A
primeira tempestade
(Confidências
de um anônimo)
Não
obstante ao fim do ano eu sentia-me ligeiramente aborrecido. Achava-me no
período pletórico da felicidade. Experimentava como a vaga urgência de sangrar
a minha pacificação doméstica. A permanência e a imobilidade do bem-estar
engrossavam-me o paladar e davam-me tonturas.
Os
meus amigos, que eu recebera como amáveis impertinências nos primeiros tempos
do meu noivado, tinham deixado inteiramente de me visitar e até de me escrever.
Na minha isolação, frente a frente com os encantos de minha mulher, os
interesses do amor, que ninguém me contestava e que ninguém me desdizia,
principiavam-me a parecer-se com as partidas de bilhar, que eu de quando em
quando jogava comigo mesmo. Entravam a comer-me curiosidades burguesas de
lojista retirado. Tinha enchido a casa de barômetros, de termômetros e de pluviômetros;
sabia sempre de que lado estava o vento; mandara pôr no jardim uma meridiana com
um pequeno obus, e todos os dias depois de almoço, entre o meu segundo e o meu
terceiro charuto, ia acertar pelo sol o meu relógio e todas as pêndulas da
casa; conseguira levar até mais de meio a leitura seguida da História Universal de Cantu, e — sintoma
pavoroso — assinava os jornais — e lia-os!
Num
dia em que o meu envilecimento, exacerbado pelas leituras que fazia de todos os
anúncios, tinha chegado ao ponto de ter mandado comprar a revalescière Du Barry,
minha mulher pôs-se a chorar à mesa do almoço. Ao rebentar-lhe o pranto, com os
olhos em mim, tinha uma visagem tão linda e tão menineira, a sua pequena boca
tinha feito um bico tão encantadoramente contristado, que eu ajoelhei-me aos
seus pés, como quem tacitamente aceitava culpabilidade daquelas lágrimas, e
perguntei-lhe o que sofria, beijando-lhe as pontas molhadas dos dedos.
Ela
disse-me então que eu deixara de amá-la; que ela o certificava com a lógica
terrível dos meus atos; que o amor verdadeiro, como o primeiro que lhe votara,
tinha preocupações próprias, absolutas e indivisíveis; que eu começara por
atraiçoá-la com os barômetros e os pluviômetros, em seguida com os cataventos e
os para-raios, depois com umas cabras do Tibete, que tinham feito por alguns
dias o encanto da minha existência; por fim — ó supremo vilipêndio! — com a revalescière Da Barry...
Parece
que eu, em sonhos, ousara proferir com êxtase o nome impudico da infame revalescière! E já não acendia o meu
segundo charuto para ir acertar o relógio à meridiana, sem ter comido meio
prato daquela astuta farinha!
Desculpei-me,
pus a mão no coração, fiz juras! Mandei encravar o obus da meridiana, cujo tiro
obrigava brutalmente minha mulher a anunciar todos os meios-dias com um grito
de susto, e distribuí a revalescière
aos perus — com o que, posso atestar, nada aproveitaram aquelas aves, pois que
tive o cuidado de as mandar pesar todos os dias enquanto as sujeitei a esse
regime nutriente!
No fim de contas a verdade é que minha mulher tinha fundamentalmente razão. O delicado instinto do seu sexo tinha-lhe feito perceber na crítica do meu sentimento finuras de gradação, de cuja frivolidade os homens farão mal em rir.
Eu
começava efetivamente a sentir, de tempos em tempos, às vezes de um modo
confuso, especializadamente de outras vezes, a nostalgia do celibato.
Comprazia-me na recordação das minhas aventuras, e sentia quase o desejo de as
fazer entrar como outro qualquer assunto nas minhas conversações conjugais.
Lembrava-me — não ouso dizer com saudade — mas sem repulsão, o interior
litográfico dos meus pequenos quartos de hotel, a alegria de antigas ceias, os
ruídos grosseiros da multidão, a saída dos teatros, o baile, a valsa, a intriga
de amor, o jogo, o duelo, todo o cortejo da vida livre. E era em verdade
pensando vagamente nestas coisas que eu principiava às vezes a dormir as pesadas
horas que consagrava ao sono em cada noite.
Entretanto
minha mulher entristecia. Eu engordava, o que me não impedia de começar a
padecer do estômago. O meu médico aconselhou-me as águas de Homburgo, a mim, e
a mudança de ar para qualquer parte a minha mulher.
