Amor,
amor
— O amor tem as suas singularidades,
creiam! — afirmava Nuno a um grupo de senhoras com quem estava conversando, na
praia, à hora idílica do banho, sob um toldo de lona, donde a sombra descia,
veludosa e suave.
E como no rancho havia doces raparigas
de olhar claro e pensativo apenas entradas nos mistérios da adolescência, ele,
exagerando propositalmente, fez uma larga e irônica divagação sobre as paixões
amorosas.
— Aos dezoito anos, por exemplo, não haverá
coração feminino que não sonhe exaltadamente com a romântica aparição dum
príncipe louro e juvenil que traga a flor dos olhos extasiada nas estrelas e
que surja de repente na curva duma estrada, à beira duma floresta, nas
sumptuosidades decorativas dum baile, exibindo a sua palidez e a sua tristeza
de incompreendido.
— E aos vinte? — preguntaram as
senhoras, em coro e sorrindo.
— Aos vinte, as almas ingênuas ainda vagueiam
pelas floridas regiões da quimera, idealizando bardos coroados de violetas e de
mirtos perfumados à moda helênica, que venham, nas noites de luar, fazer ouvir
as suas teorbas e os seus arrabis sob os balcões namorados, esperando as meigas
confidências das vozes soluçantes. Dos vinte anos em diante, as baladas começam
a aborrecer.
— Ora essa! — murmurou o coro, sarcasticamente.
— Decerto, minhas senhoras. As
realidades da vida são incompatíveis com os poéticos estados de graça.
— E então?
— Então, como a partir dessa idade a mulher
se torne mais positiva, mais refletida e mais terrestre, a sua ambição lírica
transmuda-se. Já não faz questão de príncipes e de trovadores: deseja,
simplesmente, um homem rico que possa satisfazer Lodos os seus caprichos de
luxo, de elegância, que disponha do dinheiro necessário á realização de todas
as suas vaidades.
— Oh! que mau psicólogo é!...
— Mau psicólogo? Retifiquei há muito a
precisão das minhas análises psicológicas. As criaturas com a minha experiência
têm a obrigação de se não enganarem e de não serem ligeiras nos seus juízos
críticos.
Estava uma linda manhã dos fins de
setembro, já entristecida por uma vaga melancolia outonal. Dos céus altos caía
sobre a paisagem uma luz branda que dourava as perspectivas. O mar
espreguiçava-se indolentemente na nitidez da claridade, enrugando-se sob o azul
translúcido como um cetim desdobrado ao vento e tocando-se, de longe a longe,
da brancura das espumas, tênues e frágeis como rendas. A essa hora, o ar era
mais ligeiro, impregnando -se do cheiro acre das rezinas dos pinheirais, e o
sol dardejava como uma rosa de fogo. Às vezes, passavam, deslizando, escorregando
sobre as águas, talhando sulcos luminosos e leves nas ondas, pequeninos barcos
abrindo a asa alva das velas à lenta aragem: e ao fundo, o horizonte era todo cor
de rosa e ouro. As crianças, com cabelos em anéis sobre a brancura dos bibes, brincavam, saltavam, de pés nus,
na areia, que refulgia: e à volta de Nuno, escutando os seus paradoxos ou as
suas blagues, agitava-se e pairava
animadamente, todo um bando de raparigas que traziam no peito um sonho de
ternura.
— Se querem que lhes diga — continuou ele
— asseverarei que os homens, tão mal julgados pelo Eterno Feminino, são
incomparavelmente mais sinceros e constantes nos seus sentimentos, do que as mulheres.
— Que mentira! — acudiram muitas vozes
ao mesmo tempo. Os homens!... — protestaram desdenhosamente.
— Sim, minhas senhoras, os homens!
E acendendo um cigarro indolentemente,
cantou:
La dona e mobile
Qual pluma ai vento...
— Isso é o que diz, inconsideradamente,
a canção do Rigoleto.
— A canção é verdadeira.
— Provas! Venham provas! — pediram de
vários lados.
— Certamente! — respondeu Nuno.
