A
passagem do Bojador
(Século
XV)
CAPÍTULO 1: EM SAGRES
O vento do mar soprava rijamente
nas agruras do promontório Sacro, onde se
erguia a vila do Infante; a onda furiosa quebrava nas penedias escalvadas que
formam um parapeito natural e altíssimo, donde o espectador contempla o
oceano profundo e irado a, tentar debalde ultrapassar os limites que a mão da
Providência lhe impôs. Algumas árvores raras e enfezadas estorciam-se
gementes ao sopro agudo do nordeste. Era triste a paisagem, nebulosa a tarde, e
os últimos raios do sol, que se escondia no ocaso, apenas tingiam com desmaiada
cor a crista espúmea das vagas.
Dois homens passeavam entre os
rochedos, indiferentes à impressão
desagradável que o vento cortante, que lhe sibilava aos ouvidos, produzia em
quem se expunha às inclemências dessa tarde do princípio da primavera.
Estava-se em março de 1434.
Um dos dois homens, alto e
forte, de fisionomia um tanto severa, mas que os olhos, cheios de viveza e de
luz, abrandavam quando a indulgência lhe cintilava
nas pupilas, falava com energia, cm quanto o outro escutava com deferência e
respeito.
O primeiro era o infante D,
Henrique, filho del-rei D. João I, e irmão do
monarca reinante, D. Duarte; chamava-se o seu interlocutor Gil Eanes, e
era natural da próxima vila de Lagos.
— E não ousastes ainda, Gil Eanes? dizia o infante. Pois sois denodado
e audacioso, que eu bem o sei! Mas que tem esse cabo Bojador, que tal susto vos
infunde a todos, assim que o divisais de longe? São outros mares aqueles? têm
outro aspeto as ondas? as procelas, que tão sossegadamente afrontais aqui no
mar do Algarve, ou na baía de Biscaia, ou nos estreitos de Inglaterra, onde
são piores, apavoram-vos só porque erguem a voz rugidora junto de
desconhecidas terras? Voto a Cristo que tinha mais confiança na vossa bravura,
Gil Eanes!
— Senhor, redarguiu Gil Eanes, dizem que para aqueles lados a terra é
mais baixa que o mar, que o sol queima as praias escalvadas, e que as correntes
impetuosas arrastam com irresistível força os navios para terríveis paragens,
onde a morte é certa.
— E quem vos diz isso? tornou o infante com intimativa. Quatro
marinheiros que nunca saíram da carreira de Flandres, e que julgam que tudo o
mais são áfricas impossíveis! Se a natureza para além do cabo Bojador tem
mistérios, não vos sentis com ânimo de os devassar? Se a empresa fora pequena,
não vo-la confiara, Gil Eanes; qualquer me serviria. Os homens de altos
espíritos são para as altas façanhas.
— Senhor, tornou ainda o marinheiro, a um tempo lisonjeado e
envergonhado com o elogio; se os perigos fossem de natureza terrestre, não
temeria eu lançar-me a eles, e com júbilo procuraria a morte, se para vosso
serviço fosse necessário. Mas eu jogo a alma arriscando-me a esses mares onde,
o demônio impera!...
— Não cingis uma espada, Gil Eanes? perguntou o infante.
— De que serve a espada, senhor, contra inimigos infernais?
— A espada de um cristão tem lâmina e tem cruz: lâmina bem temperada
para derribar os infiéis, cruz bendita para afugentar os espíritos maus.
Gil Eanes conservou-se algum
tempo em silêncio.,
— Mas, senhor, redarguiu ele, os mareantes afirmam» que no cabo Bojador
levantou ignota mão estátuas misteriosas, que guardam esses mares, e que
proíbem aos. homens a passagem. É de certo com o consentimento de Deus que
tais estátuas lá campeiam, e o aviso que dão aos navegantes não pôde deixar de
ser um aviso da Providência.
— E quem as viu? tornou D. Henrique meio impaciente. Ninguém. Crédulos
sonhos formados pela imaginação timorata dos que se acolhem ao porto apenas veem
acastelarem-se no horizonte as nuvens, e enegrecerem as ondas ao primeiro
sopro da procela! Não julgaram os antigos que Hércules levantara no estreito de
Gibraltar uns pilares, com uma inscrição defendendo aos humanos a entrada no
Atlântico, por ser ele o mar das trevas? Bastas vezes tendes atravessado o estreito,
Gil Eanes! Vistes por acaso os pilares, lestes a inscrição? Daqui donde estamos
divisa-se até ao extremo horizonte a amplidão do Oceano. O que tem ele de
tenebroso? A sombra que a noite, que principia, lhe espraia sobre as ondas.
