6/06/2019

A praga (Conto), de João Grave



A praga

Quando eles, num sábado, logo ao romper de alva, foram à igreja para se casar, ela com seu vestido branco e uma alvorada de mocidade a iluminá-la, e ele sadio e forte, costumado a vencer nas lutas do trabalho — toda a gente da aldeia dizia:

— Que lindo par! Não se encontra outro assim, por estas redondezas!

Margarida ouvia o coro de louvores e envaidecia-se; mas, se o noivo baixava o olhar sobre a sua fronte cheia de graça e de beleza, sentia-se confusa, e corava. Nos céus luzentes faiscava o bom sol de Deus, dourando toda a paisagem que resplandecia. Parecia que a claridade duma formosura nova embebia o mundo de luz; e até o lugarejo, pobre sítio de cavadores onde apenas, pelas noites alagadas de lua, alguma viola soluçava ou uma canção elegíaca suspirava e morria, aparecera nessa madrugada branquejando e palpitando duma alegria inefável.

Ao entrar do cortejo nupcial na igreja, os sinos repicaram festivamente; e as raparigas, que tinham namorados, vieram com abadas de flores e de verduras. Os altares dir-se-iam canteiros de rosas e o linho das aras cheirava às relvas das campinas, por onde andara enxugando. Um secreto contentamento, uma esperança amorosa, cantavam na alma de Margarida. Aos seus olhos tudo se transfigurava, tudo ganhava relevo e cor; e fora do templo, sob as acácias, chalreavam os pássaros.

A noiva deixava errar a vista pelos nichos, pela longa nave que os fumos tênues do incenso toldavam duma névoa leitosa; e os santos, sonhando entre jarras com lírios frescos, tinham sorrisos de candura nas bocas proféticas.

— Bom agouro — pensava ela.

Que os santos se não enganassem, eles que vivendo na divina companhia de Deus, conhecem todos os mistérios e adivinham as venturas ou as desgraças do futuro. A paz, o nimbo de formosura e de esplendor que tocavam as coisas e as criaturas naquelas doces horas que iam correndo, tranquilizavam Margarida, que jamais pudera esquecer a praga que a velha Francisca lhe rogara, mal soube que ia casar com o Joaquim, que desamparava para sempre, com um
filhinho, sua neta Maria.

A bruxa causava pavor aos corações simples e supersticiosos. Conhecia certas ervas virtuosas para curar as chagas, sabia orações para afastar as calamidades e as trovoadas e andava sempre pelas igrejas, com o rosário nas mãos enrugadas, murmurando orações. Enfermos com espirito ruim no corpo consultavam-na e melhoravam, depois dum defumadouro e de irem à meia-noite em peregrinação, buscar água de sete fontes e terra ao cemitério.

Quando uma vez Maria lhe confessou a culpa, chorando, sentiu uma grande cólera. Aquela neta era a flor dos seus olhos e queria-lhe com infinito amor; mas os prantos e o infortúnio da desgraçada amoleceram a sua dureza: e foi já com brandura que lhe disse:

— Deixa, menina, não te consumas. Em bom pano cai uma nódoa. E depois, pode ser que ele se resolva a reparar a culpa...

— Diz-me sempre que hei de ser a sua mulher...

— Pois que se arrependa e que lave essa mancha. Largos dias têm cem anos.

Mas os meses foram passando, nasceu a criança — por sinal que Maria esteve às portas da morte — e o Joaquim saiu para fora da terra, a tentar fortuna, prometendo:

— Quando eu vier, é certo. Não podemos casar, sem governo nenhum. Quero ganhar dinheiro para umas casas. Espera-me.

E ela ficou com o pequenino nos braços, murchando, passada de saudades e de aflição. O seu único refúgio era a criança, nos momentos de maior dor. Os pais repeliram-na, as raparigas da sua idade, ao passarem por ela, voltavam a cara com desdém, os lavradores negavam-lhe trabalho; e Maria, apertando o filho ao seio,  exclamava com a voz cortada de soluços fundos:

— Meu amorzinho do céu, só te tenho a ti neste mundo. Não me fujas, e que teu pai se recorde das grandes ralações que me faz sofrer.