A
viagem agradava-nos. Tínhamos um pretexto para abandonar o lar doméstico, sem
necessidade de confessarmos a nós mesmos que ele principiava levemente a
enfadar-nos.
Homburgo
sorria-me. No mês de Agosto, em que estávamos, Homburgo era um dos prazos dados
à multidão elegante e alegre que eu sentia desejos de tornar a ver.
Decidimo-nos por Homburgo e, em dois dias, partimos.
Passamos
por Paris, onde os teatros estavam desertos e os salões fechados, e onde no Bois,
em volta do lago, alguns estrangeiros, em carruagens particulares alugadas
defronte do café Riche, se davam uns aos outros em espetáculo de um Paris
excessivamente convencional.
No
contato porém da gente com quem me ia achando em passagem fiz, a meu pesar,
esta ridícula observação: que as mulheres principiavam a não dar por mim.
Ora
eu não estava certamente na triste alucinação de querer fazer a corte a
ninguém, e muito menos, à maneira de um commis
en nouveautés, às senhoras com quem me encontrasse nas carruagens do
caminho de ferro, nos passeios das ruas ou às janelas das casas! Estava também
assaz longe de exigir que as meninas desmaiassem sob a fatalidade súbita da
paixão, à medida da minha gravitação pelo orbe. Mas pelo menos — diabo! — que
me vissem! — Porque, enfim, — seja-me lícito dizê-lo sob a modéstia do anônimo —
em solteiro as mulheres viam-me, quando eu passava.
E
queria-me parecer que depois de casado eu me não estava fazendo transportar
pelo mundo tendo na testa o dístico de uma mercadoria tão frágil que nem se lhe
pudesse embarrar — com os olhos! Supunha que nem eu nem minha mulher levávamos
adiante de nós um cartaz em que se lesse em grandes letras com uma lanterna do
outro lado: "Aqui vai neste par, segregada de toda a comunicação das
gentes, a conjugação mística do verbo amar, pela activa e pela passiva,
pronominal e recíproco!"
Não
obstante não suceder literalmente isto, nem em Paris, nem em viagem até
Homburgo, mulher alguma encontrou os seus olhos com os meus. E afirmo isto com
tanta mais segurança quanto é certo que para me não escapar alguma exceção,
reparei com grande cuidado em todas as criaturas!
Demônio!
— pensava eu — como o casamento, e um ano de reclusão no fundo de uma quinta,
nos transfiguram tão radicalmente! Quem sabe se eu não terei o ar apocalíptico
de quem traz as tábuas da lei conjugal debaixo do braço? Quem sabe se, ao
contrário daquele sábio que supunha ter encavalado no nariz um jesuíta que a
outra gente não via, não terei eu no meu nariz uma verruga que só eu não vejo?
E achava-me do mau humor mais abjecto e mais difícil de explicar.
Minha
mulher, pelo contrário, ia expansiva e contente. Tinha-se esquecido do meu afeto
clandestino à revalescière, e deixara
mesmo de falar na salsa parrilha de Bristol, — último objeto dos desvarios do
meu ócio no tabernáculo conjugal.
Chegamos finalmente a Homburgo e alojamo-nos num elegante hotel, em cujo terraço se via muitas vezes o rei da Baviera, tomando a sua chope entre a mais pitoresca e turbulenta concorrência de toda a espécie de estrangeiros.
Entre
as pessoas do meu antigo conhecimento achava-se ali, hospedado como nós,
Eduardo de B..., meu companheiro de colégio e antigo amigo dedicado, poeta,
pintor, um grande artista e um excelente rapaz. Entre as mulheres
encontrávamo-nos todos os dias com a célebre marquesinha C..., frequentadora
encartada de todas as terras de águas, que ela percorria sozinha pelos verões,
deixando admirar, à beira da água ou junto das fontes termais, onde se não
esquecia nunca de fazer petrificar um ramo de camélias, as suas graciosas toilettes dos mais belos e frescos
linhos da Irlanda, os seus fantásticos penteados, os seus chapelinhos tão
invejados e a famosa coleção dos seus sticks.
Ora
direi: a marquesa foi a primeira mulher do mundo que, depois da clausura do meu
noivado, pareceu demonstrar que tinha uma tal ou qual ideia de que eu ainda
existisse entre os viventes!
