6/17/2019

A Sentença da Tia Angélica (Conto), de Pedro Ivo



A Sentença da Tia Angélica

CAPÍTULO 1
Quem quer ir comigo ao ribeiro?...
Venham daí, que não hão de arrepender-se. A feia e a bonita, a filha do lavrador e a jornaleira, a velha e a moça —  numa palavra... todas as mulheres da aldeia, reúnem-se ali.
As distinções terminam entre elas, desde que ajoelham, umas a par das outras, com as mangas arregaçadas, e as cabeças pendidas para a pedra lavrada, em que ensaboam a roupa.
Se a tenda é o clube dos homens da aldeia, o ribeiro é, com certeza, a assembleia das mulheres do campo.
Vinde, pois, se quereis saber a razão por que o Manuel Tamanqueiro deu ontem à noite uma tareia na mulher; vinde, se desejais descobrir o nome da rapariga a quem o Senhor Abade se referia na última prática que fez, à missa do dia, no domingo passado; vinde, finalmente, para ficardes ao fato das importantíssimas — questões que se discutem neste ponto do globo, nesta pequena aldeia, assente numa baixa e encurralada entre montanhas.
Segui-me, pois conheço um atalho por onde se encurta metade do caminho.
Vamos lá!
Saltamos este pequeno muro, seguimos o carreiro traçado entre o trigo, levantamos o ferrolho daquele portelo, atravessamos o pequeno pinhal além, galgamos outra parede — cuidado com as silvas! — e estamos no monte, que vamos descendo até à presa, formada pelo ribeiro, de onde nos chega já o som das vozes das lavadeiras!
Eis-nos ao pé delas... Estão poucas hoje!... Uma... duas... cinco apenas.
Duas andam a estender a roupa; outras duas, mulheres entre trinta e quarenta anos, acabam de esticar pela terceira vez um lençol, que vão torcer; a quinta é uma simpática figura de velha, rastejando pelos setenta, curvada sobre a pedra em que apoia a mão esquerda, enquanto com a direita agita um pano dentro da água.
A última, indiferente até então ao palrar das duas que estão torcendo o lençol, parece que lá lhe chegou, por fim, aos ouvidos palavra que a incomodou, porque as feições lhe traíram doloroso espanto, e a mão parou de agitar a peça de roupa.
Escutemos, como ela.
— Ó Maria!... Isso não pode ser... — diz uma delas.
— Acredita, Ana... Olha que é verdade!... Puseram-se de mal, e disse-me o Antônio da Capela que o Sr. Joaquim já fora à vila falar com dois letrados!... — respondeu a outra.
— Vocês que estão aí a dizer, ó raparigas? — perguntou então a velha.
— Pois a tia Angélica não sabe?... Foi o Senhor Joaquim do Adro, que se arrenegou com o Sr. Manuel da Portela, por mor da água, e diz que ainda que gaste quanto tem, que há de mostrar ao Sr. Manuel que ainda tem amigos...
— Ora veja a tia Angélica! — atalhou a outra. — Então aqueles, que eram amiguíssimos!... Para onde ia um, ia o outro; quando um tinha um filho, já se sabia quem eram os padrinhos... Estou varada!
— Isso não pode ser! — afirmou — a velha. — Não são homens que esqueçam que as mulheres são irmãs uma da outra! Nada; aí há coisa... Se aqueles dois se põem de mal, o que há de ser da gente da terra?!... Os dois lavradores maiores... Tão amigos desde pequeninos... Nada; aí há coisa!...
E a velha, retirando a peça de roupa, torceu-a, acamou-a junta com outras dentro de um pequeno alguidar, ergueu-se, pô-lo à cabeça e retirou-se, dizendo às duas:
— Isso não pode ser... Aí há coisa!. Adeus, raparigas!
— Adeus, tia Angélica — responderam as outras.
Quando a velha ia já a distância de as não poder ouvir, disse a Sra. Maria:
— Coitada! a tia Angélica não gostou da notícia...
— Se te parece... — observou a Sra. Ana. — Se a pobre de Cristo deve tantas obrigações a ambos...
— Não que eles também, quer uns quer outros, tudo aquilo é boa gente!... — redarguiu a Sra. Maria.
— E, então, esmoleres... até ali — respondeu a Sra. Ana.