Recostando-se na sua cadeira tosca e
soprando com delícia, à brisa matutina, baforadas de fumo que se azulavam na
atmosfera, espiralando-se e dissipando-se, Nuno exclamou:
— Querem então provas duma paixão masculina
bem sincera, bem leal e constante? Então ouçam: — Conheci outrora um homem
extraordinário que, na mocidade, amou sem
esperança uma bela mulher que fez a tortura, o encanto e a saudade da sua
existência.
— Ama-se justamente assim nos romances!
— interrompeu uma dama, rindo com ironia.
— E na vida, creia. O caso que vou
narrar, por mais falso que pareça, é absolutamente verdadeiro; mas, peço que me
não interrompam, para que as minhas recordações se não obscureçam... Disse que
esse homem amava sem esperança, porque a mulher por quem se apaixonara era
casada de poucos meses e porque o meu amigo foi sempre um homem de princípios
em quem a obrigação, o dever moral, prevaleciam através de tudo, mesmo dos mais
fundos egoísmos.
— Oh! então foi, decerto, educado por São
Francisco de Assis — atalhou com zombaria a mesma voz impertinente.
— E por que não seria educado pela
própria consciência? — replicou Nuno.
— Em amor, a consciência não passa duma
fútil imagem literária — atalhou a sua contraditora, uma loura de olhos azuis,
leitora assídua de Paul Bourget.
— Nesse caso, o meu amigo constituía uma
exceção à regra geral, porque tinha uma consciência íntegra... Durante longos
meses de angústia, a sua adoração, que tanto o fazia sofrer, foi aumentando
sucessivamente e, para se dominar, para recalcar dentro de si o segredo que o
sufocava, empregava os maiores esforços. Procurava ver, todos os dias, a sua
deusa tirânica, seguia-lhe docilmente os passos, sem vontade, incapaz de rebeldias
vitoriosas contra aquele amor que considerava absurdo, mas por tal forma
disfarçava a sua perturbação, que nunca se traiu aos olhares mais subtis.
Constantemente a surpreendia, feliz, descuidada, com a sua alegria, a sua
beleza dominadora, a massa dos cabelos negros enrolados no alto da cabeça, os
olhos perscrutadores e dum verde quase líquido, que riam sempre e lhe
iluminavam a fronte. Insurgia-se contra este despotismo que o trazia alheado,
indiferente, esquecido das coisas sérias da existência, numa abstração
espiritual, num cismar vago flutuando em atmosferas imateriais, prometia a si
mesmo libertar-se, fugir, recuperar a serenidade perdida, mas terminava por sucumbir.
A ideia da separação era-lhe dolorosa, intolerável, e ia-a adiando sempre para
o dia seguinte, pensando que teria muito tempo para ser infeliz. Contava então
vinte e dois anos e entrava apenas nas duras realidades do mundo.
— Quanto desinteresse e que anomalia! Porque
nessa idade, como o senhor disse há pouco, o que seduz é o dinheiro, a ambição
do prazer
material — bradaram triunfantemente as
senhoras.
— Perdão! — atalhou Nuno. Eu falei acerca
das mulheres. A minha teoria não pode aplicar-se aos homens que,
ordinariamente, mostram um absoluto desapego pelos bens temporais... Mas
escutem! Não conseguindo por mais tempo vencer o seu desespero, abafar a sua
dor, o meu amigo decidiu-se a partir.
— Bem diz o provérbio: — longe da vista,
longe do coração.
— O provérbio desta vez falha, minhas
senhoras. Não afirmei eu que o meu apaixonado era uma exceção à regra geral?
Afastado da criatura que lhe havia inspirado um tão puro e forte amor, quis-lhe
ainda com mais ansiedade e mais constância. A sua veneração tornara-se por tal
modo absorvente que foi a preocupação, o cuidado conjuntamente amargo e terno
da sua vida. Viajou, trabalhou muito, enriqueceu e os anos, passando sobre ele,
envelheceram-no...
— Já sabemos o resto. É escusado
continuar.
Como nas novelas, esse namorado infeliz
merecera a proteção das divindades benéficas, que eram suas madrinhas e que na
infância lhe embalaram os sonos cândidos e inocentes. Vendo-o triste e
acabrunhado aos quarenta anos, decidiram levar-lhe a ventura a casa, e uma
tarde, reunidas, assassinaram o marido da mulher que o trazia enfeitiçado, deixando-a
viúva...
