. Coloquei o pesado alfarrábio à cabeceira do meu leito, e
principiei a despir-me.
Já não ouvia gemer o vento, nem estalar
a trovoada. Tive curiosidade de ver o aspecto da atmosfera e, meio despida,
corri à janela e entreabri um postigo.
A janela deitava para o jardim. Cessara
de chover, e a lua, filtrando os seus raios por entre as nuvens, banhava os
canteiros no seu mágico fulgor. O vento abrandara, e transformara-se numa brisa
suave, que agitava as folhas nascentes das árvores. Parecia-me assistir à
transição do inverno para a primavera, e cheguei a pensar que esse momento era
o momento exato em que findava o reinado dos gelos, e principiava o das flores.
A natureza, cansada da luta, deixava-se embalar no regaço da primavera, que
surgia coroada de estrelas, e cintilante de poesia e de amor! Amor, sim; essa
doce palavra vi-a claramente escrita no vidro em letras de prata por um raio
luminoso, que se desprendeu languidamente do seio doa namorada Febe.
Cerrei a janela, e corri para o leito.
Ao passar por diante do espelho, relanceei para ele a vista, e divisei um rosto
que me sorria com os olhos banhados em vaga languidez. Involuntariamente
escondi o seio com os braços cruzados, e, toda trémula e risonha, meti-me na
cama, lançando logo a mão a ponderoso volume de Fr. Tomé de Jesus. Abri ao
acaso e li:
“Ó amor divino, como prendes, quando na
alma te acendes: como cativas, quando à alma descobres alguma parte da
formosura de tua face divina! Sem te ver claramente a alma peregrina, só pelo
que de ti a vida sente, e pode com tua graça experimentar, como fica livre de
si e das prisões da terra, e cativa de ti, e presa de teu amor! Estas tuas
amorosas e suaves prisões tanto a atam e possuem, que até dos corporais
sentidos lhes mudas o gosto em ti, porque tudo lhe trazes sujeito à tua mão, e
obediência do teu amor. Se quer dormir, tu a acordas, se quer descansar, a
aguilhoas, se que comer, lhe tiras o sabor, se quer conversar , a apartas; toda
a prendes, toda a queres, tudo lhe defendes; sempre amigo, sempre cioso; porque
todo te dás, e toda a tomas; todo te entregas, e toda a prendes.”
Deixei descair o livro, cujas páginas
rescendiam não sei que namorados eflúvios; sentia volitarem em torno de mim
silfos e fadas, que pareciam, ocultos na sombra, segredar uns aos outros
dulcíssimas harmonias. O clarão suave da vela parecia oscilar brandamente ao meigo
e perfumado sopro desses habitantes do ar. As letras do livro eram outras
tantas teclas, que suspiravam melodiosamente as mais voluptuosas árias de
Bellini e de Rossini com letra de Fr. Tomé de Jesus. Fui cerrando os olhos,
como se o fluído magnético, que enchia o quarto, me oprimisse as pálpebras. A
vela estava quase expirando, e, nas vascas da agonia, projetava clarões
fantásticos nas cortinas vermelhas do meu leito. Suspirei brandamente, fui-me
deixando adormecer, murmurando a palavra: “Amor!... Amor!”
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