A Sentença da Tia Angélica
CAPÍTULO 1
Quem quer ir
comigo ao ribeiro?...
Venham daí,
que não hão de arrepender-se. A feia e a bonita, a filha do lavrador e a
jornaleira, a velha e a moça — numa
palavra... todas as mulheres da aldeia, reúnem-se ali.
As
distinções terminam entre elas, desde que ajoelham, umas a par das outras, com
as mangas arregaçadas, e as cabeças pendidas para a pedra lavrada, em que
ensaboam a roupa.
Se a tenda é
o clube dos homens da aldeia, o ribeiro é, com certeza, a assembleia das
mulheres do campo.
Vinde, pois,
se quereis saber a razão por que o Manuel Tamanqueiro deu ontem à noite uma
tareia na mulher; vinde, se desejais descobrir o nome da rapariga a quem o
Senhor Abade se referia na última prática que fez, à missa do dia, no domingo
passado; vinde, finalmente, para ficardes ao fato das importantíssimas —
questões que se discutem neste ponto do globo, nesta pequena aldeia, assente
numa baixa e encurralada entre montanhas.
Segui-me,
pois conheço um atalho por onde se encurta metade do caminho.
Vamos lá!
Saltamos
este pequeno muro, seguimos o carreiro traçado entre o trigo, levantamos o
ferrolho daquele portelo, atravessamos o pequeno pinhal além, galgamos outra
parede — cuidado com as silvas! — e estamos no monte, que vamos descendo até à
presa, formada pelo ribeiro, de onde nos chega já o som das vozes das
lavadeiras!
Eis-nos ao
pé delas... Estão poucas hoje!... Uma... duas... cinco apenas.
Duas andam a
estender a roupa; outras duas, mulheres entre trinta e quarenta anos, acabam de
esticar pela terceira vez um lençol, que vão torcer; a quinta é uma simpática
figura de velha, rastejando pelos setenta, curvada sobre a pedra em que apoia a
mão esquerda, enquanto com a direita agita um pano dentro da água.
A última,
indiferente até então ao palrar das duas que estão torcendo o lençol, parece
que lá lhe chegou, por fim, aos ouvidos palavra que a incomodou, porque as
feições lhe traíram doloroso espanto, e a mão parou de agitar a peça de roupa.
Escutemos,
como ela.
— Ó
Maria!... Isso não pode ser... — diz uma delas.
— Acredita,
Ana... Olha que é verdade!... Puseram-se de mal, e disse-me o Antônio da Capela
que o Sr. Joaquim já fora à vila falar com dois letrados!... — respondeu a
outra.
— Vocês que
estão aí a dizer, ó raparigas? — perguntou então a velha.
— Pois a tia
Angélica não sabe?... Foi o Senhor Joaquim do Adro, que se arrenegou com o Sr.
Manuel da Portela, por mor da água, e diz que ainda que gaste quanto tem, que
há de mostrar ao Sr. Manuel que ainda tem amigos...
— Ora veja a
tia Angélica! — atalhou a outra. — Então aqueles, que eram amiguíssimos!... Para onde ia um, ia o outro; quando um tinha um
filho, já se sabia quem eram os padrinhos... Estou varada!
— Isso não
pode ser! — afirmou — a velha. — Não são homens que esqueçam que as mulheres
são irmãs uma da outra! Nada; aí há coisa... Se aqueles dois se põem de mal, o
que há de ser da gente da terra?!... Os dois lavradores maiores... Tão amigos
desde pequeninos... Nada; aí há coisa!...
E a velha,
retirando a peça de roupa, torceu-a, acamou-a junta com outras dentro de um
pequeno alguidar, ergueu-se, pô-lo à cabeça e retirou-se, dizendo às duas:
— Isso não
pode ser... Aí há coisa!. Adeus, raparigas!
— Adeus, tia
Angélica — responderam as outras.
Quando a
velha ia já a distância de as não poder ouvir, disse a Sra. Maria:
— Coitada! a
tia Angélica não gostou da notícia...
— Se te
parece... — observou a Sra. Ana. — Se a pobre de Cristo deve tantas obrigações
a ambos...
— Não que
eles também, quer uns quer outros, tudo aquilo é boa gente!... — redarguiu a
Sra. Maria.
— E, então,
esmoleres... até ali — respondeu a Sra. Ana.
Neste
momento foram as duas interrompidas pela voz fresca e vibrante de uma das raparigas
— que andavam a estender a roupa, cantando para amenizar o trabalho:
O sabão as nódoas tira,
Tudo se lava com água...