— Ou ela se divorciou...
— Sim! Ou ela se divorciou, o que
dispensava as crueldades. Depois, já quando estava inteiramente livre, ou pela
viuvez ou pelo divórcio, o que tanto importa, o seu amigo casou com ela. Enfim,
sós!...
Na praia ia uma jovial balbúrdia de
risos, de gargalhadas, de exclamações. Algumas banhistas retardatárias entravam
na água, arrepiando-se de frio e deixavam boiar os corpos, de curvas
harmoniosas, ao lume das vagas, como esplêndidas florações de carne. Outras, saíam
do mar, com as roupas encharcadas desenhando-lhes as formas vigorosamente; e
Nuno, um momento distraído a contemplá-las, imaginava que novas Vênus, como nas
alvoradas helênicas, nasciam das conchas marinhas.
— Não foi assim? Diga! — reclamou o
bando sarcástico.
— Não, minhas senhoras. Por mais que
fantasiem não encontrarão o desfecho da minha história verídica.
— Oh! então!...
— Se ela é absolutamente real e a
verdade se não compraz com frivolidades!... Até aos quarenta anos, o meu amigo
foi completamente fiel à visão amorosa dos seus tempos moços e confiantes.
— Apre, que dedicação! — interrompeu,
gracejando, o rancho das ouvintes.
— Não é assim? As mulheres desconhecem,
bem sei, esta lealdade, que é uma das raras virtudes do coração humano. Só o
sexo forte oferece ainda destes exemplos eloquentes. Não o dizia eu há pouco?
— Não divague! — acudiram as senhoras já
interessadas e um pouco vexadas pelo sarcasmo de Nuno. E depois?
— Depois, o meu amigo, um dia, condenado
a uma velhice solitária e desamparada de dedicações, teve de súbito o desejo de
voltar a ver os sítios em que fora feliz. Passara pela existência sem lhe
sentir o encanto, a doçura, a meiguice: e parecia-lhe justo este regresso ao
passado, onde ficara abandonada, pelo seu afeto, uma pura flor de beleza. Para
lá se dirigiu, como um peregrino, como um romeiro piedoso, transfigurado por
uma emoção, que a saudade suavizava: e ao chegar à aldeia onde conhecera, em
auroras findas, a mulher inolvidável, ia recordando tudo o que o enlevara e
toda a felicidade que perdera. Eram ainda as mesmas as árvores que lhe tinham
dado sombra propícia na mocidade, encontrava as mesmas vivendas com diligentes menagères lidando no interior, desabrochavam
nos jardins as mesmas rosas — e, no entanto, uma grande mudança se havia operado,
tanto no meio envolvente como na sua alma. O seu sentimento, que outrora
confiara, desalentara-se, resignando-se à melancolia das dores irremediáveis: e
as crianças que antigamente conhecera, galrando em ranchos joviais e contentes,
estavam agora casadas e tinham filhos. O meu amigo, pensando nisto, considerava
a sua irreparável falência — a falência dum lar que fosse o seu refúgio, a
constituição duma família que o rodeasse de bem-estar. Tão depressa a vida foge!
A gente fecha os olhos, adormece um instante e quando acorda, desconhece o que
nos cerca.
— E nada mais? — preguntaram
ansiosamente as senhoras.
— Esperem! A história ainda não acabou!...
O meu amigo, movido pela intensidade das
suas evocações, quis contemplar, outra vez, a morada silenciosa da mulher que
tinha amado com tanta abnegação e um incomparável espírito de sacrifício, e
procurou-a entre as outras vivendas. Lá estava ainda, com os seus telhados de
largo beiral onde as andorinhas faziam ninho pela primavera, entre arvoredos e
jardins. Diante dela, as suas recordações adquiriram maior lucidez. Perdia-se
em suposições e hipóteses. Albina seria viva?
Teria ela compreendido algum dia, com
esse quinto sentido que as mulheres possuem, a sua muda adoração, teria
surpreendido a intensidade do seu amor num olhar mais febril e revelador? Decerto
que não! Parecera-lhe sempre tão serena, tão quieta!
