A pintura do automóvel
Eu explico
como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como
foi...
Quando tenho
um automóvel, limpo-o. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para
fazer exercícios, para ele não ficar sujo.
O ano
passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez
que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a
camurça é que ficávamos azuis. Não riam... A camurça ficava realmente azul: o
meu carro ia passando para a camurça. Por fim, pensei:
"Não
estou a limpar este carro. Estou a desfazê-lo!" E antes de acabar um ano,
o meu carro estava em metal puro. Já não era um carro, era uma anemia. O azul
tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de
sangue azul. Vi que tinha que pintar o carro de novo.
Foi então
que decidi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode
ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pintado tiver tendências para
a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura
deve estar pegada, como o cabelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como
um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.
Pensei eu:
quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável?
Lembrei-me que deveria ser o Bastos, lavador de automóveis, com uma Caneças de
duas portas nas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve
portanto saber o que vale a pena esfregar.
Procurei-o e
disse-lhe:
"Bastos
amigo, quero pintar o meu carro. Quero pintá-lo com um esmalte que fique lá,
com um esmalte fiel e indivorciável. Com que esmalte é que o hei de
pintar?"
“Com Barryloid", respondeu o Bastos,
"e só uma criatura muito ignorante é que tem a necessidade de me vir aqui
maçar com uma pergunta a que responderia do mesmo modo o primeiro chauffeur que soubesse a diferença entre
um automóvel e uma lata de sardinhas".
"Perfeitamente...",
respondi eu.
"Como
quer você pintar um carro…", continuou o Bastos sem me ligar importância,
"…senão com um esmalte que seja ao mesmo tempo brilhante e permanente? E,
ainda por cima fácil de aplicar... Isto do fácil de aplicar é comigo, mas é uma
virtude, e as virtudes citam-se... Vá-se embora!..."
"Bom...",
disse eu.
"Isto
de esmaltes de nitrocelulose", prosseguiu o Bastos, dando-me um encontrão,
não é um assunto de mercenária a retalho. Há uma coisa maçadora a que se chama
ciência. Sabe o que é? Mas é maçadora para quem prepara as coisas; para nós,
que as recebemos preparadas para as aplicarmos, é um alívio e uma alegria. Este
Barryloid é o produto de longos
cuidados feitos no primeiro laboratório de tintas, lacas e vernizes. Percebeu?
Não é o primeiro produto do gênero que apareceu; porque o ser primeiro está bem
se se trata de estar numa bicha, mas não se trata de tintas ou de coisas que
metam estudo e provas. Não!
Nas tintas e
na prática, a última palavra é que é a primeira.
"Meu
caro Bastos...", quis eu interromper.
"Só Barryloid", respondeu o Bastos,
virando-me as costas.
"Eu
queria agradecer...", prossegui.
"Traga
o carro", disse o Bastos.
Levei-lhe o
carro e ele pintou-o a Barryloid. E
não há camurça, nem chuva, nem poeira da pior estrada, que consiga envergonhar
esse esmalte de aço. Sim: o Bastos tratou-me mal, mas tratou bem a verdade. Não
há nada como o Barryloid.
... Tanto
assim que, quando comprei o meu segundo carro, tratei logo de saber se ele
vinha já pintado a Barryloid. Ele aí
está na base da página e no fim da minha história. Passa-se a camurça, mas é
preciso usar óculos fumados: o brilho deslumbra. E, o que é mais, deslumbrará,
porque dura.
A minha
camurça dura eternamente. O que se tem gasto muito são os óculos fumados; e os
elogios dos amigos que veem os meus carros pintados a Barryloid.
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...