Quando resplende o sol, não brincam tão docemente os seus raios de ouro na
espuma do seu dorso, como podem voltear sobre o lúcido cristal das águas do
Mediterrâneo? É mais severo este nosso velho leão, é mais alto o seu rugir,
são mais tremendas as suas iras, do que as cóleras femininas do mar interior!
Talvez por isso mesmo eu lhe queira mais; parece-me ler nele melhor a grandeza
do Onipotente, do que a leio no Mediterrâneo, assim como a percebo melhor nas
viris apóstrofes de Isaías do que na mística doçura do Cântico- dos Cânticos.
E o infante contemplou com amor
o velho Oceano,, que encurvava a juba e arremessava as suas ondas de encontro à penedia, onde quebravam com estampido, arrojando
aos ares uma nuvem de cintilante espuma.
Gil Eanes abaixou a cabeça e não respondeu.
— Ah! pois eu não sou ingrato, continuou o infante com amargura. Que
perigos há no mundo tão grandes que não vos anime
a afrontá-los a certeza de que obteríeis recompensa superior a tudo quanto
pudésseis sonhar?
Gil Eanes interrompeu-o de súbito.
— Não faleis assim, senhor, disse ele erguendo a cabeça. Não me faleis em
recompensas; servir-vos é o que eu desejo, e, se um ignoto pavor se não houvesse
apoderado de mim e dos meus quando o ano passado chegamos à vista do cabo, já
o mistério estaria desvendado, ou nós todos jazeríamos no fundo das águas.
Mas, senhor, não será tentar a Deus perseverar numa empresa diante da qual
todos... todos têm recuado?...
— Não, meu amigo, tornou o infante com ardor, não, porque as nossas
intenções são puras e santas. O que desejamos nós? Alargar o domínio do
cristianismo, propagar a fé até aos confins do mundo, procurar esse misterioso
monarca, nosso correligionário, que vive entre gentios, esse Prestes-João, de
que houve remota notícia pela embaixada que enviou há séculos ao Santo Padre
de Roma. Com esses pios intentos, Gil Eanes, pode-se entrar ileso até no
próprio inferno. Para visitar as regiões sombrias, aos mortais defesas, colheu
Eneias no bosque misterioso ramo de ouro protetor. Mas onde há ramo de ouro
conhecido das sibilas que seja melhor talismã do que a própria cruz de Cristo?
Empunhai a cruz, Gil Eanes, tende fé, e vereis dissiparem-se os vãos
prestígios com que o demônio vos aterra. Ai! continuou ele exaltando-se,
sonhei que aos portugueses estava reservada a glória de alargar os limites do
mundo conhecido, de derramar a luz no Oceano! Acreditai-me! Deus não condenou a
sua própria obra, tornando inabitável uma tão grande porção do planeta onde
colocou o homem: e, quando o exilou do paraíso, deu-lhe aos menos a terra
inteira para morada. Aos pagãos da antiguidade, que o blasfemavam, que estavam
ainda debaixo do peso do pecado original, negou ele o conhecimento do mundo;
mas se Cristo veio para nos redimir, por que não nos conduzirá também de novo
ao paraíso terrestre? A coluna de fogo não guiava os israelitas à terra prometida? Quem sabe se a doce estrela do
Calvário não vos deve guiar também à radiosa habitação dos nossos primeiros
pais? Confiados nela, vamos trilhando o caminho espumoso do pélago! A estrela
dos reis magos conduziu-os ao berço do Redentor, a estrela da religião talvez
nos conduza ao berço da humanidade! E que glória para Portugal, se fôssemos
nós o povo escolhido! Encurralados entre o mar e Castela, parece que nos quis
Deus negar a faculdade de respirarmos livremente; quem sabe se nos deu isso
antes como incitamento para desafogarmos pelo Oceano? A empresa é digna de nós,
Gil Eanes, que somos filhos dos heróis de Aljubarrota. Vejo a cada instante
partirem cavaleiros portugueses para se ilustrarem com feitos de armas em
terras estrangeiras. Lá andou por Borgonha, França e Itália, Sueiro da Costa, o
nosso valente alcaide de Lagos; lá andou por Inglaterra D. Álvaro Vaz de
Almada; andou também por Alemanha o meu irmão D. Pedro. Praticaram generosas
façanhas. Quem as não pratica na Europa? Valentes cavaleiros tem meu cunhado
Filipe, o duque de Borgonha; valentes cavaleiros pelejam à sombra da bandeira
de Carlos VII de França; brioso fidalgo tem na sua corte meu primo Henrique VI
de Inglaterra. Todos aparam e distribuem cutiladas. Mas qual deles ousaria
medir-se com os perigos do Oceano? Talvez nenhum. Pois essas empresas, diante
das quais os outros recuam, eram as que nós devíamos tentar. Fomos embalados
com o rugir da vaga, afrontemo-la peito a peito, e saibamos arrancar-lhe do
seio as pérolas que lá, jazem ocultas.
