6/22/2019

A passagem do Bojador (Conto), de Pinheiro Chagas







A passagem do Bojador
(Século XV)


CAPÍTULO 1: EM SAGRES
O vento do mar soprava rijamente nas agruras do promontório Sacro, onde se erguia a vila do Infante; a onda furiosa quebrava nas penedias escalvadas que for­mam um parapeito natural e altíssimo, donde o espec­tador contempla o oceano profundo e irado a, tentar de­balde ultrapassar os limites que a mão da Providên­cia lhe impôs. Algumas árvores raras e enfezadas es­torciam-se gementes ao sopro agudo do nordeste. Era triste a paisagem, nebulosa a tarde, e os últimos raios do sol, que se escondia no ocaso, apenas tingiam com desmaiada cor a crista espúmea das vagas.
Dois homens passeavam entre os rochedos, indiferen­tes à impressão desagradável que o vento cortante, que lhe sibilava aos ouvidos, produzia em quem se expu­nha às inclemências dessa tarde do princípio da pri­mavera. Estava-se em março de 1434.
Um dos dois homens, alto e forte, de fisionomia um tanto severa, mas que os olhos, cheios de viveza e de luz, abrandavam quando a indulgência lhe cintila­va nas pupilas, falava com energia, cm quanto o outro escutava com deferência e respeito.
O primeiro era o infante D, Henrique, filho del-rei D. João I, e irmão do monarca reinante, D. Duarte; chamava-se o seu interlocutor Gil Eanes, e era natural da próxima vila de Lagos.
— E não ousastes ainda, Gil Eanes? dizia o infan­te. Pois sois denodado e audacioso, que eu bem o sei! Mas que tem esse cabo Bojador, que tal susto vos in­funde a todos, assim que o divisais de longe? São ou­tros mares aqueles? têm outro aspeto as ondas? as pro­celas, que tão sossegadamente afrontais aqui no mar do Algarve, ou na baía de Biscaia, ou nos estreitos de In­glaterra, onde são piores, apavoram-vos só porque er­guem a voz rugidora junto de desconhecidas terras? Voto a Cristo que tinha mais confiança na vossa bra­vura, Gil Eanes!
— Senhor, redarguiu Gil Eanes, dizem que para aqueles lados a terra é mais baixa que o mar, que o sol queima as praias escalvadas, e que as correntes im­petuosas arrastam com irresistível força os navios para terríveis paragens, onde a morte é certa.
— E quem vos diz isso? tornou o infante com intimativa. Quatro marinheiros que nunca saíram da car­reira de Flandres, e que julgam que tudo o mais são áfricas impossíveis! Se a natureza para além do cabo Bojador tem mistérios, não vos sentis com ânimo de os devassar? Se a empresa fora pequena, não vo-la con­fiara, Gil Eanes; qualquer me serviria. Os homens de altos espíritos são para as altas façanhas.
— Senhor, tornou ainda o marinheiro, a um tempo lisonjeado e envergonhado com o elogio; se os perigos fossem de natureza terrestre, não temeria eu lançar-me a eles, e com júbilo procuraria a morte, se para vosso serviço fosse necessário. Mas eu jogo a alma arriscan­do-me a esses mares onde, o demônio impera!...
— Não cingis uma espada, Gil Eanes? perguntou o infante.
— De que serve a espada, senhor, contra inimigos infernais?
— A espada de um cristão tem lâmina e tem cruz: lâmina bem temperada para derribar os infiéis, cruz bendita para afugentar os espíritos maus.
Gil Eanes conservou-se algum tempo em silêncio.,
— Mas, senhor, redarguiu ele, os mareantes afirmam» que no cabo Bojador levantou ignota mão estátuas mis­teriosas, que guardam esses mares, e que proíbem aos. homens a passagem. É de certo com o consentimen­to de Deus que tais estátuas lá campeiam, e o aviso que dão aos navegantes não pôde deixar de ser um avi­so da Providência.
