A praga
Quando eles, num sábado, logo ao romper de
alva, foram à igreja para se casar, ela com seu vestido branco e uma alvorada
de mocidade a iluminá-la, e ele sadio e forte, costumado a vencer nas lutas do
trabalho — toda a gente da aldeia dizia:
— Que lindo par! Não se encontra outro
assim, por estas redondezas!
Margarida ouvia o coro de louvores e
envaidecia-se; mas, se o noivo baixava o olhar sobre a sua fronte cheia de
graça e de beleza, sentia-se confusa, e corava. Nos céus luzentes faiscava o
bom sol de Deus, dourando toda a paisagem que resplandecia. Parecia que a
claridade duma formosura nova embebia o mundo de luz; e até o lugarejo, pobre
sítio de cavadores onde apenas, pelas noites alagadas de lua, alguma viola soluçava
ou uma canção elegíaca suspirava e morria, aparecera nessa madrugada branquejando
e palpitando duma alegria inefável.
Ao entrar do cortejo nupcial na igreja,
os sinos repicaram festivamente; e as raparigas, que tinham namorados, vieram
com abadas de flores e de verduras. Os altares dir-se-iam canteiros de rosas e
o linho das aras cheirava às relvas das campinas, por onde andara enxugando. Um
secreto contentamento, uma esperança amorosa, cantavam na alma de Margarida.
Aos seus olhos tudo se transfigurava, tudo ganhava relevo e cor; e fora do
templo, sob as acácias, chalreavam os pássaros.
A noiva deixava errar a vista pelos
nichos, pela longa nave que os fumos tênues do incenso toldavam duma névoa
leitosa; e os santos, sonhando entre jarras com lírios frescos, tinham sorrisos
de candura nas bocas proféticas.
— Bom agouro — pensava ela.
Que os santos se não enganassem, eles
que vivendo na divina companhia de Deus, conhecem todos os mistérios e
adivinham as venturas ou as desgraças do futuro. A paz, o nimbo de formosura e
de esplendor que tocavam as coisas e as criaturas naquelas doces horas que iam
correndo, tranquilizavam Margarida, que jamais pudera esquecer a praga que a
velha Francisca lhe rogara, mal soube que ia casar com o Joaquim, que
desamparava para sempre, com um
filhinho, sua neta Maria.
A bruxa causava pavor aos corações simples
e supersticiosos. Conhecia certas ervas virtuosas para curar as chagas, sabia
orações para afastar as calamidades e as trovoadas e andava sempre pelas
igrejas, com o rosário nas mãos enrugadas, murmurando orações. Enfermos com
espirito ruim no corpo consultavam-na e melhoravam, depois dum defumadouro e de
irem à meia-noite em peregrinação, buscar água de sete fontes e terra ao
cemitério.
Quando uma vez Maria lhe confessou a
culpa, chorando, sentiu uma grande cólera. Aquela neta era a flor dos seus
olhos e queria-lhe com infinito amor; mas os prantos e o infortúnio da
desgraçada amoleceram a sua dureza: e foi já com brandura que lhe disse:
— Deixa, menina, não te consumas. Em bom
pano cai uma nódoa. E depois, pode ser que ele se resolva a reparar a culpa...
— Diz-me sempre que hei de ser a sua
mulher...
— Pois que se arrependa e que lave essa
mancha. Largos dias têm cem anos.
Mas os meses foram passando, nasceu a
criança — por sinal que Maria esteve às portas da morte — e o Joaquim saiu para
fora da terra, a tentar fortuna, prometendo:
— Quando eu vier, é certo. Não podemos
casar, sem governo nenhum. Quero ganhar dinheiro para umas casas. Espera-me.
E ela ficou com o pequenino nos braços,
murchando, passada de saudades e de aflição. O seu único refúgio era a criança,
nos momentos de maior dor. Os pais repeliram-na, as raparigas da sua idade, ao
passarem por ela, voltavam a cara com desdém, os lavradores negavam-lhe
trabalho; e Maria, apertando o filho ao seio,
exclamava com a voz cortada de soluços fundos:
— Meu amorzinho do céu, só te tenho a ti
neste mundo. Não me fujas, e que teu pai se recorde das grandes ralações que me
faz sofrer.