As lágrimas cegavam-na: lembrava-lhe o repoiso eterno da morte, numa cova muito funda, onde não chegassem nenhuns gritos, nenhuns rumores, nenhuns padecimentos da vida miserável o egoísta. Somente a avó a acarinhava, com piedade; e muitas vezes, se a encontrava embalando o filho, no berço desagasalhado, perto do calor da lareira:

Quem tem meninos pequenos,
Por força lhe há de cantar;
Quantas vezes as mães cantam
Com vontade de chorar...

Francisca, limpava os olhos bruscamente, com um nó na garganta que a tomava toda. Recordava-se da infância de Maria, também pequenina vinte anos antes, que ela adormecia nos seus braços ainda fortes nesse tempo, e murmurava:

— Estou a vê-la como um botãozinho! E aqui está ela crescida e já mãe! Como o tempo corre depressa!

Depois, acudiam-lhe imaginação as revoadas dos sonhos que sonhara para aquela neta, uma existência plácida e feliz, o amor dum homem que a estimasse, a fartura, a prosperidade; e via-a assim, desprezada, sem carinhos nem bondades de ninguém.

— Isto faz estalar o coração. Há criaturas que Deus devia levar à nascença!

E era com uma piedade enorme transbordando da alma, que a velha se abraçava a Maria, adoçando-lhe as amarguras, e dizendo-lhe:

— Espera, mulher! Não te há de faltar um quarto de hora p'ra morrer... E enquanto fores viva, olha que a terra é larga e tem lugar p'ra todos.

Esperar! Mas ela esperava sempre, com uma ilusão muito vaga, e que ainda era como um bálsamo que do céu caísse, como uma flor casta de luar florindo dentro do seu peito atormentado. Desde que se fora, Joaquim nunca mais lhe escreveu, nunca mais! — nem tornou a saber dele.

Seria morto? Seria vivo? Ah! quando ele voltasse, vinha encontrá-la fanada, como uma rosa que se cortou num vergel, que deu perfume e que secou.

Que teria ela para oferecer-lhe? A sua beleza apagava-se lentamente, crestada pelo lume do padecimento; o seu sorriso esmorecia-lhe nos lábios; a luz dos seus olhos amortecia; e as suas faces cobriam-se de rugas. Querer-lhe-ia ele?

Ora, um dia, espalhou-se a boa nova de que Joaquim chegara à aldeia. E faziam-se comentários:

— Um brasileiro! Corrente de ouro, relógio, fatiota domingueira, bela faixa encarnada, um fidalgo! E traz bago, muito bago!...

Maria, ao saber a notícia, correu a procurá-lo, com uma cor de juventude no rosto. Jamais o esquecera, jamais o deixara cie amar, revia-se com encanto no pequenino que era o retrato dele... Encontrou-o, abraçou-se ao seu namorado com um ímpeto em que iam esperanças reverdecidas, novas florescências dum amor puríssimo que subitamente viçava; e, por entre as lágrimas e os beijos, mostrava-lhe a criança espantada e com um ar de desconfiança:

— Chama-se Joaquim como tu. É teu filho! Pega-lhe ao colo, anda!

Mas, ele não se movia! Aquela explosão de contentamento, aquela alegria, aquela ternura duma mulher que o sofrimento tão depressa acabara, perturbavam-no. Que enlevo podia ele encontrar agora nessa mãe sem mocidade, que ele beijara e seduzira quando ela era linda? E Maria nem dava pela frieza. Fazia-lhe preguntas, tornava a abraçá-lo, a beijá-lo, exclamando:

— Agora não me deixas mais, filho? Não, não! Olha que nem sabes o que eu tenho penado! Depois te contarei! Porque nós agora casamos, não é assim?

— Vamos a ver, vamos a ver!