Por
mais de uma vez mo deixou adivinhar até que eu evidentemente reconheci no seu
sorriso, entre o esmalte úmido dos seus pequeninos dentes, o raminho de
oliveira anunciador de que não estava inteiramente coberta para mim pelas águas
do dilúvio a superfície da terra, na qual eu sobrenadava com minha mulher
dentro da arca santa do casamento. Isto porém podia ser o resultado de uma
alucinação passageira dos meus sentidos. A minha vaidade empenhada neste jogo
precisava de um convencimento positivo.
Uma
coisa confesso para tranquilidade das esposas que me lerem. Há um talento que
nós, os maridos, perdemos ao cabo do primeiro mês do nosso ofício: é o talento
de dirigirmos a uma mulher as primeiras palavras da corte que pretendemos
fazer-lhe. Não sei verdadeiramente a razão porque isto sucede. Cuido que é a
pressão de um certo ridículo sempre iminente e indefensável, o que em tais
ocasiões nos suprime fatalmente a palavra. Porque enfim — não o escondamos — nesses
casos felizmente excepcionalíssimos e anormais, a nossa posição é extremamente
melindrosa. Uma só palavra, fina, delicada, bem afiada por um engenhozinho
feminil, bate-nos em brecha do modo mais radicalmente desastroso. Suponhamos
por exemplo — este é o caso mais simples, mais trivial, menos filho da astúcia
do que do próprio acaso — suponhamos que nos lançam o nome de nossa mulher. Se
todos os Mefistófeles que existem nos infernos não surgem nesse momento das
profundezas da terra, como de um alçapão de teatro, a cruzarem os seus floretes
satânicos em guarda ao nosso peito, estamos desde logo feridos de morte. Porque
— das duas, uma — ou havemos de confessar ou havemos de desdizer a estima da
nossa esposa. Se a confessamos, então, a lógica é que compremos meia dúzia de brioches
em casa de Baltresqui, e que vamos para casa tomar chá com aquela que Deus nos
deu para legítima companheira da nossa existência e do nosso chá. Se a
desdizemos, se asseguramos que essa estima não existe, de quem é a culpa, de
nós ou dela? Se a culpa é nossa, ficamos suspeitos de uma brutalidade
repulsiva. Se a culpa é dela, confessamo-nos um marido atribulado — talvez
batido! — o que é então de um ridículo lacrimoso.
Será
talvez por eu não ter cultivado bastante este gênero de estudos, mas — declaro —
ainda não achei meio retórico de resistir a semelhante contingência.
Sucedeu
que uma vez, de repente, inesperadamente, me achei frente a frente com a
marquesa, num ponto solitário da floresta, debaixo dos lilases. Cumprimentamo-nos,
sentei-me ao seu lado num banco de cortiça. Era ao fim da tarde, ouvia-se o
zumbir amoroso dos insetos no ar tranquilo, alguns rouxinóis cantavam nos
castanheiros em flor. Nós, em voz baixa, no tom das meigas confidências, falamos
das nossas dispepsias e da virtude das águas de Homburgo. Oh! meu Deus! como
nós falamos daquelas bentas águas! Eu tossi... Sim! para que ocultá-lo?
(Pondera, ó leitor, nesta passagem o que são os recursos de um marido que
seduz!) Eu tossi... tossi duas vezes! e até — ó eterno pejo! — fiz confusamente
com a ponteira da minha bengala alguns riscos na areia!
Por
fim a marquesa tirou o relógio de entre dois botões do vestido, verificou que
eram seis horas e meia e fomos jantar à table
d'hôte do nosso hotel, onde minha mulher nos esperava...
Mal
sabia ela, pobre inocente!...
Que
— verdadeiramente — o que ela ignorava não era em absoluto uma coisa que,
descoberta, houvesse de a tornar desgraçada para o resto dos seus dias...
Ainda
assim eu, dominado por um orgulho feroz, tive remorsos!
E
de olhos baixos, contrito, quase arrependido, esgotei taciturno, até à última
colher, a sopa de tapioca que me tinham posto no prato.
No
entanto a marquesa, a outro lado da mesa, descuidada, intemerata, comendo
camarões e bebendo leite, palreava alegremente com os hóspedes que tinha junto
de si, e falava do encontro que tivera comigo sob os lilases. Os seus
companheiros riam, riam, riam! E diziam-lhe coisas que eu não podia ouvir.