Nem um nem outra me tiram,
Me lavam a minha mágoa.
Tudo se lava com água...
Nem um nem outra me tiram,
Me lavam a minha mágoa.
CAPÍTULO 2
O leitor
decerto já percebeu que um acontecimento de vulto tinha vindo afinal quebrar a
monotonia daquele plácido viver da aldeia.
O sol
desaparecera havia pouco, quando a tia Angélica chegou ao povo.
Os
lavradores, entregues ao prazer da conversa, que corria em voz discreta, tão
entretidos estavam, que só à segunda badalada das Ave— Marias é que tiraram os
chapéus.
Agora, que
eles se benzeram e trocaram os "Louvado seja Nosso Senhor Jesus
Cristo", acerquemo-nos dos diferentes grupos.
Não tem que
ver; não se fala de outra coisa.
Ninguém quer
acreditar que os dois maiores da terra estejam de mal; e, coisa notável!...
ninguém se pronuncia por este ou por aquele! Não se ouve a voz do ódio, que
exulta; não sibila a frecha ervada da inveja; não se nota o miserável prazer do
mexerico!
Pelo
contrário: conhece-se uma sincera consternação, causada pela desavença dos dois
lavradores; vê-se que é real o desejo de reconciliação; não se ouve citar um
fato que deslustre qualquer dos dois amigos tornados inimigos, ao passo que se
apontam dúzias de boas ações, praticadas por ambos, quer individualmente, quer
em comum.
E era
merecida a justiça que lhes faziam.
Nascidos no
mesmo ano, Joaquim, do Adro, e Manuel, da Portela, tinham crescido juntos,
ligados sempre por, até então, jamais quebrantada amizade.
Na escola,
se um apanhava meia dúzia de bolos, já o outro sabia a conta que tinha a
receber pouco depois, porque o crime de um era sempre o crime do outro: ou não
sabiam a lição por causa do mesmo ninho de melro, ou tinha cada um deles
atirado a sua pedra tanto ao mesmo tempo e com tão igual certeza de pontaria,
que — era impossível descobrir qual dos dois tinha quebrado as telhas do
vizinho.
Mais tarde,
no tempo das verduras de rapazes, bem precavido devia andar quem quisesse mal a
qualquer deles, pois, quando apenas julgava encontrar um, achava com certeza
dois marmeleiros, que consideravam a solidariedade como ponto de religião,
tanto no ataque como na defesa.
O amor,
finalmente, fez-se sentir em ambos ao mesmo tempo, e parece que Deus folgava
com a aliança daquelas duas almas, porque de amigos, que eram, fez deles
irmãos, guiando-lhes a escolha para duas irmãs, filhas de um abastado lavrador.
Igualmente
honrados e ricos, sem segredos entre si, afeiçoados às cunhadas em quem viam
irmãs, e aos sobrinhos, em quem, nos seus momentos de expansão, se compraziam a
talhar futuros genros, que admira que a amizade da infância justificada pelo
correr — dos anos, se transformasse em sentimento fraterno?
Bons e
ativos, eram eles a vida daquela aldeia; era a eles que os braços iam pedir
trabalho e os corações conselho.
Não havia no
povo quem lhes não devesse algum favor, e eram abençoadas as panelas daquelas
duas casas, pois, por mais que fossem os pobres, nunca elas tinham deixado de
ter no fundo uma tigela de caldo!
Não ficará
suficientemente explicada a consternação dos habitantes da aldeia?!
É tempo,
porém, de contarmos o que deu lugar à quebra daquela amizade de tantos anos, e
para isso basta dizer em poucas palavras o que Madalena, mulher de Joaquim do
Adro, e Rosa, esposa de Manuel da Portela, contaram por entre lágrimas, e cada
qual por sua banda, à tia Angélica, quando esta — em separado as interrogou.
Corria um
Julho ardente, como os velhos de setenta anos se não lembravam de ter sentido;
a água escasseava por toda a parte, e o milho abrasado pelo sol mirrava,
pendendo para a terra, que expelia o calor por um sem-número de fendas, abertas
como outras tantas bocas sequiosas.
Entre os
campos, que mais estavam sofrendo, sobressaía um: a melhor peça dos bens de
Manuel da Portela, o seu orgulho de lavrador!
Regado até
então por abundante manancial, ou Deus lho secara na origem, querendo assim ver
como o lavrador receberia uma provação, ou proprietário, arriscado a igual
desgraça, lha desviara do curso natural.