Neste momento foram as duas interrompidas pela voz fresca e vibrante de uma das raparigas — que andavam a estender a roupa, cantando para amenizar o trabalho:
O sabão as nódoas tira,
Tudo se lava com água...
Nem um nem outra me tiram,
Me lavam a minha mágoa.

CAPÍTULO 2
O leitor decerto já percebeu que um acontecimento de vulto tinha vindo afinal quebrar a monotonia daquele plácido viver da aldeia.
O sol desaparecera havia pouco, quando a tia Angélica chegou ao povo.
Os lavradores, entregues ao prazer da conversa, que corria em voz discreta, tão entretidos estavam, que só à segunda badalada das Ave— Marias é que tiraram os chapéus.
Agora, que eles se benzeram e trocaram os "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo", acerquemo-nos dos diferentes grupos.
Não tem que ver; não se fala de outra coisa.
Ninguém quer acreditar que os dois maiores da terra estejam de mal; e, coisa notável!... ninguém se pronuncia por este ou por aquele! Não se ouve a voz do ódio, que exulta; não sibila a frecha ervada da inveja; não se nota o miserável prazer do mexerico!
Pelo contrário: conhece-se uma sincera consternação, causada pela desavença dos dois lavradores; vê-se que é real o desejo de reconciliação; não se ouve citar um fato que deslustre qualquer dos dois amigos tornados inimigos, ao passo que se apontam dúzias de boas ações, praticadas por ambos, quer individualmente, quer em comum.
E era merecida a justiça que lhes faziam.
Nascidos no mesmo ano, Joaquim, do Adro, e Manuel, da Portela, tinham crescido juntos, ligados sempre por, até então, jamais quebrantada amizade.
Na escola, se um apanhava meia dúzia de bolos, já o outro sabia a conta que tinha a receber pouco depois, porque o crime de um era sempre o crime do outro: ou não sabiam a lição por causa do mesmo ninho de melro, ou tinha cada um deles atirado a sua pedra tanto ao mesmo tempo e com tão igual certeza de pontaria, que — era impossível descobrir qual dos dois tinha quebrado as telhas do vizinho.
Mais tarde, no tempo das verduras de rapazes, bem precavido devia andar quem quisesse mal a qualquer deles, pois, quando apenas julgava encontrar um, achava com certeza dois marmeleiros, que consideravam a solidariedade como ponto de religião, tanto no ataque como na defesa.
O amor, finalmente, fez-se sentir em ambos ao mesmo tempo, e parece que Deus folgava com a aliança daquelas duas almas, porque de amigos, que eram, fez deles irmãos, guiando-lhes a escolha para duas irmãs, filhas de um abastado lavrador.
Igualmente honrados e ricos, sem segredos entre si, afeiçoados às cunhadas em quem viam irmãs, e aos sobrinhos, em quem, nos seus momentos de expansão, se compraziam a talhar futuros genros, que admira que a amizade da infância justificada pelo correr — dos anos, se transformasse em sentimento fraterno?
Bons e ativos, eram eles a vida daquela aldeia; era a eles que os braços iam pedir trabalho e os corações conselho.
Não havia no povo quem lhes não devesse algum favor, e eram abençoadas as panelas daquelas duas casas, pois, por mais que fossem os pobres, nunca elas tinham deixado de ter no fundo uma tigela de caldo!
Não ficará suficientemente explicada a consternação dos habitantes da aldeia?!
É tempo, porém, de contarmos o que deu lugar à quebra daquela amizade de tantos anos, e para isso basta dizer em poucas palavras o que Madalena, mulher de Joaquim do Adro, e Rosa, esposa de Manuel da Portela, contaram por entre lágrimas, e cada qual por sua banda, à tia Angélica, quando esta — em separado as interrogou.
Corria um Julho ardente, como os velhos de setenta anos se não lembravam de ter sentido; a água escasseava por toda a parte, e o milho abrasado pelo sol mirrava, pendendo para a terra, que expelia o calor por um sem-número de fendas, abertas como outras tantas bocas sequiosas.
Entre os campos, que mais estavam sofrendo, sobressaía um: a melhor peça dos bens de Manuel da Portela, o seu orgulho de lavrador!
Regado até então por abundante manancial, ou Deus lho secara na origem, querendo assim ver como o lavrador receberia uma provação, ou proprietário, arriscado a igual desgraça, lha desviara do curso natural.