Assim meditava eu, por uma destas tardes
de setembro, em que uma vaga nota outonal e meiga melancoliza já a natureza com
tintas de uma suavidade indizível, ao ver passar para o cemitério essa pobre
criatura que mal teve tempo de viver e que, por certo, nunca soube o que eram
os prazeres e as alegrias inefáveis do mundo. Expirara no momento doce em que
as andorinhas emigram e em que na atmosfera erra uma fina serenidade elegíaca,
ao amarelecer das folhas e ao empalidecer dos ocasos religiosos e tristes. Eu
conhecera-a pequenina, ao colo da ama, entre toucas de renda e cambraias
vaporosas, com uma beleza angélica a iluminar-lhe a face cândida, que nenhuma
impureza, que a mancha mais leve ainda tinham maculado. Resplandecia de
inocência e castidade na primeira alvorada da sua infância, e não sei que
virgindade, que halo imponderável de sideral poesia a aureolavam de esplendor.
Os que dela então se aproximavam, era como se recebessem a visitação duma
divindade visível.
Vi-a, depois, em plena irradiação da sua
graça juvenil, lembrando uma dessas princesinhas espanholas com longos cabelos
que parecem feitos de ouro e de soda esfiada e que Velásquez,
historiador de realezas, imortalizou em telas incomparáveis. Toda a alma
inocente se lhe refletia nos olhos.
E com que adoração, com que amor os pais
lhe queriam! Era a luz purificadora dum lar, a felicidade das criaturas que
viviam absorvidas, extasiadas na refulgência etérea da sua formosura. Deus
concedera-lhe a piedade tocante e a mais linda mocidade que ainda admirei.
Certamente que do chão que os seus pés calcassem, desabrochariam jasmim;, como
nas suaves lendas e nos milagres da igreja. Santa Beatriz, quando orava,
deixava cair da boca pálida lírios brancos; o bordão de São José refloriu um
dia em açucenas, que os ventos ardentes e os sóis calcinadores não conseguiram
crestar; Santa Isabel transformava as esmolas em flores. E ela era assim! Em
todo o seu ser delicado e frágil havia um mistério infinito e perpétuo: a mãe,
quando a apertava nos braços comovidamente, murmurava com fervor:
— Tu não pertences à terra, meu amor!
Mas que Deus se lembre do que tenho padecido e te conserve para sempre na minha
companhia!
E cobria-a de exaltados beijos. O pai
jamais a olhou sem que as lágrimas lhe não turvassem a vista; e, quando em casa
havia aflições, desesperos e agonias, abraçava-se nela, invocando a proteção
celeste e suportando com resignação todas as amarguras e todas as dores.
— O meu tesouro é este! — exclamava com
paixão e confiança.
A filha afagava-os amorosamente e
chorava de contentamento; e os anos deslizavam com placidez, sem um sobressalto
mais agitado. Refloriam vergéis e pomares, no peito dos desalentados fazia-se a
paz e cada primavera que surgia alegrava o mundo inteiro, como um perdão que do
céu caísse misericordiosamente.
Volveram tempos: eu tive de sair da
aldeia para os combates ásperos da vida; e, durante a longa ausência, não
tornei a ouvir falar dela. Mas conservava a sua imagem dentro da alma,
translúcida e luminosa, como um sonho de ideal beleza. Às vezes, reconstituía-a
na minha imaginação, com a sua evocadora e ingênua pureza e sentia encanto em
relembrá-la.
Quando voltei, encontrei-a em plena
juventude, e comparei-a a uma árvore que por minhas mãos plantasse e que, dum
verão para o outro, sem eu saber como, se cobrisse de flor.
Na adolescência, tinha um ar olímpico de
deusa, uma fronte espaçosa e alta que os cabelos fulvos aureolavam duma nuvem
dourada e uns olhos que dir-se-iam pervincas — dessas pervincas que aparecem
nos primeiros dias dos invernos serenos, aveludadas, macias e de tons ainda não
esvaídos.