— Que grande sóis, senhor! exclamou Gil Eanes como que aterrado.
— E entretanto, continuou o infante, os meus pressentimentos não me
enganam. Ilhas a que talvez já os nossos portugueses abordaram quando meu
bisavô Afonso IV enviava os seus marinheiros às Canárias, e de certo mais longe
ainda, apareciam vagamente designadas nos mapas; supus que essas ilhas não
estavam ali por acaso, enviei cavaleiros meus a demandá-las, e Zarco
arrancou-me das ondas aquela preciosa Madeira e Gonçalo Velho lá me anda desentranhando do alto mar
novas ilhas que serão talvez um arquipélago. Para além do Bojador, Gil Eanes,
não traçam os mapas senão linhas confusas. Não poderei eu substituí-las pelos
contornos reais da costa africana? Essa glória que eu sonhava não me estará
reservada? Oh! de certo que hei de realizar o meu sonho. Lançar-me-ei eu
sozinho com um piloto no primeiro batel que se me deparar, e verei se a fortuna
de César virá também pousar a mão no leme do meu barco.
— Oh! senhor! exclamou Gil Eanes.
— Talvez então me sigam os que hoje tremem, continuou o infante;
quando diante de Ceuta houve soldados portugueses que ousaram duvidar da
bravura de um filho do mestre de Aviz, jurei que seria eu o primeiro ou o único
a saltar em terra, porque não me importava saber se me seguiriam ou não.
Atropelaram-se todos nos batéis para me acompanharem; mas talvez hoje não
sucedesse o mesmo, porque os soldados de Ceuta, que não tremiam diante dos
mouros, tremem diante de fantasmas que só deviam amedrontar crianças.
— Oh! não será assim, senhor, bradou Gil Eanes exaltado, não
precisareis de tal. Aqui vos juro em presença do Oceano que demandarei o cabo
Bojador, e que só voltarei a Portugal depois de o ter dobrado, ainda que todos
os demônios do inferno estejam apostados a impedir-me a passagem.
O som rouco do mar, quebrando
nas penedias, dava uma solenidade terrível
a esse juramento, que o leão das águas era obrigado a testemunhar.
O infante D. Henrique estendeu a
mão a Gil Eanes.
— És um bravo, disse ele.
— Senhor, tornou o marinheiro beijando-lhe a mão,, se a minha barca não
tornar, quando o Oceano soar assim tristemente batendo nos rochedos de Sagres,
se vos parecer ouvir uns gemidos vagos entre o referver das ondas, rezai um
Padre-Nosso por alma do vosso servidor,
O infante só respondeu estreitando-o nos braços.
Descera a noite; mas o mar
aplacara as suas fúrias, e no céu
estrelado parecia sorrir a esperança.
CAPÍTULO 2: O QUARTO DA MADRUGADA
Lá vai a frágil barca sulcando as ondas do mar africano; já lhe fica
pela popa o cabo de Não, a baliza fatal das navegações da idade média. Já lá
fica também longe a mesa do cabo de Não, alta montanha que se levanta no meio
do longo areal dessa costa, como único ponto de reparo em que se pode demorar a
vista dos navegantes.
Vai quase a findar a noite, mas
nem só a gente de serviço está desperta;
ninguém dorme, e toda a tripulação, agrupada à proa, conversa em voz baixa
olhando com terror para a costa onde pálidos reflexos cintilam entre a névoa
produzida pela ressaca, ali fortíssima, da onda.
É a lua que se vai a sumir, e
que faz brilhar, antes de desaparecer no horizonte, as areias da praia.
Sentado à popa, envolto num amplo manto mourisco chamado alquicé, divisa-se um vulto pensativo: é
o vulto de Gil Eanes.
Nada há, contudo, que pareça infundir terror; sopra
brandamente o vento de feição, a onda quebra preguiçosa no costado da barca, e
no céu azul e sereno cintilam as estrelas.
O Oceano embala no dorso das
suas vagas a barca aventureira; dir-se-ia que o luar dorme recostado no leito
de espumas que branqueia.
Mas o terror transluz na
fisionomia e nas falas dos marinheiros agrupados à proa.
— Lá vai a costa parece que a desfazer-se, dizia em
voz baixa um dos algarvios, relanceando a vista para a terra, que mal se
distinguia entre a névoa da ressaca; quando chega ao Bojador some-se de todo, e está-se no mar das Trevas.
Um calafrio correu pelas veias dos
circunstantes.