— E quem as viu? tornou D. Henrique meio impa­ciente. Ninguém. Crédulos sonhos formados pela imaginação timorata dos que se acolhem ao porto ape­nas veem acastelarem-se no horizonte as nuvens, e ene­grecerem as ondas ao primeiro sopro da procela! Não julgaram os antigos que Hércules levantara no estreito de Gibraltar uns pilares, com uma inscrição defenden­do aos humanos a entrada no Atlântico, por ser ele o mar das trevas? Bastas vezes tendes atravessado o es­treito, Gil Eanes! Vistes por acaso os pilares, lestes a inscrição? Daqui donde estamos divisa-se até ao ex­tremo horizonte a amplidão do Oceano. O que tem ele de tenebroso? A sombra que a noite, que princi­pia, lhe espraia sobre as ondas. Quando resplende o sol, não brincam tão docemente os seus raios de ouro na espuma do seu dorso, como podem voltear sobre o lúcido cristal das águas do Mediterrâneo? É mais se­vero este nosso velho leão, é mais alto o seu rugir, são mais tremendas as suas iras, do que as cóleras femini­nas do mar interior! Talvez por isso mesmo eu lhe queira mais; parece-me ler nele melhor a grandeza do Onipotente, do que a leio no Mediterrâneo, assim como a percebo melhor nas viris apóstrofes de Isaías do que na mística doçura do Cântico- dos Cânticos.
E o infante contemplou com amor o velho Oceano,, que encurvava a juba e arremessava as suas ondas de encontro à penedia, onde quebravam com estampido, arrojando aos ares uma nuvem de cintilante espuma.
Gil Eanes abaixou a cabeça e não respondeu.
— Ah! pois eu não sou ingrato, continuou o infan­te com amargura. Que perigos há no mundo tão grandes que não vos anime a afrontá-los a certeza de que obteríeis recompensa superior a tudo quanto pudésseis sonhar?
Gil Eanes interrompeu-o de súbito.
— Não faleis assim, senhor, disse ele erguendo a cabeça. Não me faleis em recompensas; servir-vos é o que eu desejo, e, se um ignoto pavor se não hou­vesse apoderado de mim e dos meus quando o ano pas­sado chegamos à vista do cabo, já o mistério estaria desvendado, ou nós todos jazeríamos no fundo das águas. Mas, senhor, não será tentar a Deus perseverar numa empresa diante da qual todos... todos têm recuado?...
— Não, meu amigo, tornou o infante com ardor, não, porque as nossas intenções são puras e santas. O que desejamos nós? Alargar o domínio do cristianis­mo, propagar a fé até aos confins do mundo, procurar esse misterioso monarca, nosso correligionário, que vi­ve entre gentios, esse Prestes-João, de que houve remota notícia pela embaixada que enviou há séculos ao San­to Padre de Roma. Com esses pios intentos, Gil Eanes, pode-se entrar ileso até no próprio inferno. Para vi­sitar as regiões sombrias, aos mortais defesas, colheu Eneias no bosque misterioso ramo de ouro protetor. Mas onde há ramo de ouro conhecido das sibilas que seja melhor talismã do que a própria cruz de Cristo? Empunhai a cruz, Gil Eanes, tende fé, e vereis dissipa­rem-se os vãos prestígios com que o demônio vos ater­ra. Ai! continuou ele exaltando-se, sonhei que aos portugueses estava reservada a glória de alargar os limi­tes do mundo conhecido, de derramar a luz no Oceano! Acreditai-me! Deus não condenou a sua própria obra, tornando inabitável uma tão grande porção do plane­ta onde colocou o homem: e, quando o exilou do paraí­so, deu-lhe aos menos a terra inteira para morada. Aos pagãos da antiguidade, que o blasfemavam, que estavam ainda debaixo do peso do pecado original, negou ele o conhecimento do mundo; mas se Cristo veio para nos redimir, por que não nos conduzirá também de novo ao paraíso terrestre? A