— Como esta vida é! — dizia eu, ao
considerá-la vagarosamente. Bastam algumas horas para que ela transfigure as
almas. Num dia, nasce-se, ama-se, sofre-se e desaparece-se. E como a existência
humana é desgraçada! À volta de nós, tudo remoça — troncos, veigas, folhas,
ervas humildes. A paisagem tem o seu noivado imortal; nas sebes, ao raiar das
auroras cândidas, quando as espinhosas se desentranham em cachos de
florescências, cantam e sonham ninhos; as sarças enegrecem de amoras ou
embranquecem de cetins brandos, como se sobre elas caísse o pó dos astros,
pelas noites de luar; os jardins vicejam. Depois dos invernos lacrimosos, as
estrelas acendem-se e cintilam, a lua ascende, os azuis do céu brilham! Oh! mas
entre os homens a primavera é rápida e bem depressa declina e a velhice não perdoa!
Luísa — chamava-se Luísa — trazia então
dentro da alma, como um jasmim de luz espiritual, a quimera do amor; e este
segredo cândido maior relevo dava à sua beleza astral de mulher. Para ela, o
mundo era uma ressurreição maravilhosa, desenrolando-se em constelações, em
vergéis, em arvoredos, onde as aves cantavam sempre e onde uma humanidade já
perfeita entoava os seus hinos cheios de fé e de ternura.
Novamente parti e a sua recordação
foi-se apagando na minha saudade, como fumo que as aragens levam para longe e
esfarrapam no ar diáfano; e um dia, já quando na minha lembrança não restava
dela traço mais vivo, impressão mais profunda, eis que deparo com ela, de
noite, à esquina mal iluminada duma rua da cidade onde me encontrava.
Foi ela que me reconheceu e murmurou uma
palavra débil, murmurada com timidez, com receio.
— Quem é a menina? — preguntei.
— Já se não lembra? Sou a Luísa, a sua
amiga de tempos felizes... Hoje estou assim.
Piquei transido! Que caminhos de horror
e de crime ela percorrera, a que pântanos descera, para chegar àquele estado de
miséria inconcebível, mas ainda toda esplendente do fulgor que na mulher nunca
se apaga por mais que se roje nos lameiros da miséria?
— Pois és tu, Luísa!
— Não admira que se não recorde! Todos
me esqueceram e até eu me não lembro. Não sei o que fui nem o que sou! Só sei
que a minha dor é tão grande, que a cada momento peço a Deus que me leve... Mas
a morte não faz caso das infelizes da minha condição!
— Como foi isso? Como vieste tu para este
inferno?
— A sorte!... O meu destino era este! Rompeu
num choro convulso, que fazia estremecer o seu pobre peito magro.
— E teu pai?
— Morreu! Minha mãe também morreu. Só eu
fiquei!... Tenho fome!...
Silenciosamente levei-a para casa, onde
ceou.
Devorava com a pressa alucinada de quem
tinha modo; e enquanto comia, olhava-me espavoridamente e com um ar de dúvida,
como se eu fosse um inimigo.
Diante dela, eu evocava tudo o que fora
essa desventurada rapariga, que se transviara na vereda luarosa da felicidade e
que de queda em queda, fora perdendo tudo o que nela havia de sagrado e de
divino — de divino, porque as mulheres, pelo seu mistério, pela sua bondade,
pelo seu sentimento, estão mais perto de Deus, do que os homens a quem o
desalento e o mal do mundo esterilizam a crença e a piedade. Uma voz secreta,
vinda talvez das paragens remotas da alma, dizia-me:
— Podias ter sido esposa devotada, mãe
admirável, viveres entre beijos e canções, na companhia adorável dum homem que
te amasse e compreendesse tudo o que de sublime existia no teu coração. O teu
lar havias de alumiá-lo de graça e de candura; entre os trabalhos e as
desditas, o braço que se encostasse ao teu ganharia forças e o peito junto do
qual o teu pulsasse, confiança, fé e audácias para os triunfos. Mas perdeste-te
no mar da existência e, no naufrágio, não encontraste uma tábua a que te
agarrasses...
— Foi a sorte! — repetiu ela.
— Sim, foi a sorte! — concordei eu com
tristeza. Devia ser a sorte...
— As criaturas trazem já do céu marcado
o caminho que terão de andar. O meu era este! Não podia fugir à vontade de
Deus. À vontade de Deus ninguém foge!