Manuel da Portela, prevendo a última hipótese, caminhara um dia inteiro ao longo da veia, que lhe trazia o sangue da sua terra, e só parara quando aquela findou aos pés de um outeiro, base de outro monte mais elevado.
Era ali, naquele monte, que nascia a sua água?...
Deus sabe os desejos que teve de revolver o seio do outeiro!
Quando regressou, vinha triste e pensativo, e, chegado que foi ao campo, pareceu-lhe que os pés do milho, como se lhe lessem no rosto a fatal sentença, se curvavam mais para o chão, e ficou-se ali a cismar!
De repente ergueu a fronte. O rosto revelava violenta luta...
Pouco tempo durou.
Chegou-se a um jornaleiro, que recolhia do trabalho, e disse-lhe bruscamente:
— Dá cá a enxada, ó Francisco,
O outro deu-lhe a enxada, e Manuel da Portela, caminhando para o lado oposto àquele por onde antigamente era regado o campo, entrou de cavar com ardor.
Horas depois, quem se lembrasse de atravessar o campo de Manuel da Portela, molhava com certeza os pés.
O lavrador acabava de cortar a água que ia fertilizar as terras do amigo.
Joaquim do Adro tinha o gozo daquela água por um número determinado de horas.
Vendo no dia seguinte que ela deixava de correr, estremeceu.
Fez o que o amigo fizera na véspera, com a diferença de não ter de ir tão longe.
Doeu-se do abuso e sobretudo da quebra de lealdade do amigo, que, por um pejo natural em quem tem a consciência de não ter obrado bem, lhe não dissera nada.
— Por isso tu não foste lá ontem à noite! — murmurou ele.
O rosto tingiu-se-lhe com o rubor da cólera, e Joaquim, obedecendo ao primeiro impulso, voou a casa do amigo.
— Tu cortaste-me a água!...
Tal foi a primeira frase que soltou.
O outro quis — desculpar-se; Joaquim do Adro azedou-se e alteou a voz; Manuel da Portela lembrou-se de justificar a ação; mas o ofendido falou nos seus direitos, e o ofensor, tornado injusto pela fraqueza da causa, replicou que Deus quando dava a água, a dava para todos, e que, uma vez que ela lhe passava primeiro à porta, se utilizava do favor de Deus.
Chegadas as coisas a estes termos, a discussão tornou-se violenta, e Joaquim do Adro declarou que as leis decidiriam entre eles, mas que estava rota a amizade que os ligava.
Joaquim do Adro saiu furioso.
Chegando a casa, a primeira cena que viu foi a mulher repartindo com escrupulosa igualdade um enorme bolo pelos filhos e sobrinhos.
— Isso!... — bradou ele — colérico. — Dá-lhes o pão a eles, já que o pai nos rouba o dos nossos!... Já daqui para fora, canalha! — continuou ele, dirigindo-se aos sobrinhos.
As pobres crianças, só afeitas às carícias de quem agora as maltratava, hesitaram, cravando no tio olhos de espanto e dúvida; mas, a um gesto expressivo dele, saíram às carreiras.
Pouco depois, ouvidas as explicações dadas pelo marido por entre impropérios contra o amigo, Madalena fazia o que Rosa não cessara de fazer desde o princípio da altercação — chorava!
No dia imediato, partiam para a vila, a horas desencontradas, e entravam em casa dos mesmos advogados Joaquim do Adro e Manuel da Portela.
Quem assistisse às consultas, pasmaria de ver que ambos tinham razão!

CAPÍTULO 3
Nem os bons ofícios da tia Angélica, nem a transparente alusão, feita no domingo adiante pelo abade, que terminou por esperar que quem tinha obrigação de dar o exemplo de boa vizinhança o daria, nem as lágrimas das mulheres, e a tristeza dos filhos, privados dos companheiros de brinquedo, conseguiram abrandar a inimizade dos dois lavradores.
Pequenas misérias vieram ao contrário aumentá-la.
Ao sair da missa, por exemplo, vendo que o filho se aproximava sorrateiramente do primo, Joaquim do Adro exclamou com mau modo:
— Salta já para aqui, Manuel!
E Manuel da Portela, em ato contínuo, deu um cachaço no filho, dizendo:
— Quem te mandou sair de ao pé de mim?
Dois dias depois, quando os moços de Joaquim ido Adro iam roçar um carro de mato, acharam tapada uma servidão, que Manuel da Portela, havia muitos anos, concedera ao amigo.