coluna de fogo não guiava os israelitas à terra prometida? Quem sabe se a doce es­trela do Calvário não vos deve guiar também à radiosa habitação dos nossos primeiros pais? Confiados nela, vamos trilhando o caminho espumoso do pélago! A es­trela dos reis magos conduziu-os ao berço do Redentor, a estrela da religião talvez nos conduza ao berço da hu­manidade! E que glória para Portugal, se fôssemos nós o povo escolhido! Encurralados entre o mar e Caste­la, parece que nos quis Deus negar a faculdade de res­pirarmos livremente; quem sabe se nos deu isso antes como incitamento para desafogarmos pelo Oceano? A empresa é digna de nós, Gil Eanes, que somos filhos dos heróis de Aljubarrota. Vejo a cada instante partirem cavaleiros portugueses para se ilustrarem com feitos de armas em terras estrangeiras. Lá andou por Borgonha, França e Itália, Sueiro da Costa, o nosso valente alcaide de Lagos; lá andou por Inglaterra D. Álvaro Vaz de Almada; andou também por Alemanha o meu irmão D. Pedro. Praticaram generosas façanhas. Quem as não pratica na Europa? Valentes cavaleiros tem meu cunhado Filipe, o duque de Borgonha; valentes cavaleiros pelejam à sombra da bandeira de Carlos VII de França; brioso fidalgo tem na sua corte meu primo Henrique VI de Inglaterra. Todos aparam e distri­buem cutiladas. Mas qual deles ousaria medir-se com os perigos do Oceano? Talvez nenhum. Pois essas empresas, diante das quais os outros recuam, eram as que nós devíamos tentar. Fomos embalados com o ru­gir da vaga, afrontemo-la peito a peito, e saibamos ar­rancar-lhe do seio as pérolas que lá, jazem ocultas.
— Que grande sóis, senhor! exclamou Gil Eanes como que aterrado.
— E entretanto, continuou o infante, os meus pres­sentimentos não me enganam. Ilhas a que talvez já os nossos portugueses abordaram quando meu bisavô Afonso IV enviava os seus marinheiros às Canárias, e de certo mais longe ainda, apareciam vagamente designa­das nos mapas; supus que essas ilhas não estavam ali por acaso, enviei cavaleiros meus a demandá-las, e Zarco arrancou-me das ondas aquela preciosa Madeira e Gonçalo Velho lá me anda desentranhando do alto mar novas ilhas que serão talvez um arquipélago. Pa­ra além do Bojador, Gil Eanes, não traçam os mapas se­não linhas confusas. Não poderei eu substituí-las pelos contornos reais da costa africana? Essa glória que eu sonhava não me estará reservada? Oh! de certo que hei de realizar o meu sonho. Lançar-me-ei eu sozinho com um piloto no primeiro batel que se me deparar, e verei se a fortuna de César virá também pousar a mão no leme do meu barco.
— Oh! senhor! exclamou Gil Eanes.
— Talvez então me sigam os que hoje tremem, con­tinuou o infante; quando diante de Ceuta houve sol­dados portugueses que ousaram duvidar da bravura de um filho do mestre de Aviz, jurei que seria eu o primeiro ou o único a saltar em terra, porque não me importava saber se me seguiriam ou não. Atropelaram-se todos nos batéis para me acompanharem; mas talvez hoje não sucedesse o mesmo, porque os soldados de Ceuta, que não tremiam diante dos mouros, tremem diante de fantasmas que só deviam amedrontar crianças.
— Oh! não será assim, senhor, bradou Gil Eanes exaltado, não precisareis de tal. Aqui vos juro em pre­sença do Oceano que demandarei o cabo Bojador, e que só voltarei a Portugal depois de o ter dobrado, ain­da que todos os demônios do inferno estejam aposta­dos a impedir-me a passagem.
O som rouco do mar, quebrando nas penedias, da­va uma solenidade terrível a esse juramento, que o leão das águas era obrigado a testemunhar.