E entre soluços arquejantes, contou-me a
história da sua perdição. Uma noite, a mãe doente chamou-a, deu-lhe um beijo,
lançou-lhe a bênção e murmurou:
— Vou deixar-te, meu amor. Estás sem
ninguém no mundo.
O seu olhar embaciava-se a pouco e
pouco, ao sopro frio da morte, e as suas mãos iam arrefecendo. Morreu uma hora
depois, por mais que Luísa a chamasse, entre prantos angustiados.
— Como a cova é surda!
Cheio de saudades da morta, o pai
partira um mês mais tarde, sem que Luísa pudesse acudir-lhe.
Ele bem lhe estendia os braços na
agonia, pedindo:
— Ergue-me, filha! Estou a cair num
buraco muito fundo. Não vejo nada... Levanta-me, que te não quero deixar!
Mas Luísa era fraca e não teve poder
para ampará-lo.
— E depois v — interrompi eu.
— Depois, foi isto!...
Ficara sem ninguém que por ela se
interessasse, confessou ela com as lágrimas nos olhos, que já não eram tão lindos
como outrora, nem tinham aquele azul aguado que tanto me seduzia, pela
transparência da cor. Mal a soube para sempre abandonada dos carinhos e do amor
da família, o noivo fugira, esquecera-a. — ele que lhe tinha prometido, e com
que juramentos! — uma adoração que nunca se extinguisse. Outros homens vieram,
todos a desprezaram.
— Que havia eu de fazer? — preguntava
Luísa toda trêmula de vergonha, por ter de revolver os seus pudores e as suas
misérias de mulher.
Sim, que havia ela de fazer, sozinha,
sem corações que a sua dor, a sua solidão, a sua angústia interessassem? Foi
passando de mão em mão, enquanto a sua beleza atraía os indiferentes. Mas
agora, para arranjar a côdea, esmolava as esquinas, nas ruas escuras, porque
andava toda rota. Umas vezes, soldados bêbedos agarravam-na brutalmente e
cobriam-na de beijos bestiais; outras, os garotos espancavam-na.
— Oh! se eu morresse!
Desde essa noite nunca mais a tornei a
ver; mas soube pelos jornais — os jornais trazem tudo: são os historiadores da miséria!
— que a polícia, encontrando -a caída numa praça, a levou em maca para o
hospital. No dia em que quis visitá-la, um enfermeiro disse-me que ela tinha
morrido de manhã, fechando docemente as pálpebras para a luz da vida.
Fui acompanhá-la à cova — era eu o único
— e ainda sinto a impressão de terror que o caixão, avançando entre a fumarada
de quatro tocheiros e atravessando a cidade, me comunicou. Na capela, onde um Cristo
em marfim expirava, pregado à cruz, com pingos de sangue rolando e brilhando
como rubis no corpo rígido, um padre leu soturnamente o latim da oração dos
mortos; e, quando ela desceu à sepultura e as primeiras pás de terra caíram com
estrondo sobre as tábuas nuas do esquife, na minha alma atormentada passavam
estas ideias consoladoras:
— Dorme para sempre, com a leiva úmida
bem colada ao corpo. Alcançaste, enfim, a paz; ao coval não chegam os gritos de
ódio e de raiva que cá em cima se entrechocam. O teu sono será eterno! Mais
tarde, chegará uma hora em que ressurjas para o mundo, minha pobre Luísa! Serás
árvore, quem sabe? Serás flor, e as aragens mornas, pelos estios quentes,
levarão para longe o teu perfume. Serás água dum regato e fugirás e cantarás ao
sol. Serás luz e dourarás as podridões. Dorme! Que ninguém te acorde, que pelo
teu sofrimento, bem ganhaste o repoiso! E as tuas faces não tornarão a corar
dos desejos da vida, e o teu olhar nunca mais se arrasará de lágrimas ardentes.
Descansa...
Subia o luar e na cidade o ruído
esmorecia. Entrei em casa, com a inevitável certeza de que a existência
contemporânea é cada vez mais curta.
Devo estar muito velho! Se eu vi nascer
Luísa e acabo de acompanhá-la ao cemitério, ao fim de tantos anos de sofrimento!...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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