Senti-me vexado, porque evidentemente essas coisas eram muito mais
interessantes do que o que nós ambos tínhamos dito em plena floresta no nosso
banco rústico.
Ah!
é um desafio isto?! Riem-se acaso de mim?!... Pois bem! Eu não falo...
confesso-o... para que me hei de gabar do que não posso fazer?... Não é o meu gênero
esse! — Mas escrevo. Eu também sei escrever. Percebeis, meus parvos?... Por
isso mesmo vou escrever! Hei de escrever amanhã... E depois veremos quem é que
ri!
Pois
quê, minha linda marquesinha?! Eu sou então assim uma coisa, uma espécie de
guarda campestre ou uma aia de meninos, de cujo encontro numa floresta a gente
venha rir para a mesa redonda de um hotel, comendo-lhe camarões pelo meio e
bebendo-lhe leite em cima ?!... Ora talvez que se engane.
Combinou-se
nessa noite uma partida de prazer, nos campos, para o dia seguinte. Partiríamos
a cavalo do nosso hotel, às dez horas da manhã. Deveríamos almoçar na relva e
fazer depois uma ascensão a pé a uma montanha, onde havia as ruínas de um
castelo roqueiro, com heras, legendas da idade-média e cegonhas. Todos os que
estavam à mesa subscreveram a esta excursão. Minha mulher estava radiante de
prazer.
No
dia seguinte levantei-me cedo e vim passear para o terraço, sozinho, com as
mãos atrás das costas e o meu binóculo ao tiracolo. Os meus pensamentos eram
terríveis. Não sei se
por adivinhar na minha fisionomia o
que se passava no meu cérebro, um criado perguntou-me se queria tomar alguma
coisa. Pedi-lhe papel e tinta. As janelas do quarto de minha mulher davam para
outro lado da casa. Sentei-me a uma mesa de ferro e escrevi uma carta à marquesa.
Esta
carta, se não tivessem de me ler senão mulheres e homens casados, transcrevia-a
aqui. Não teria medo que ma copiassem. Mas, como podem também ler-me os
solteiros, os que namoram, os que seduzem, não! Não há de ser com cera dada por
mim que eles hão de fabricar as suas velas. Quereis cartas ternas, eloquentes,
originais, decisivas, que fiquem, que se decorem? Escrevei-as, que eu não estou
aqui para secretário de amantes, nem para pedicuro de erros de ortografia! A
carta — francamente — ficou boa. Eu nem toda a minha vida passei a ler César
Cantu e os anúncios da Revalenta: frequentei as minhas humanidades, vivi também
um pouco por esse mundo, e descubro ainda quando quero, como qualquer outro, o
segredo das palavras que umedecem de ternura os olhos dos que as leem.
Estava
bem boa a carta! Tenho realmente pena de a não citar, porque no fim há um
fecho, principalmente, que honra os meus recursos: fui-me a uma linha inteira e
passei-lhe um traço de pena por cima, depois na entrelinha pus uma palavra só.
Isto caía num ponto em que se despertava a maior curiosidade de decifrar o que
existiria na linha cortada. Era bastante completo de estratégia e de astúcia.
Dobrei a carta e guardei-a.
Às
dez horas estavam todos os nossos companheiros, homens e senhoras, no terraço
do hotel. Pouco depois chegavam os cavalos, os phaetons e os dog-carts,
e as pessoas da nossa caravana principiaram a subir às carruagens ou a montar a
cavalo. Os últimos que ficaram na sala contígua ao terraço foram a marquesa,
minha mulher e Eduardo de B..., o meu amigo. Eduardo, que estava junto do
parapeito do terraço, perguntou para a rua de quem era um lenço de renda que
ali ficara caído.
—
É meu, disse a marquesa.
Eu,
que estava a meio caminho entre Eduardo e ela, tomei o lenço, e sem esperar
momento mais oportuno, numa volta em que só ela podia ver-me, enrolei no lenço
o meu bilhete e entreguei-lho. A marquesa corou ligeiramente e ia guardar o
lenço e sair, quando — pelo diabo — o meu bilhete caiu no chão. A marquesa não
dava por isso. Foi minha mulher — que terror! — minha mulher, pessoalmente, que
o levantou, dizendo:
Marquesa,
este papel... — Ah! obrigado, exclamou ela; é um convite que recebi hoje. E
saiu dizendo-nos adeus com as pontas dos dedos.