O infante D. Henrique estendeu a mão a Gil Eanes.
— És um bravo, disse ele.
— Senhor, tornou o marinheiro beijando-lhe a mão,, se a minha barca não tornar, quando o Oceano soar as­sim tristemente batendo nos rochedos de Sagres, se vos parecer ouvir uns gemidos vagos entre o referver das on­das, rezai um Padre-Nosso por alma do vosso servidor,
O infante só respondeu estreitando-o nos braços.
Descera a noite; mas o mar aplacara as suas fúrias, e no céu estrelado parecia sorrir a esperança.

CAPÍTULO 2: O QUARTO DA MADRUGADA
Lá vai a frágil barca sulcando as ondas do mar africano; já lhe fica pela popa o cabo de Não, a baliza fatal das navegações da idade média. Já lá fica tam­bém longe a mesa do cabo de Não, alta montanha que se levanta no meio do longo areal dessa costa, como único ponto de reparo em que se pode demorar a vista dos navegantes.
Vai quase a findar a noite, mas nem só a gente de serviço está desperta; ninguém dorme, e toda a tripu­lação, agrupada à proa, conversa em voz baixa olhando com terror para a costa onde pálidos reflexos cintilam entre a névoa produzida pela ressaca, ali fortíssima, da onda.
É a lua que se vai a sumir, e que faz brilhar, antes de desaparecer no horizonte, as areias da praia.
Sentado à popa, envolto num amplo manto mou­risco chamado alquicé, divisa-se um vulto pensativo: é o vulto de Gil Eanes.
Nada há, contudo, que pareça infundir terror; so­pra brandamente o vento de feição, a onda quebra pre­guiçosa no costado da barca, e no céu azul e sereno cin­tilam as estrelas.
O Oceano embala no dorso das suas vagas a barca aventureira; dir-se-ia que o luar dorme recostado no leito de espumas que branqueia.
Mas o terror transluz na fisionomia e nas falas dos marinheiros agrupados à proa.
— Lá vai a costa parece que a desfazer-se, dizia em voz baixa um dos algarvios, relanceando a vista pa­ra a terra, que mal se distinguia entre a névoa da ressaca; quando chega ao Bojador some-se de todo, e es­tá-se no mar das Trevas.
Um calafrio correu pelas veias dos circunstantes.
— Já houve imprudentes que o demandaram, excla­mou um velho marinheiro de voz autorizada e grave; foram portugueses também; as águas eram negras como breu, as ondas referviam e erguiam-se como montanhas; os nossos patrícios fizeram o sinal da cruz e investiram para diante, nunca mais se soube deles; um barinel que não se atreveu a avançar voltou a Portugal, mas ninguém na nossa terra conhecia os marítimos; tinham ido na flor da mocidade, voltavam de cabelos brancos.
— Credo! bradou um moço de Lagos, passando in­voluntariamente a mão pelos cabelos negros, e lembran­do-se da noiva gentil, que lhe dera ao embarcar, lava­da em lágrimas, o beijo da despedida.
— Mas, ó Sr. Lourenço Dias, tornou o primeiro que falara, como estivestes lá nos reinos do Norte, haveis de saber a história de um santo, que dizem que andou por esses mares, e que chegou até ao paraíso de Deus.
— É verdade, tornou Lourenço Dias, o Nestor da assembleia; quando eu fui à Irlanda, a Galway, ou como demônio se chama a terra do tal louraça que foi criado do Sr. infante, os marinheiros irlandeses contaram-me a história de São Brandão.
Todos se acercaram com curiosidade.