Tudo anunciava trágico desfecho, e pouco tardou o pretexto que o ia motivando.
Uma tarde, pelo escurecer, voltava do campo Manuel da Portela, quando avistou ao longe o concunhado em companhia de um outro lavrador, e, como não quisesse encontrar-se com eles, para não ter de saudar o outro vizinho, honrado velho que — ele respeitava, coseu-se com um muro, a esperar que eles passassem.
O Diabo, porém, que é tendeiro, fez com que parassem exatamente ao pé do muro, e Manuel da Portela, que estava pelo lado oposto, teve de ouvir, a par dos sãos conselhos que o bom do velho dava a Joaquim do Adro, para o acalmar, os insultos que este proferia, quando se referia a ele, que o estava ouvindo, e quase se descobre, para lhe tomar contas, quando ele terminou, dizendo e repetindo:
— Não ma tornou a cortar e tem sido a redenção dele!... Se ma corta, racho-o!... racho-o — de meio a meio!...
Ora, Manuel da Portela, na visita que fizera ao campo, achara o milho tão seco, tão seco, que estivera quase... quase a cometer de novo o  delito por que ameaçavam rachá-lo de meio a meio.
Ouvindo a ameaça, o delito transformou-se em justo desagravo, e, dando uma volta, Manuel foi a correr cortar a água.
Joaquim do Adro, que levava a enxada ao ombro, viu, quando chegou ao campo, a repetição da repentina seca.
Agarrar a enxada pelo meio do cabo, correr perdido e louco e chegar arfando de furor e cansaço, pouco mais tempo lhe levou do que a mim a escrever isto.
A sua primeira ideia foi realizar a ameaça e rachar o outro de meio a meio; deteve-o... não sei o quê... a mulher, os filhos, o seu bom anjo, talvez!
Ficaram os dois frente a frente, mudos, separados pelo rego da água, Joaquim com os olhos brilhantes de cólera, Manuel com os dele animados por expressão de indomável azedume.
— Queres ou não queres pôr já essa pedra no seu lugar? — perguntou finalmente Joaquim, batendo com o olho da enxada na pedra, que o outro empregara, como dique, no rego que cavara.
— A pedra está bem onde está, e só vai para o seu lugar quando se acabar a rega. — respondeu o outro em voz surda, mas firme.
— Põe a pedra, ou ponho-a eu... — bradou Joaquim.
— Nem tu, nem eu... — retorquiu Manuel.
Pois espera que vais ver... — disse Joaquim, por entre os dentes cerrados.
E impeliu a pedra com a enxada para a boca do rego aberto por Manuel.
Este, sem dizer palavra, repeliu, também, com a enxada a pedra, mas com tal força, que ela, saindo do lugar onde Joaquim a colocara, veio encravar-se no rego antigo.
Joaquim do Adro deu um passo à retaguarda; Manuel fez o mesmo, e os dois miraram-se com espantosa energia, apertando com as mãos convulsas os cabos dos instrumentos de paz, tornados armas de guerra.
Eles conheciam-se bem e sabiam que não havia melhor jogador de pau do que qualquer deles, por todos aqueles arredores.
por fim, as enxadas ergueram-se e cruzaram-se.
-Ó homens, que vos deitais a perder!... Olhai ao menos para os pés, já que não olhais para o Céu!... — bradou — de repente voz pouco distante.
Os dois pararam maquinalmente e olharam.
era a tia Angélica, que voltava do monte, gemendo sob o peso de um molho de rama de pinheiro.
— Olhai para os pés, desatinados — continuou ela, aproveitando habilmente a pausa dos dois contendores.
— Olhai, olhai!... Vede se não é mesmo Deus Nosso Senhor, que vos está dizendo o que haveis de fazer!... Mas olhai para os pés, homens!
Notando a insistência da velha, os dois olharam e viram a água que, espraiando-se para ambos os lados, lhes estava molhando os pés.
A pedra, encravando-se no meio do rego primitivo, impedira a água de correr, e esta, não podendo vencer o obstáculo, crescera e trasbordara para os lados.