Minha
mulher, que tinha acabado de calçar as luvas, pegou, com o ar aparentemente
mais indiferente do mundo, no seu chicote que estava sobre uma das mesas, e
saiu também, passando-me, de cima abaixo, um olhar muito mais terrível do que o
risco com que eu cortara a última linha da minha carta. Imaginem como eu
fiquei!
Eduardo,
acode-me! — foi o meu único grito, ao ver minha mulher fora da sala.
Que
é? queres água com açúcar? queres flor de laranja? queres que chame os outros?
Qual,
que os chames! o que eu quero é que metas os Pireneus ou os Alpes entre mim e eles!
No
entanto da rua gritavam pelos nossos nomes. Eduardo chegou à grade do eirado e
disse-lhes:
Vão
indo, vão indo! não nos esperem: nós os alcançaremos galopando, em dois
minutos. Depois de sentir rodar a última carruagem lancei-me nos braços do meu
amigo.
E
esta!? exclamei eu.
Que
foi? saltou-te o botão da camisa? queres espirrar? tens câimbras?
Trata-se
bem disso agora! É um precipício, é um abismo, é uma voragem terrível! Meu amigo,
meu único amigo, meu companheiro de infância, meu irmão... Deixa-me dar-te o
nome de irmão... Não somos nós como irmãos? Pois bem! esta manhã, num momento
de febre e de delírio, escrevi uma carta de amor à marquesa de C... Essa carta
entreguei-lha agora. A marquesa deixou-a cair, minha mulher levantou-a, minha
mulher viu-a, minha mulher sabe tudo!
Então,
se ela sabe tudo, melhor, que escusam de lhe escrever cartas anônimas a
contar--lho. Vem daí!
Mas,
Eduardo, meu filho! pensa bem nisto: trata-se da minha felicidade doméstica, do
meu amor, do meu futuro, da minha vida inteira, perdida, envenenada para
sempre! ah! eu conheço bem minha mulher: tem uma enorme força de vontade, um
extraordinário domínio sobre si mesma. Esconderá o seu infortúnio com a dignidade
de um homem, mas morrerá como uma mártir. Se soubesses!... Isto são coisas
íntimas, coisas de família, que se não podem contar senão a homens como tu...
Olha: aquela excelente criatura, aquele anjo de bondade, ainda há pouco tempo
chorou lágrimas de sangue por imaginar que eu lhe preferia... quem? A revalesdère Du Barry! Imagina o que
sucederá sabendo que a sua rival já não é uma inocente, posto que ineficaz farinha,
mas sim uma marquesa à moda, uma celebridade ruidosa, uma Benoiton, um horror
de mulher?! Diz-me, meu velho amigo, aconselha-me, anima-me... Que hei de eu
fazer?
Ora!
faz qualquer coisa, inventa uma desculpa, acha uma explicação seja qual for...
Faz
o que fazem os outros. Não há marido nenhum a quem não tenham sucedido coisas
dessas vinte vezes na vida...
Oh!
felizes homens! felizes homens aqueles a quem isto tem sucedido vinte vezes!
Sabem ao menos o que têm que fazer na vigésima primeira. Mas é que a mim — juro-te
pela minha honra — é a primeira que tal me acontece! Que tens tu feito, tu, nos
teus casos?
Eu
nada, porque eu sou solteiro.
E
no meu caso o que farias? Vamos! dize-me alguma coisa! dize-me alguma coisa
pelo divino amor de Jesus!
Eu
te digo... no caso de uma tribulação assim, profunda...
Profundíssima!
Lançava-me
talvez nos confortos da religião... talvez que me fizesse padre.
Bonito!...
Padre! como se isso me livrasse de responder logo à noite a minha mulher quando
ela me interrogar! como, se quando ela chegar e me disser: "Que escrevias
tu à marquesa?" se eu pudesse desfazer-me dela, dizendo-lhe: "A
propósito de marquesa: adeus que vou dizer missa!"
Pusemo-nos
então a meditar, e ocorreu-me uma ideia, uma ideia que ao repente me pareceu
luminosa e que me fora inspirada pela táctica do grande Napoleão, que
consistia, como se sabe, em nunca esperar o ataque, tomando a ofensiva.