E como ela recuasse lívida, com as mãos enclavinhadas nos cabelos, soltando um grito rouco, ele, para a acalmar, disse:

— São essas as minhas intenções... Mas, não faças cenas!

Ora, na romaria de Nossa Senhora do Rosário, o Joaquim, que tocava viola na perfeição, pegou-se ao desafio com a Margarida; e durante horas, nenhum deles se deu por vencido.

Em roda, o povo admirava e Maria experimentava uma dor muito funda no coração, mas não dizia nada. Dali em diante, o Joaquim começou a tratá-la friamente, a fugir-lhe, a aborrecer-se com os seus queixumes; e um dia, como a visse toda lacrimosa e lamentando-se da ingratidão, não se conteve, murmurando:

— Não te posso enxergar. Larga-me!

— Mas, tu perdeste-me, prometeste-me casamento!

— Tolices que a gente faz...

E voltou-lhe as costas, deixando-a em soluços, cortada de mágoa, mais desditosa do que nunca.

O namoro com Margarida ganhou raízes; Joaquim seguia a sombra da rapariga para toda a parte, jurando, fazendo promessas. A aldeia inteira rosnava, mas eles não davam fé do que à sua volta se passava, enlevados, extasiados no mesmo sonho. Cantavam pelas romarias, pelos arraiais, pelas desfolhadas; onde um estivesse, estava também o outro.

E eram, na verdade, dois lindos noivos, em plena manhã da vida. As murmurações foram abrandando; Maria esqueceu, com o pequenino sempre aconchegado ao peito sem calor e sem leite, mirrada e macerada. Todos a desdenhavam, menos a avó, que, quanto mais forte era o infortúnio dela, mais lhe queria. Se a trouxera nos braços e lhe adormentara a meninice!... As grandes adorações nunca empalidecem nas almas puras.

Um domingo, à missa conventual, leram-se os banhos e foi um clamor de risos, de felicitações. Francisca estava na igreja, desfiando o seu rosário vagarosamente; e, quando as palavras do padre, na sua estola branca e violeta, coroada dum reflexo de luz que se coava pelos vitrais altos , lhe chegaram aos ouvidos, nos seus olhos vagos e quase cegos faiscou um relâmpago de ódio. Como encontrasse no adro Margarida, purpurejada de alegria, com grilhões de ouro ao pescoço, levantando o braço trêmulo, lançou a maldição, com voz vibrante:

— Deus permita que nunca possas ver as coisas em que mais empenho fizeres, e que não tenhas uma hora de descanso na tua vida. Amém! três vezes amém!

Margarida empalideceu, recolhendo a casa muito triste. A praga da bruxa aterrou-a; mas, com o volver do tempo, os seus sustos sossegariam.

Francisca, ao sair da missa, foi para a companhia da neta, exclamando num grande pranto que a abalava toda:

— Não te apoquentes filha, que me tens a mim. Os outros, casam-se; mas se há Deus, esta maldade não fica sem castigo!

Era por isso que na manhã gloriosa e loira do seu noivado, Margarida pousava os olhos nos santos com tanto ardor, pedindo-lhes que a protegessem contra as ciladas da existência e os ódios da gente que lhe queria mal.

A primavera fazia estremecer, na natureza inteira, uma impetuosa onda de vigor, rica de seiva e de florações. A terra ressuscitava como numa aleluia sagrada; as serpentes de roseiras enroscavam-se iradamente nas árvores, despenhando-se em grinaldas e pelas moitas refloridas cantavam ninhos. Com tanta alegria no mundo, por que não teria Margarida confiança na felicidade? É verdade que Maria ficara abandonada e só, acabrunhada de desgostos, quando passava com o feixe de lenha as costas para o seu lar deserto ou quando, ao cair das noites, ia à fonte, com o pequenino atrás, a chorar. Mas Deus abençoava todo o amor sincero, e ela, se casara com Joaquim, foi por muito lhe querer. Esta ideia serenava-a.