As lágrimas cegavam-na: lembrava-lhe o
repoiso eterno da morte, numa cova muito funda, onde não chegassem nenhuns
gritos, nenhuns rumores, nenhuns padecimentos da vida miserável o egoísta.
Somente a avó a acarinhava, com piedade; e muitas vezes, se a encontrava
embalando o filho, no berço desagasalhado, perto do calor da lareira:
Quem tem meninos pequenos,
Por força lhe há de cantar;
Quantas vezes as mães cantam
Com vontade de chorar...
Francisca, limpava os olhos bruscamente,
com um nó na garganta que a tomava toda. Recordava-se da infância de Maria,
também pequenina vinte anos antes, que ela adormecia nos seus braços ainda
fortes nesse tempo, e murmurava:
— Estou a vê-la como um botãozinho! E
aqui está ela crescida e já mãe! Como o tempo corre depressa!
Depois, acudiam-lhe imaginação as
revoadas dos sonhos que sonhara para aquela neta, uma existência plácida e
feliz, o amor dum homem que a estimasse, a fartura, a prosperidade; e via-a
assim, desprezada, sem carinhos nem bondades de ninguém.
— Isto faz estalar o coração. Há
criaturas que Deus devia levar à nascença!
E era com uma piedade enorme
transbordando da alma, que a velha se abraçava a Maria, adoçando-lhe as
amarguras, e dizendo-lhe:
— Espera, mulher! Não te há de faltar um
quarto de hora p'ra morrer... E enquanto fores viva, olha que a terra é larga e
tem lugar p'ra todos.
Esperar! Mas ela esperava sempre, com
uma ilusão muito vaga, e que ainda era como um bálsamo que do céu caísse, como
uma flor casta de luar florindo dentro do seu peito atormentado. Desde que se
fora, Joaquim nunca mais lhe escreveu, nunca mais! — nem tornou a saber dele.
Seria morto? Seria vivo? Ah! quando ele
voltasse, vinha encontrá-la fanada, como uma rosa que se cortou num vergel, que
deu perfume e que secou.
Que teria ela para oferecer-lhe? A sua
beleza apagava-se lentamente, crestada pelo lume do padecimento; o seu sorriso
esmorecia-lhe nos lábios; a luz dos seus olhos amortecia; e as suas faces
cobriam-se de rugas. Querer-lhe-ia ele?
Ora, um dia, espalhou-se a boa nova de
que Joaquim chegara à aldeia. E faziam-se comentários:
— Um brasileiro! Corrente de ouro,
relógio, fatiota domingueira, bela faixa encarnada, um fidalgo! E traz bago,
muito bago!...
Maria, ao saber a notícia, correu a
procurá-lo, com uma cor de juventude no rosto. Jamais o esquecera, jamais o
deixara cie amar, revia-se com encanto no pequenino que era o retrato dele...
Encontrou-o, abraçou-se ao seu namorado com um ímpeto em que iam esperanças
reverdecidas, novas florescências dum amor puríssimo que subitamente viçava; e,
por entre as lágrimas e os beijos, mostrava-lhe a criança espantada e com um ar
de desconfiança:
— Chama-se Joaquim como tu. É teu filho!
Pega-lhe ao colo, anda!
Mas, ele não se movia! Aquela explosão
de contentamento, aquela alegria, aquela ternura duma mulher que o sofrimento
tão depressa acabara, perturbavam-no. Que enlevo podia ele encontrar agora
nessa mãe sem mocidade, que ele beijara e seduzira quando ela era linda? E
Maria nem dava pela frieza. Fazia-lhe preguntas, tornava a abraçá-lo, a
beijá-lo, exclamando:
— Agora não me deixas mais, filho? Não,
não! Olha que nem sabes o que eu tenho penado! Depois te contarei! Porque nós
agora casamos, não é assim?
— Vamos a ver, vamos a ver!