— Chegou ao paraíso, isso é que não tem dúvida; mas o que passou antes de lá chegar? Este mar está semeado de ilhas que pertencem a Satanás, e onde os que lhe entregaram as almas sofrem as penas do in­ferno. Numa estava sozinho Judas o traidor; noutra não se ouviam senão gemidos e prantos; sentiam-se nou­tra as patadas de cavalos de fogo, que galopavam sem­pre, sempre, montados por infelizes que soltavam gri­tos. São Brandão, como era santo, zombou do cão ti­nhoso, e chegou a uma ilha resplandecente, que era o paraíso, onde cantavam pássaros de ouro, asas de prata, peito de púrpura e de açafrão; quando voltou à Irlanda, trazia ainda no fato um aroma suave, que bem se percebia não ser da terra.
Os marinheiros olharam uns para os outros enle­vados.
— Quem me dera lá ir também! disse o enamorado moço de Lagos.
Tu és santo? redarguiu Lourenço Dias. Se és san­to, arrisca-te; mas olha que primeiro deves fazer voto de castidade.
O interpelado torceu o nariz e não replicou. O vento refrescara com a aproximação da madru­gada, e os seus gemidos fúnebres assemelhavam-se aos queixumes das almas penadas; muito ao longe ouvia-se um som rouco e mal distinto, como do mar quebran­do com fúria nos rochedos.
A companha caíra em silêncio profundo; mas o ter­ror pintava-se em todas as fisionomias.
O vento gemia lugubremente nas enxárcias; o mar tingira-se de um vermelho escuro; parecia ter perdido & liquidez, e na superfície baça das vagas ficara por largo espaço traçada a esteira da barca aventurosa.
Os marinheiros contemplavam com terror esse fe­nômeno, cuja causa é conhecida hoje de todos os na­vegantes; para o sul do cabo de Não, a muita areia soprada pelo vento do deserto avermelha as águas do Oceano e torna-as espessas; mas os marinheiros de Gil Eanes julgavam que era um prenúncio da aproximação do mar Tenebroso.
De repente levantaram-se todos, exclamando:
— Jesus!
O navio corria com uma velocidade pasmosa.
— É a corrente, é a corrente do Bojador! excla­mou um dos marujos".
— Estamos perdidos! bradou o enamorado.
— Vira de bordo, vira de bordo, gritou Lourenço Dias com voz clara mas trêmula.
Os marinheiros já corriam à manobra.
Porêm Gil Eanes desembuçara-se com presteza, e luzia-lhe na mãos a espada, — O primeiro que dá um passo morre, disse ele. Todos estacaram.
— Não morre ninguém, acudiu Lourenço Dias re­cobrado do primeiro assombro; o navio já vai levado pela corrente para o mar das Trevas; não nos importaria perder as vidas, mas não queremos perder as almas.
— É verdade, é verdade, bradaram os outros. Gil Eanes abaixou a espada com melancolia.
— Ide pois, disse ele, já que tendes ânimo para aparecerdes diante do sr. infante sem terdes cumprido a vossa promessa; mas antes disso lançai-me um batel ao mar, e deixai-me ir sozinho demandar o Bojador.
— Sozinho! exclamaram os marinheiros.
— O que prometi hei de cumpri-lo; terei por mor­talha as vagas, mas o infante D. Henrique não me dirá, ao menos, quando eu voltar: "Sóis perjuro e sóis co­varde."
— Covarde!
— Covarde, sim; porque tão covarde é quem re­cua diante do inferno quando se trata de servir a Cris­to, como quem recua diante dos inimigos quando se traía de servir el-rei.
Houve um momento de silêncio.
— Deus tenha piedade das nossas almas! disse em fim Lourenço Dias. Invistamos com o Bojador.
O navio continuava a correr, impelido pelo vento, com a mesma velocidade; o costado gemia, quando a barca se inclinava toda, obedecendo à pressão da vela.
— Ânimo, meus bravos companheiros! exclama Gil Eanes. Deus é conosco. Todos a postos.
Os marinheiros chegaram para a manobra. O ruí­do do mar, quebrando ao longe com fúria, era cada vez mais distinto; o referver das ondas indicava a aproxi­mação do promontório; a barca jogava com violência.