Eduardo!
— exclamei eu — tu é que podes salvar-me. És meu amigo? És-me dedicado? Estás
pronto a fazer um sacrifício por mim?
Dize
lá!
Faze
a corte a minha mulher... Oh! não inventes subterfúgios! Não te ponhas com
hesitações e com desculpas! Para que servem os amigos íntimos e verdadeiros
senão para isto?...
Faze
a corte a minha mulher... peço-to, imploro-to, suplico-to! Que diabo te custa isso?
É por um dia somente, hoje, até à noite...
Mas
que proveito tiras tu daí? Que podes tu lucrar em que eu me sacrifique por ti
até ao ponto de me apaixonar por tua mulher?...
Pois
não compreendes? Não atinges todo o êxito do meu plano?! Fazendo-lhe tu a corte
(como eu espero, Eduardo, como eu espero da tua velha estima, da tua boa
amizade) segue-la, já se vê, acompanha-la, passas todo este dia de hoje ao seu
lado, não lhe dás um momento para que ela possa aproximar-se de mim...
dizes-lhe que a amas, que a adoras... E hás— de pôr outra gravata, que ela
disse-me ontem que esse laço encarnado te dava o ar de um cabeleireiro. Se ela
te repelir, mete-lhe medo, que ela é muito medrosa! Dize-lhe que te matas...
Não te esqueças também de lhe dizer que morres por mim: ela adora os que me
amam. Eu no entanto espreito-vos, vigio-vos, o meu olhar pairará sempre sobre
vós ameaçador e terrível como um abutre. Compreendes agora o desfecho... À
noite, antes de ela ter tempo de me perguntar que tinha eu que escrever ocultamente
à marquesa, eu abotoo a sobrecasaca até o pescoço, cruzo os braços no peito,
deito os cabelos para trás, concentro-me, e brado: "Minha senhora, que lhe
disse Eduardo?"
"Eduardo..."
— "Nada de hesitações, minha senhora! o tempo urge; amanhã, ao romper do
sol, ao primeiro grito da toutinegra, numa das encruzilhadas da floresta, um de
nós, ou esse homem ou seu marido, cairá morto com uma bala na fronte!"
Mas
se apesar de tudo isso, ela tiver o espírito de te observar: "Sigamos a
ordem cronológica dos sucessos: vejamos primeiro: senhor! o que dizia o seu
bilhete matinal à marquesa?"
Oh!
nesse caso, eu teria também o espírito preciso para jogar as últimas, e
dizer-lhe: "Silêncio, senhora! mais respeito pela morte! Eu vou
bater-me!" E ela então — ah! disso estou bem certo! ela então dará um
grito, e cairá desmaiada. Eu terei as algibeiras cheias de sais e de
anti-histéricos: acudir-lhe-ei, e quando ela recobrar os sentidos estarei aos
seus pés, beijar-lhe-ei as mãos e pedir-lhe-ei que me perdoe. E no entanto a
grossa nuvem terá passado.
Eduardo pôs resistências, fez objeções, discutimos, acabei por convencê-lo. Pus-lhe eu mesmo uma gravata azul, que era minha, e partimos.
O
que foi esse dia mal posso ainda hoje contá-lo sem se me enegrecer o sangue!
Eduardo rodeou minha mulher de solicitudes, que ao princípio me encantaram e me
penhoraram muito. Depois minha mulher começou a rir, a conversar longamente, a
estar inteiramente bem com ele. Na ascensão à montanha ele dava-lhe o braço,
estendia-lhe a mão, ajudava-a a subir. Eduardo desenhou num álbum um dos
aspectos da ruína: algumas senhoras cercaram-no, seguiam o traço do seu lápis;
minha mulher, para ver o desenho de mais perto, ousou então pousar-lhe uma mão
no ombro! Eu começava a sentir vertigens, tinha febre, e de uma vez — a única
que olhei para a ruína! — pareceu-me da cor do sangue uma cegonha que estava no
alto da torre sobre as ameias com uma perna no ar. A verdade era que eu tinha
autorizado o meu amigo a fazer a corte a minha mulher, mas não tinha autorizado
minha mulher a receber a corte do meu amigo. O procedimento dela era pois de
uma legalidade que ninguém ousaria garantir. Eduardo pela sua parte começava
também a adiantar-se demais: tinha-lhe oferecido o desenho da ruína, o que era
perpetuar com o seu lápis, que me atrevo a qualificar de impuro, as impressões
daquele dia, — o que estava fora das minhas autorizações. Eu sentia febre,
rangia os dentes, tinha a boca cheia de bílis. Experimentava vagamente a
necessidade de morder em alguém.