Manuel da
Portela, prevendo a última hipótese, caminhara um dia inteiro ao longo da veia,
que lhe trazia o sangue da sua terra, e só parara quando aquela findou aos pés
de um outeiro, base de outro monte mais elevado.
Era ali,
naquele monte, que nascia a sua água?...
Deus sabe os
desejos que teve de revolver o seio do outeiro!
Quando
regressou, vinha triste e pensativo, e, chegado que foi ao campo, pareceu-lhe
que os pés do milho, como se lhe lessem no rosto a fatal sentença, se curvavam
mais para o chão, e ficou-se ali a cismar!
De repente
ergueu a fronte. O rosto revelava violenta luta...
Pouco tempo
durou.
Chegou-se a
um jornaleiro, que recolhia do trabalho, e disse-lhe bruscamente:
— Dá cá a
enxada, ó Francisco,
O outro
deu-lhe a enxada, e Manuel da Portela, caminhando para o lado oposto àquele por
onde antigamente era regado o campo, entrou de cavar com ardor.
Horas
depois, quem se lembrasse de atravessar o campo de Manuel da Portela, molhava
com certeza os pés.
O lavrador
acabava de cortar a água que ia fertilizar as terras do amigo.
Joaquim do
Adro tinha o gozo daquela água por um número determinado de horas.
Vendo no dia
seguinte que ela deixava de correr, estremeceu.
Fez o que o
amigo fizera na véspera, com a diferença de não ter de ir tão longe.
Doeu-se do
abuso e sobretudo da quebra de lealdade do amigo, que, por um pejo natural em
quem tem a consciência de não ter obrado bem, lhe não dissera nada.
— Por isso
tu não foste lá ontem à noite! — murmurou ele.
O rosto
tingiu-se-lhe com o rubor da cólera, e Joaquim, obedecendo ao primeiro impulso,
voou a casa do amigo.
— Tu
cortaste-me a água!...
Tal foi a
primeira frase que soltou.
O outro quis
— desculpar-se; Joaquim do Adro azedou-se e alteou a voz; Manuel da Portela
lembrou-se de justificar a ação; mas o ofendido falou nos seus direitos, e o
ofensor, tornado injusto pela fraqueza da causa, replicou que Deus quando dava
a água, a dava para todos, e que, uma vez que ela lhe passava primeiro à porta,
se utilizava do favor de Deus.
Chegadas as
coisas a estes termos, a discussão tornou-se violenta, e Joaquim do Adro declarou
que as leis decidiriam entre eles, mas que estava rota a amizade que os ligava.
Joaquim do
Adro saiu furioso.
Chegando a
casa, a primeira cena que viu foi a mulher repartindo com escrupulosa igualdade
um enorme bolo pelos filhos e sobrinhos.
— Isso!... —
bradou ele — colérico. — Dá-lhes o pão a eles, já que o pai nos rouba o dos
nossos!... Já daqui para fora, canalha! — continuou ele, dirigindo-se aos
sobrinhos.
As pobres
crianças, só afeitas às carícias de quem agora as maltratava, hesitaram,
cravando no tio olhos de espanto e dúvida; mas, a um gesto expressivo dele,
saíram às carreiras.
Pouco
depois, ouvidas as explicações dadas pelo marido por entre impropérios contra o
amigo, Madalena fazia o que Rosa não cessara de fazer desde o princípio da
altercação — chorava!
No dia
imediato, partiam para a vila, a horas desencontradas, e entravam em casa dos
mesmos advogados Joaquim do Adro e Manuel da Portela.
Quem
assistisse às consultas, pasmaria de ver que ambos tinham razão!
CAPÍTULO 3
Nem os bons
ofícios da tia Angélica, nem a transparente alusão, feita no domingo adiante
pelo abade, que terminou por esperar que
quem tinha obrigação de dar o exemplo de boa vizinhança o daria, nem as
lágrimas das mulheres, e a tristeza dos filhos, privados dos companheiros de
brinquedo, conseguiram abrandar a inimizade dos dois lavradores.
Pequenas
misérias vieram ao contrário aumentá-la.
Ao sair da
missa, por exemplo, vendo que o filho se aproximava sorrateiramente do primo,
Joaquim do Adro exclamou com mau modo:
— Salta já
para aqui, Manuel!
E Manuel da
Portela, em ato contínuo, deu um cachaço no filho, dizendo:
— Quem te
mandou sair de ao pé de mim?
Dois dias
depois, quando os moços de Joaquim ido Adro iam roçar um carro de mato, acharam
tapada uma servidão, que Manuel da Portela, havia muitos anos, concedera ao
amigo.