Ouvia-se o murmúrio das orações que todos reza­vam neste momento supremo; Gil Eanes, pálido, mas firme, encostado ao mastro da barca, preparava-se para montar o cabo.
De súbito divisa-se ao longe uma enorme língua de terra que entra pelo mar a grande distância; as ondas refervem num vórtice medonho, ouve-se o estampido do Oceano quebrando com fúria nos rochedos, e vê-se uma nuvem de espuma que tolda ao longe a fronte pou­co elevada das dunas de areia.
— O Bojador! o Bojador! exclamam, todos pávidos, caindo de joelhos.
— Coragem, amigos! brada a voz sonora de Gil Eanes, dominando o rugir do Oceano e o sibilar do vento. Coragem! o nosso nome será grande no futuro, e nossos netos hão de se gloriar de terem por antepas­sados os companheiros de Gil Eanes!
E, excitado por uma verdadeira febre de entusias­mo, o bravo marinheiro comanda a manobra. Muda de rumo para oeste e segue longo tempo essa direção, coisa que sempre assustava os mareantes desse tempo. A sua voz, em que não se conhece a mínima alteração, e que vibra cheia e sonora no meio dos rumores do Oceano, infunde ânimo em todos os marujos.
Está-se já próximo da extrema ponta ocidental do cabo. Reina silêncio absoluto na embarcação. A luz dúbia da madrugada parece mais desmaiada ainda a palidez de todas as fisionomias.
Gil Eanes descobre-se vagarosamente.
— Senhor, diz ele com voz grave, é só para mais longe plantarmos a árvore da cruz que ousamos devas­sar os mistérios do Oceano. Se vos agrada a nossa ten­tativa, protegei-nos, Senhor; mas se involuntariamente vos ofendemos, acolhei-nos na vossa misericórdia, Deus Onipotente!
— Misericórdia, Senhor, bradou a companha, cain­do de joelhos.
Um último impulso do leme quebrara o velho en­canto. Estava dobrado o cabo Bojador. Todos se er­gueram soltando um grito de entusiasmo.
O sol surgira a final do oriente, e o seu alegre res­plendor mostrava aos espantados marinheiros a terra ondulada e arenosa que seguia para o sul do famoso promontório; até onde a vista podia alcançar para o la­do do Oceano viam-se espumar as ondas alegres e luminosas; na terra nem sombra de estátuas; no mar nem vestígio de negras vagas. O sol banhava-se com de­lícias no seio esverdeado das águas, e os seus raios brin­cavam à flor da espuma como cintilantes golfinhos.
— Graças vos sejam dadas, Senhor! exclamou Gil Eanes enquanto a barca, aplacada a velocidade da corrente, seguia, embalando-se airosa, para ir fundear num ancoradouro próximo.
E ajoelhou. Um rio de lágrimas corria-lhe pelas faces bronzeadas.
De tantos marinheiros rudes que o acompanha­vam, não houve um só que não chorasse; mas eram pran­tos de alegria.
Estava montado o cabo Bojador; estava praticada a maior façanha da história moderna, maior não pelo que em si valia, mas pelas consequências que viria a ter. Diante da audácia de Gil Eanes caíra a terrível porta que tinha cerrada para a civilização metade do globo ter­restre. Agora os outros que seguissem o caminho que ele traçara: estavam quebrados os encantos, desfeitas em pó as estátuas misteriosas que a imaginação dos árabes ali erigira como guardas de desconhecidos mundos.

CAPÍTULO 3:
AS ROSAS DE SANTA MARIA
Os marinheiros que passassem nesse ano de 1434 à vista do cabo de São Vicente podiam divisar todas as tardes, ou estivessem o mar e o céu serenos, ou a onda quebrasse com fúria nas penedias da costa, e o vento soprasse rijamente, açoitando as árvores enfezadas de Sagres, um vulto imóvel neste último promontório, mi­rando com olhos longos o extremo horizonte, onde se atropelavam as ondas como a espumante matilha do Scylla do paganismo.