— Então?!... É por Deus ou não é?!... Não está Ele mesmo a dizer o — que haveis de fazer?... O que chega para um, bem repartido, chega para dois!... E isto não é novidade para nenhum de vós... Por que é que acabáveis sempre o serviço a tempo e horas?... Por que vos ajudáveis, toleirões! Quem criou a tua Joaquina, Manuel? Não foi a Madalena?... E quem passou quinze dias e quinze noites ao pé — da tua Madalena, sem se despir nem pregar olho, quando ela esteve com a febre maligna?... Não foi a Rosa, — dize, Joaquim? Apertem já essas mãos, seus mal-agradecidos!... Apertem, que é Deus quem manda!... Vós não vedes a água?!...
A pobre tia Angélica, que tinha atirado o molho ao chão, mostrava no rosto, nesse instante, uma expressão de tão irresistível autoridade, que os dois, não podendo afrontar-lhe a severidade do olhar, baixaram os olhos.
As palavras da tia Angélica, (que tão habilmente buscara o auxílio de Deus e fizera avivar a recordação dos recíprocos serviços, calaram finalmente no ânimo de ambos.
— É Deus quem manda... — disse finalmente Joaquim, estendendo a mão.
— Perdoa-me, Joaquim! — respondeu o outro, apertando-lha.
E, cedendo à comoção, lançaram-se nos braços um do outro.
— Ora até que afinal! — bradou a tia Angélica, chorando de prazer. — Safa!... Cuidei que não tornavam a ter juízo!... Sempre se podem gabar de que tinham Deus por si!...
— Ó tia Angélica! — exclamou Manuel da Portela. — Nós como lhe havemos de agradecer?
— Não há nada mais fácil!... Ajudem-me a pôr outra vez o molho às costas — respondeu ela.
— Não consinto!... — atalhou Joaquim. — O molho levo-o eu.
— Eu... — disse Manuel, desviando o amigo e pegando no molho.
— Bonito! — interveio a velha, rindo — vejam lá se pegam agora por'mor de mim!...
E rindo e chorando de prazer, lá seguiram os três direitos à povoação.

CAPÍTULO 4
Não é possível descrever a expressão de jubiloso espanto que iluminou o rosto de Madalena, quando viu entrar os dois, seguidos pela tia Angélica.
O primeiro pensamento foi para Deus, o segundo para a irmã.
Apenas a emoção lhe consentiu falar, exclamou:
— Vai já chamar a tia Rosa, minha filha!... Corre, Joaquina!...
Imagine o leitor o quanto as duas irmãs choraram; o que disseram, as carícias que fizeram à tia Angélica!... Imagine, que eu não sei, não posso descrever-lho.
Passada a primeira explosão de sensibilidade, era encantador o quadro que formavam aquelas duas famílias.
As mulheres, sentadas uma defronte da outra, tinham trocado os filhos mais novos, e as pobres crianças, vendo-se novamente afagadas pelas — que consideravam segundas mães, brincavam agarradas ao pescoço das tias, cobrindo-lhes o rosto de beijos, que aquelas retribuíam com usura, mirando-as tão desvanecidas, que levavam a cegueira até quererem mutuamente convencer-se de que os sobrinhos haviam crescido sensivelmente, durante aquela separação de dias.
O filho mais velho de Joaquim brincava com a filhinha primogênita de Manuel, enquanto que os dois lavradores conversavam alegremente, e, dando de tempos a tempos uma palmada no ombro um do outro, diziam à porfia:
— Ora este Manuel!...
— Ora o diabo do Joaquim!...
E, sentada a um cantinho, contemplando-os a todos com o bondoso sorriso — de uma consciência satisfeita, via-se a tia Angélica, prestando inquieta atenção à conversa dos dois.
Bem convencida, por fim, de que era sincera a reconciliação, voltou-se para a dona da casa e disse-lhe em tom galhofeiro:
— Ó Madalena! Dá vinho a estes homens, pois a estes é a água que lhes sobe à cabeça... não é o vinho!
Madalena saiu, e voltou logo com uma enorme caneca, que entregou ao cunhado, e este erguendo-a exclamou:
— A saúde de quem nos aconselhou melhor do que todos os letrados, e decidiu como nenhum juiz era capaz de decidir!... Viva a tia Angélica!
— Viva a tia Angélica! — bradaram todos em coro.
— Viva Deus! filhos... — emendou a velhinha. — Viva Deus, que vos refrescou a cabeça... molhando-vos os pés!...
No dia seguinte, no ribeiro, as lavadeiras não falavam de outra coisa, que não fosse a reconciliação.

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