Tudo
anunciava trágico desfecho, e pouco tardou o pretexto que o ia motivando.
Uma tarde,
pelo escurecer, voltava do campo Manuel da Portela, quando avistou ao longe o
concunhado em companhia de um outro lavrador, e, como não quisesse encontrar-se
com eles, para não ter de saudar o outro vizinho, honrado velho que — ele
respeitava, coseu-se com um muro, a esperar que eles passassem.
O Diabo,
porém, que é tendeiro, fez com que parassem exatamente ao pé do muro, e Manuel
da Portela, que estava pelo lado oposto, teve de ouvir, a par dos sãos
conselhos que o bom do velho dava a Joaquim do Adro, para o acalmar, os
insultos que este proferia, quando se referia a ele, que o estava ouvindo, e quase
se descobre, para lhe tomar contas, quando ele terminou, dizendo e repetindo:
— Não ma
tornou a cortar e tem sido a redenção dele!... Se ma corta, racho-o!... racho-o
— de meio a meio!...
Ora, Manuel
da Portela, na visita que fizera ao campo, achara o milho tão seco, tão seco,
que estivera quase... quase a cometer de novo o
delito por que ameaçavam rachá-lo de meio a meio.
Ouvindo a
ameaça, o delito transformou-se em justo desagravo, e, dando uma volta, Manuel
foi a correr cortar a água.
Joaquim do
Adro, que levava a enxada ao ombro, viu, quando chegou ao campo, a repetição da
repentina seca.
Agarrar a
enxada pelo meio do cabo, correr perdido e louco e chegar arfando de furor e
cansaço, pouco mais tempo lhe levou do que a mim a escrever isto.
A sua
primeira ideia foi realizar a ameaça e rachar o outro de meio a meio;
deteve-o... não sei o quê... a mulher, os filhos, o seu bom anjo, talvez!
Ficaram os
dois frente a frente, mudos, separados pelo rego da água, Joaquim com os olhos
brilhantes de cólera, Manuel com os dele animados por expressão de indomável
azedume.
— Queres ou
não queres pôr já essa pedra no seu lugar? — perguntou finalmente Joaquim,
batendo com o olho da enxada na pedra, que o outro empregara, como dique, no
rego que cavara.
— A pedra
está bem onde está, e só vai para o seu lugar quando se acabar a rega. —
respondeu o outro em voz surda, mas firme.
— Põe a
pedra, ou ponho-a eu... — bradou Joaquim.
— Nem tu,
nem eu... — retorquiu Manuel.
Pois espera
que vais ver... — disse Joaquim, por entre os dentes cerrados.
E impeliu a
pedra com a enxada para a boca do rego aberto por Manuel.
Este, sem
dizer palavra, repeliu, também, com a enxada a pedra, mas com tal força, que
ela, saindo do lugar onde Joaquim a colocara, veio encravar-se no rego antigo.
Joaquim do
Adro deu um passo à retaguarda; Manuel fez o mesmo, e os dois miraram-se com espantosa
energia, apertando com as mãos convulsas os cabos dos instrumentos de paz,
tornados armas de guerra.
Eles
conheciam-se bem e sabiam que não havia melhor jogador de pau do que qualquer
deles, por todos aqueles arredores.
por fim, as
enxadas ergueram-se e cruzaram-se.
-Ó homens,
que vos deitais a perder!... Olhai ao menos para os pés, já que não olhais para
o Céu!... — bradou — de repente voz pouco distante.
Os dois
pararam maquinalmente e olharam.
era a tia
Angélica, que voltava do monte, gemendo sob o peso de um molho de rama de
pinheiro.
— Olhai para
os pés, desatinados — continuou ela, aproveitando habilmente a pausa dos dois
contendores.
— Olhai,
olhai!... Vede se não é mesmo Deus Nosso Senhor, que vos está dizendo o que
haveis de fazer!... Mas olhai para os pés, homens!
Notando a
insistência da velha, os dois olharam e viram a água que, espraiando-se para
ambos os lados, lhes estava molhando os pés.
A pedra,
encravando-se no meio do rego primitivo, impedira a água de correr, e esta, não
podendo vencer o obstáculo, crescera e trasbordara para os lados.
— Então?!...
É por Deus ou não é?!... Não está Ele mesmo a dizer o — que haveis de fazer?...