E como ela recuasse lívida, com as mãos
enclavinhadas nos cabelos, soltando um grito rouco, ele, para a acalmar, disse:
— São essas as minhas intenções... Mas,
não faças cenas!
Ora, na romaria de Nossa Senhora do
Rosário, o Joaquim, que tocava viola na perfeição, pegou-se ao desafio com a
Margarida; e durante horas, nenhum deles se deu por vencido.
Em roda, o povo admirava e Maria
experimentava uma dor muito funda no coração, mas não dizia nada. Dali em
diante, o Joaquim começou a tratá-la friamente, a fugir-lhe, a aborrecer-se com
os seus queixumes; e um dia, como a visse toda lacrimosa e lamentando-se da
ingratidão, não se conteve, murmurando:
— Não te posso enxergar. Larga-me!
— Mas, tu perdeste-me, prometeste-me
casamento!
— Tolices que a gente faz...
E voltou-lhe as costas, deixando-a em
soluços, cortada de mágoa, mais desditosa do que nunca.
O namoro com Margarida ganhou raízes;
Joaquim seguia a sombra da rapariga para toda a parte, jurando, fazendo
promessas. A aldeia inteira rosnava, mas eles não davam fé do que à sua volta
se passava, enlevados, extasiados no mesmo sonho. Cantavam pelas romarias,
pelos arraiais, pelas desfolhadas; onde um estivesse, estava também o outro.
E eram, na verdade, dois lindos noivos,
em plena manhã da vida. As murmurações foram abrandando; Maria esqueceu, com o
pequenino sempre aconchegado ao peito sem calor e sem leite, mirrada e
macerada. Todos a desdenhavam, menos a avó, que, quanto mais forte era o
infortúnio dela, mais lhe queria. Se a trouxera nos braços e lhe adormentara a
meninice!... As grandes adorações nunca empalidecem nas almas puras.
Um domingo, à missa conventual, leram-se
os banhos e foi um clamor de risos, de felicitações. Francisca estava na
igreja, desfiando o seu rosário vagarosamente; e, quando as palavras do padre,
na sua estola branca e violeta, coroada dum reflexo de luz que se coava pelos vitrais
altos , lhe chegaram aos ouvidos, nos seus olhos vagos e quase cegos faiscou um
relâmpago de ódio. Como encontrasse no adro Margarida, purpurejada de alegria,
com grilhões de ouro ao pescoço, levantando o braço trêmulo, lançou a maldição,
com voz vibrante:
— Deus permita que nunca possas ver as
coisas em que mais empenho fizeres, e que não tenhas uma hora de descanso na
tua vida. Amém! três vezes amém!
Margarida empalideceu, recolhendo a casa
muito triste. A praga da bruxa aterrou-a; mas, com o volver do tempo, os seus
sustos sossegariam.
Francisca, ao sair da missa, foi para a
companhia da neta, exclamando num grande pranto que a abalava toda:
— Não te apoquentes filha, que me tens a
mim. Os outros, casam-se; mas se há Deus, esta maldade não fica sem castigo!
Era por isso que na manhã gloriosa e
loira do seu noivado, Margarida pousava os olhos nos santos com tanto ardor,
pedindo-lhes que a protegessem contra as ciladas da existência e os ódios da
gente que lhe queria mal.
A primavera fazia estremecer, na
natureza inteira, uma impetuosa onda de vigor, rica de seiva e de florações. A
terra ressuscitava como numa aleluia sagrada; as serpentes de roseiras
enroscavam-se iradamente nas árvores, despenhando-se em grinaldas e pelas
moitas refloridas cantavam ninhos. Com tanta alegria no mundo, por que não
teria Margarida confiança na felicidade? É verdade que Maria ficara abandonada
e só, acabrunhada de desgostos, quando passava com o feixe de lenha as costas
para o seu lar deserto ou quando, ao cair das noites, ia à fonte, com o
pequenino atrás, a chorar. Mas Deus abençoava todo o amor sincero, e ela, se
casara com Joaquim, foi por muito lhe querer. Esta ideia serenava-a.