Era o infante D, Henrique, duque de Viseu, que vinha todos os dias espreitar a volta da barca de Gil Eanes.
E todos os dias voltava suspirando a palácio, por­que nenhuma vela branca surgia no horizonte distante.
Uma tarde em que o sol se escondia nas águas, es­coltado por um cortejo magnífico de nuvens de púrpura e ouro, mas em que o vento agudo, encrespando a face das ondas, arrepiava as carnes, D. Henrique voltava, cansado de esperar, ao seu palácio, deixando que o sol se atufasse nas águas sem o ter a ele por espectador.
Quando se retirava, murmurou com um suspiro:
— Meu pobre Gil Eanes!
— Quem passar o cabo de Não ou voltará ou não, disse sentenciosamente um dos seus companheiros.
O infante fez um gesto de impaciência, e tornou a fitar de novo os olhos no Oceano.
Súbito soltou um grito.
— Que ponto branco é aquele que eu diviso além? perguntou D. Henrique apontando para sudoeste.
— É uma vela, senhor, é uma vela! acudiu um dos pilotos de que ele sempre andava rodeado.
— É a barca de Gil Eanes! exclamou o infante com um grito de alegria.
O navio aproximava-se, e o sol poente, banhando-o com os seus últimos raios, transformava-o numa dessas galés douradas com velas de púrpura que desusavam no Arquipélago ao longe das plagas resplandecentes da Grécia.
— É ela, é ela! bradaram todos com entusiasmo. — Meu bravo Gil Eanes! exclamou o infante. Correram todos à praia.
Como se há de descrever a cena de alegria, de en­tusiasmo, que ali se passou, quando a barca lançou fer­ro? Num momento se viu rodeada de botes, e no con­vés não cabiam os visitantes que se atropelavam. A confusão era inacreditável, mas pode-se conceber quem se lembrar de que a tumultuosa assembleia se compu­nha pela maior parte de algarvios.
Entretanto Gil Eanes desembarcava e era recebido nos braços do infante.
— Senhor, disse ele, a minha promessa está cumpri­da; foi dobrado o cabo Bojador. A terra, para além do promontório é arenosa, e nela não encontrei nem restos de homens, nem de habitações. Para prova, contudo, da minha estada lá, aqui vos trago estas rosas de Santa Maria, colhidas ao sul do Bojador. Dissestes-me que Eneias colhera o ramo de ouro para penetrar nas regiões do inferno; estas rosas, que têm o nome da Virgem Santa, valem de certo mais do que o ramo de ouro da profana sibila. Aqui vo-las entrego, senhor.
— Ah! meu valente Gil Eanes! exclamou o infante apertando-o nos braços; perante os teus feitos como desmaiam as ações do troiano Eneias! Se esta terra não for mais escassa de poetas do que de heróis, haverá um Virgílio para Cantar tão gloriosas viagens; e, se a posteridade não for ingrata, o teu vulto, lavrado em mármore, há de lembrar sempre ao mundo a heroica fa­çanha com que soubeste granjear a imortalidade.
E, encostando-se-lhe ao braço, dirigiu-se, conversan­do sempre, para o palácio da sua residência.
Enganava-se o nobre infante. Não faltou um Vir­gílio aos navegadores portugueses, pois que tiveram Ca­mões; mas onde campeia a estátua de D. Henrique? do glorioso iniciador dos nossos descobrimentos? do homem a quem mais deveu a pátria? de um daqueles a quem mais deveu o mundo? E, se foi olvidado o homem do pensamento, como o não seria também o homem da ação? Somos pobres, e não estranhamos que, onde há tantos heróis a reclamarem o pagamento de uma dívida, faltasse uma estátua a Gil Eanes; mas o herói, que primeiro montou o pavoroso promontório, não merecia que ao menos a geração que se lhe seguiu indagasse onde lhe repousavam as cinzas? Fomos grandes outrora, somos hoje pequenos, mas, pequenos ou grandes, uma coisa fomos sempre: ingratos!

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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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