Ao
almoço havia pequenas bouchées de foie
gras; Eduardo tomou um espeto de prata onde havia três destas bouchées e ofereceu-o a minha mulher com
os ares pretensiosos e ridículos de um trovador, fazendo ao mesmo tempo um
pequeno speech. Escapou-me então um gesto e um grito de raiva. Olharam todos
para mim: eu, pálido, com a voz trêmula, intimei minha mulher para que, em
respeito à sua saúde, se abstivesse de foie
gras, e tomasse de preferência uma sandwich
de mayonnaise.
Ora
essa! — exclamou vivamente Eduardo — pois achas que a mayonnaise seja menos nociva a uma saúde delicada do que o foie gras?
Acho,
sim! clamei eu, E serás tu, Eduardo, tu, meu amigo, meu companheiro, meu
segundo irmão, tu que te atrevas a sustentar na minha presença a superioridade
estólida do foie gras sobre a mayonnaise?! Dize! responde! intimo-te a
que me respondas!
Não,
não, menino, eu cedo. Minha senhora, tenho a honra de oferecer-lhe mayonaise.
Dá-se
uma coisa: se Eduardo não tivesse recuado tão cobardemente como o fez, eu ter—
— lhe ia atirado com um copo.
Ao
descermos da ruína, ao pôr do sol, a marquesinha tomou o meu braço. Eu tive um
estremeção de horror como se tivesse tocado num bicho asqueroso.
—
Li o seu bilhete... — melodiou ela.
Eu
estava inteiramente perdido, envenenado, cego. Minha mulher e o meu amigo
tinham-me posto numa exacerbação de ciúme estúpido que me enlouquecia. Que
imaginam que lhe respondi?...
Ah!
leu o meu bilhete? Bem. Pode ter então o incômodo de mo restituir. Sinto-me
corar até o branco dos olhos quando me lembro que disse isto, eu!
Restituir-lho
não, meu querido amigo — replicou a marquesa agitando alegremente o seu leque.
Oh! o seu bilhete pertence à minha coleção de curiosidades...
Deve
ser preciosa — pelo número ao menos — a sua coleção!
É
grande, é! Que quer, meu amigo? os homens
de espírito são tantos ... Eu tenho-os num quadro, atravessados por
alfinetes, sobre um fundo verde, como os meus insetos.
Tem
sido muito visitado... por senhoras...
o seu bonito museu?
O
braço da condessa tremeu ligeiramente como se lho tivessem picado. Mas,
imediatamente, sorrindo, respondeu:
Não...
As minhas amigas cultivam vivos a espécie de animais que eu não posso suportar
senão mortos, imóveis, mudos e varados pelos alfinetes de Fanny, a minha criada
de quarto. Ora isto faria chorar talvez as minhas amigas, o que obrigaria os
seus conhecidos a distraí-las — dando-lhes bonitinhos desenhados por eles...
Eu
senti-me apoplético, e precisei de alargar o coleirinho e de abrir a boca, para
respirar.
Então! — acrescenta ela, voltando-se para os outros e metendo os dedos na crina do seu cavalo do qual nos tínhamos aproximado — Não querem ver o meu cavaleiro que me não ajuda a montar?!
Eu
peguei nela e pousei-a no selim com o mesmo sorriso com que a teria lançado ao
mar com uma pedra ao pescoço.
Obrigado!...
disse-me ela lentamente e estendendo os beiços com o mesmo gesto de quem me
enviasse um beijo.
E,
dando-me os dedos calçados numa estreita luva de camurça, acrescentou:
—
Permito-lhe que me beije a mão. Eu dava mordeduras em mim.
Finalmente,
ao cair da noite, achei-me a sós, no hotel, com o meu prezadíssimo amigo.
—
Então! Que tal? interrogou ele. Eu não respondi. A primeira coisa que fiz foi
arrancar-lhe do pescoço a minha gravata azul e atirar-lhe com a sua infame
gravata cor de cereja, que guardara numa algibeira.