Mas, logo na sua primeira semana de esposa, caiu doente com bexigas. As mulheres que iam visitá-la, saíam horrorizadas, fazendo o sinal da cruz e dizendo:

— Foi castigo, foi castigo. Está que se não conhece. O seu corpo é uma chaga!

A bruxa rejubilava dum contentamento diabólico, murmurando para a nela:

— Ninguém as faz que as não pague. Deus não dorme...

Durante um mês, Margarida esteve entre a vida e a morte: e um dia, já curada e disforme, ficou transida, quando quis abrir os olhos à luz e nada viu.

— Que horas são, Joaquim? — preguntou ela ao marido, que tinha entrado para o jantar.

— Meio-dia. Tu não vês o sol?

— Não vejo. Leva-me à janela...

— Aqui estás. Olha, acolá a casa do regedor; mais além é o quinteiro do Manuel da Ermida.

— Não vejo nadai — afirmava ela.

De repente, soltou um grito e caiu soluçando. As lágrimas banhavam-lhe toda a face marcada de fundas covas, que a desfiguravam completamente.

— Estou ceguinha, minha Nossa Senhora das Dores! — murmurava a cada instante, passando as mãos pelos olhos. Estou ceguinha, Joaquim! Nunca mais te torno a ver...

Ele sucumbiu diante dessa mulher que conhecera tão bela, com uns lábios frescos de romã madura e com uns olhos tão negros que perturbavam.

E pensava como a sua vida, para o futuro, seria amarga, na companhia da cega, que não poderia ajudá-lo no cultivo das terras nem cuidar--lhe dos arranjos da casa.

— Estou ceguinha, Jesus do céu! — exclamava Margarida com terror. Bem mo disse a bruxa, naquela manhã em que se leram os nossos banhos. Que há de agora ser de mim!

Joaquim não teve uma palavra de conforto para tanta agonia; mas, principiava a temer o poder sobrenatural da bruxa, que afirmava a todas as pessoas:

— Praga que eu rogue, pega. Vejam a outra! Lá está para um canto, sem vista! Eu bem lho tinha dito...

— Que camisa de onze varas em que eu me meti! Só pelos diabos! — confessava ele.

Vendeu as terras e abalou, pouco depois, deixando a mulher à mercê de todo o auxílio, sem meios para ganhar a migalha.

— Que se arranje, que peça esmola. Não estou para aturar o mostrengo.

E não tornou a aparecer na aldeia. Nos primeiros tempos, quando Margarida preguntava por ele, iludiam-na.

— Saiu para o trabalho, mulher...

— Coitado! Agora tem de sustentar-me, tem de ganhar para duas bocas!

Quando entrava alguém, inquiria sempre:

— És tu, Joaquim? Ora, anda cá, meu filho! Onde estás?

E procurava-o com as pobres mãos incertas, apalpando a escuridão. As pessoas que lhe levavam a tigela de caldo, choravam. Mas a caridade também cansa, e Margarida, por fim, passava muitos dias sem comer.

— Joaquim, Joaquim! Não me deixes só, meu homem, assim tão ceguinha, que nem dou com o púcaro da água...

E foi, precisamente, quando a soube desamparada de toda a bondade, que Maria a procurou, ajoelhando-lhe aos pés e pedindo:

— Perdoa-me, que ainda és mais infeliz do que eu.

— E quem és tu?

— Maria!

— E Joaquim?

— Joaquim deixou-te há muito tempo, como me deixou a mim. Fez de nós duas desgraçadas...

— Deixou-me? Pois, ele deixou-me também?... Oh! meu Deus! Oh! Virgem Santíssima, matai-me!

— Não peças a morte, que eu serei a tua guia, Margarida. Mas perdoa-me, que tenho remorsos.

Então a cega, curvando-se, abraçou Maria freneticamente, um grande e alucinado abraço, exclamando:

— Perdoa-me tu, Maria, e não me queiras mal, que já basta a vingança. Mas se precisas do meu perdão, eu to dou...

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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