Mas, logo na sua primeira semana de
esposa, caiu doente com bexigas. As mulheres que iam visitá-la, saíam
horrorizadas, fazendo o sinal da cruz e dizendo:
— Foi castigo, foi castigo. Está que se
não conhece. O seu corpo é uma chaga!
A bruxa rejubilava dum contentamento diabólico,
murmurando para a nela:
— Ninguém as faz que as não pague. Deus
não dorme...
Durante um mês, Margarida esteve entre a
vida e a morte: e um dia, já curada e disforme, ficou transida, quando quis
abrir os olhos à luz e nada viu.
— Que horas são, Joaquim? — preguntou
ela ao marido, que tinha entrado para o jantar.
— Meio-dia. Tu não vês o sol?
— Não vejo. Leva-me à janela...
— Aqui estás. Olha, acolá a casa do
regedor; mais além é o quinteiro do Manuel da Ermida.
— Não vejo nadai — afirmava ela.
De repente, soltou um grito e caiu
soluçando. As lágrimas banhavam-lhe toda a face marcada de fundas covas, que a
desfiguravam completamente.
— Estou ceguinha, minha Nossa Senhora
das Dores! — murmurava a cada instante, passando as mãos pelos olhos. Estou ceguinha,
Joaquim! Nunca mais te torno a ver...
Ele sucumbiu diante dessa mulher que
conhecera tão bela, com uns lábios frescos de romã madura e com uns olhos tão negros
que perturbavam.
E pensava como a sua vida, para o
futuro, seria amarga, na companhia da cega, que não poderia ajudá-lo no cultivo
das terras nem cuidar--lhe dos arranjos da casa.
— Estou ceguinha, Jesus do céu! —
exclamava Margarida com terror. Bem mo disse a bruxa, naquela manhã em que se
leram os nossos banhos. Que há de agora ser de mim!
Joaquim não teve uma palavra de conforto
para tanta agonia; mas, principiava a temer o poder sobrenatural da bruxa, que
afirmava a todas as pessoas:
— Praga que eu rogue, pega. Vejam a
outra! Lá está para um canto, sem vista! Eu bem lho tinha dito...
— Que camisa de onze varas em que eu me
meti! Só pelos diabos! — confessava ele.
Vendeu as terras e abalou, pouco depois,
deixando a mulher à mercê de todo o auxílio, sem meios para ganhar a migalha.
— Que se arranje, que peça esmola. Não
estou para aturar o mostrengo.
E não tornou a aparecer na aldeia. Nos
primeiros tempos, quando Margarida preguntava por ele, iludiam-na.
— Saiu para o trabalho, mulher...
— Coitado! Agora tem de sustentar-me,
tem de ganhar para duas bocas!
Quando entrava alguém, inquiria sempre:
— És tu, Joaquim? Ora, anda cá, meu
filho! Onde estás?
E procurava-o com as pobres mãos
incertas, apalpando a escuridão. As pessoas que lhe levavam a tigela de caldo,
choravam. Mas a caridade também cansa, e Margarida, por fim, passava muitos
dias sem comer.
— Joaquim, Joaquim! Não me deixes só,
meu homem, assim tão ceguinha, que nem dou com o púcaro da água...
E foi, precisamente, quando a soube
desamparada de toda a bondade, que Maria a procurou, ajoelhando-lhe aos pés e
pedindo:
— Perdoa-me, que ainda és mais infeliz
do que eu.
— E quem és tu?
— Maria!
— E Joaquim?
— Joaquim deixou-te há muito tempo, como
me deixou a mim. Fez de nós duas desgraçadas...
— Deixou-me? Pois, ele deixou-me também?...
Oh! meu Deus! Oh! Virgem Santíssima, matai-me!
— Não peças a morte, que eu serei a tua
guia, Margarida. Mas perdoa-me, que tenho remorsos.
Então a cega, curvando-se, abraçou Maria
freneticamente, um grande e alucinado abraço, exclamando:
— Perdoa-me tu, Maria, e não me queiras
mal, que já basta a vingança. Mas se precisas do meu perdão, eu to dou...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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