Ele
tentou abraçar-me... — Para trás! — clamei eu — não macule com a impureza do
seu contato as fibras castas de um homem de bem. Proíbo-lhe — entenda bem isto!
— proíbo-lhe absolutamente que torne a levantar os olhos para minha mulher.
Mas
vê lá, querido, que te não faça isso desarranjo! Eu não tenho pressa nenhuma,
estou sempre pronto para te servir, e não tenho dúvida em continuar até amanhã
ou depois...
Basta,
senhor! Acabe-se de uma vez para sempre com este jogo infame. Restitua-me a
minha gravata!... Ah! sim... agora me recordo que já lha arranquei... Mais
tarde verei se hei de também arrancar-lhe a vida! Agora saia! Saia, e que nunca
mais eu o torne a ver!
Apesar
de quanto havia de cômico na minha situação eu estava profundamente indignado e
triste. Creio que Eduardo compreendeu isto, porque o vi sair pesaroso e calado.
Eu
não quis jantar. Fui passear sozinho pelas ruas mais desertas de Homburgo.
Quando entrei no quarto de minha mulher eram dez horas da noite.
Muito
bem aparecido! disse-me ela alegremente. Que tens tu hoje que ainda me não falaste?
que estás de mau humor com toda a gente?
O
ar de minha mulher e o tom da sua voz eram tão meigos, tão inocentes, de uma
transparência tão casta, que eu resolvi retardar a minha explosão.
Senta-te
um momento, continuou, e vê se me explicas umas coisas que sucedem e que eu não
entendo...
Ela
tinha ajeitado uma almofada do sofá ao seu lado. Sentei-me.
Em
primeiro lugar, prosseguiu minha mulher, que quer dizer este bilhete? Vi então
entre os seus dedos um papel como o da minha carta à marquesinha, dobrado da
mesma forma, com a mesma marca do hotel, em tinta azul, a um canto...
Senti
suores frios e cuidei que desmaiava. Minha mulher abriu o bilhete, e leu:
"Minha
senhora. "Para desfazer um qui pro
quo que poderia porventura influir no sossego do seu espírito, julgo do meu
dever declarar a vossa excelência que era meu o bilhete que a senhora de C...
deixou cair esta manhã aos pés de vossa excelência. É em desfecho desse pequeno
romance que eu parto hoje para Paris, para onde recebo as ordens de vossa
excelência.
"Tenho
a honra de ser com o mais profundo respeito
De
vossa excelência o menor criado
Eduardo de B..."
—
Então? acrescentou minha mulher, que quer isto dizer?
Senti
que de cima do meu coração se erguera um peso de trezentos quilos. Eu carregava
em mim para o chão com receio que o meu repentino desafogo me erguesse como um
balão no espaço.
Eu sei lá o que isso quer dizer? É que Eduardo receou talvez que tu supusesses que era de outra pessoa o bilhete de que se trata...
Ora
essa! De quem havia de ser então? No terraço não estávamos senão nós, ele e tu.
Quem havia de ser senão fosse ele? Eu mesmo te vi a ti tomares o lenço da mão
de Eduardo e dá-lo à condessa com o bilhete envolvido...
Mas,
permite-me esta observação... Pareceu-me notar que Eduardo te fez hoje,
levemente, um sintomazinho de corte...
Pelo
contrário: falando-se da condessa, disse-me que ela era a depositária dos seus
pensamentos. Portanto este bilhete não tem explicação nenhuma senão que o teu
amigo quis passar aos meus olhos por um conquistador feliz: concorda que não há
nada mais grosseiro, mais enfatuado e mais tolo!
Que
havia de eu responder? Pedi mentalmente ao meu adorado amigo que me perdoasse,
e disse o mais baixinho que pude:
—
Con-cor-do!
Houve
uma pausa, durante a qual o meu espírito retomou posse da situação em que me achava.
E
a marquesa?... arrisquei-me a perguntar.
A
marquesa partiu com Eduardo.
Tive
um pequeno movimento de despeito instantâneo, mas longo de definir, e talvez
impossível de explicar...
Minha
querida — acrescentei então com uma insistência cordial — tens razão: Eduardo é
positivamente um parvo!
Depois
do que beijei minha mulher com a mais sincera estima.
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