O que chega para um, bem repartido, chega para dois!... E isto não é novidade
para nenhum de vós... Por que é que acabáveis sempre o serviço a tempo e
horas?... Por que vos ajudáveis, toleirões! Quem criou a tua Joaquina, Manuel?
Não foi a Madalena?... E quem passou quinze dias e quinze noites ao pé — da tua
Madalena, sem se despir nem pregar olho, quando ela esteve com a febre
maligna?... Não foi a Rosa, — dize, Joaquim? Apertem já essas mãos, seus
mal-agradecidos!... Apertem, que é Deus quem manda!... Vós não vedes a
água?!...
A pobre tia
Angélica, que tinha atirado o molho ao chão, mostrava no rosto, nesse instante,
uma expressão de tão irresistível autoridade, que os dois, não podendo
afrontar-lhe a severidade do olhar, baixaram os olhos.
As palavras
da tia Angélica, (que tão habilmente buscara o auxílio de Deus e fizera avivar
a recordação dos recíprocos serviços, calaram finalmente no ânimo de ambos.
— É Deus
quem manda... — disse finalmente Joaquim, estendendo a mão.
— Perdoa-me,
Joaquim! — respondeu o outro, apertando-lha.
E, cedendo à
comoção, lançaram-se nos braços um do outro.
— Ora até
que afinal! — bradou a tia Angélica, chorando de prazer. — Safa!... Cuidei que
não tornavam a ter juízo!... Sempre se podem gabar de que tinham Deus por
si!...
— Ó tia
Angélica! — exclamou Manuel da Portela. — Nós como lhe havemos de agradecer?
— Não há
nada mais fácil!... Ajudem-me a pôr outra vez o molho às costas — respondeu
ela.
— Não
consinto!... — atalhou Joaquim. — O molho levo-o eu.
— Eu... —
disse Manuel, desviando o amigo e pegando no molho.
— Bonito! —
interveio a velha, rindo — vejam lá se pegam agora por'mor de mim!...
E rindo e
chorando de prazer, lá seguiram os três direitos à povoação.
CAPÍTULO 4
Não é
possível descrever a expressão de jubiloso espanto que iluminou o rosto de
Madalena, quando viu entrar os dois, seguidos pela tia Angélica.
O primeiro
pensamento foi para Deus, o segundo para a irmã.
Apenas a
emoção lhe consentiu falar, exclamou:
— Vai já
chamar a tia Rosa, minha filha!... Corre, Joaquina!...
Imagine o
leitor o quanto as duas irmãs choraram; o que disseram, as carícias que fizeram
à tia Angélica!... Imagine, que eu não sei, não posso descrever-lho.
Passada a
primeira explosão de sensibilidade, era encantador o quadro que formavam
aquelas duas famílias.
As mulheres,
sentadas uma defronte da outra, tinham trocado os filhos mais novos, e as
pobres crianças, vendo-se novamente afagadas pelas — que consideravam segundas
mães, brincavam agarradas ao pescoço das tias, cobrindo-lhes o rosto de beijos,
que aquelas retribuíam com usura, mirando-as tão desvanecidas, que levavam a
cegueira até quererem mutuamente convencer-se de que os sobrinhos haviam
crescido sensivelmente, durante aquela separação de dias.
O filho mais
velho de Joaquim brincava com a filhinha primogênita de Manuel, enquanto que os
dois lavradores conversavam alegremente, e, dando de tempos a tempos uma
palmada no ombro um do outro, diziam à porfia:
— Ora este
Manuel!...
— Ora o
diabo do Joaquim!...
E, sentada a
um cantinho, contemplando-os a todos com o bondoso sorriso — de uma consciência
satisfeita, via-se a tia Angélica, prestando inquieta atenção à conversa dos
dois.
Bem
convencida, por fim, de que era sincera a reconciliação, voltou-se para a dona
da casa e disse-lhe em tom galhofeiro:
— Ó
Madalena! Dá vinho a estes homens, pois a estes é a água que lhes sobe à
cabeça... não é o vinho!
Madalena
saiu, e voltou logo com uma enorme caneca, que entregou ao cunhado, e este
erguendo-a exclamou:
— A saúde de
quem nos aconselhou melhor do que todos os letrados, e decidiu como nenhum juiz
era capaz de decidir!... Viva a tia Angélica!
— Viva a tia
Angélica! — bradaram todos em coro.
— Viva Deus!
filhos... — emendou a velhinha. — Viva Deus, que vos refrescou a cabeça...
molhando-vos os pés!...
No dia
seguinte, no ribeiro, as lavadeiras não falavam de outra coisa, que não fosse a
reconciliação.
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