— Já houve imprudentes que o demandaram, exclamou um velho marinheiro
de voz autorizada e grave; foram portugueses também; as águas eram negras como
breu, as ondas referviam e erguiam-se como montanhas; os nossos patrícios
fizeram o sinal da cruz e investiram para diante, nunca mais se soube deles; um
barinel que não se atreveu a avançar voltou a Portugal, mas ninguém na nossa
terra conhecia os marítimos; tinham ido na flor da mocidade, voltavam de cabelos
brancos.
— Credo! bradou um moço de Lagos, passando involuntariamente a mão pelos
cabelos negros, e lembrando-se da noiva gentil, que lhe dera ao embarcar, lavada
em lágrimas, o beijo da despedida.
— Mas, ó Sr. Lourenço Dias, tornou o primeiro que falara, como
estivestes lá nos reinos do Norte, haveis de saber a história de um santo, que
dizem que andou por esses mares, e que chegou até ao paraíso de Deus.
— É verdade, tornou Lourenço Dias, o Nestor da assembleia; quando eu
fui à Irlanda, a Galway, ou como demônio se chama a terra do tal louraça que
foi criado do Sr. infante, os marinheiros irlandeses contaram-me a história de
São Brandão.
Todos se acercaram com
curiosidade.
— Chegou ao paraíso, isso é que não tem dúvida; mas o que passou antes
de lá chegar? Este mar está semeado de ilhas que pertencem a Satanás, e onde os
que lhe entregaram as almas sofrem as penas do inferno. Numa estava sozinho
Judas o traidor; noutra não se ouviam senão gemidos e prantos; sentiam-se noutra
as patadas de cavalos de fogo, que galopavam sempre, sempre, montados por
infelizes que soltavam gritos. São Brandão, como era santo, zombou do cão tinhoso,
e chegou a uma ilha resplandecente, que era o paraíso, onde cantavam pássaros
de ouro, asas de prata, peito de púrpura e de açafrão; quando voltou à Irlanda, trazia
ainda no fato um aroma suave, que bem se percebia não ser da terra.
Os marinheiros olharam uns para
os outros enlevados.
— Quem me dera lá ir também! disse o enamorado moço de Lagos.
Tu és santo? redarguiu Lourenço Dias. Se és santo,
arrisca-te; mas olha que primeiro deves fazer voto de castidade.
O interpelado torceu o nariz e não replicou. O vento refrescara com a aproximação
da madrugada, e os seus gemidos fúnebres assemelhavam-se aos queixumes das
almas penadas; muito ao longe ouvia-se um som rouco e mal distinto, como do mar
quebrando com fúria nos rochedos.
A companha caíra em silêncio profundo; mas o terror pintava-se
em todas as fisionomias.
O vento gemia lugubremente nas
enxárcias; o mar tingira-se de um vermelho
escuro; parecia ter perdido & liquidez,
e na superfície baça das vagas ficara por largo espaço traçada a esteira da
barca aventurosa.
Os marinheiros contemplavam com
terror esse fenômeno, cuja causa é
conhecida hoje de todos os navegantes; para o sul do cabo de Não, a muita
areia soprada pelo vento do deserto avermelha as águas do Oceano e torna-as
espessas; mas os marinheiros de Gil Eanes julgavam que era um prenúncio da
aproximação do mar Tenebroso.
De repente levantaram-se todos,
exclamando:
— Jesus!
O navio corria com uma
velocidade pasmosa.
— É a corrente, é a corrente do Bojador! exclamou um dos
marujos".
— Estamos perdidos! bradou o enamorado.
— Vira de bordo, vira de bordo, gritou Lourenço Dias com voz clara mas
trêmula.
Os marinheiros já corriam à manobra.
Porêm Gil Eanes desembuçara-se com presteza, e luzia-lhe
na mãos a espada, — O primeiro que dá um passo morre, disse ele. Todos
estacaram.
— Não morre ninguém, acudiu Lourenço Dias recobrado do primeiro
assombro; o navio já vai levado pela corrente para o mar das Trevas; não nos
importaria perder as vidas, mas não queremos perder as almas.
— É verdade, é verdade, bradaram os outros. Gil Eanes abaixou a espada
com melancolia.
— Ide pois, disse ele, já que tendes ânimo para aparecerdes diante do
sr. infante sem terdes cumprido a vossa promessa; mas antes disso lançai-me um
batel ao mar, e deixai-me ir sozinho demandar o Bojador.
— Sozinho! exclamaram os marinheiros.
— O que prometi hei de cumpri-lo; terei por mortalha as vagas, mas o
infante D. Henrique não me dirá, ao menos, quando eu voltar: "Sóis perjuro
e sóis covarde."
— Covarde!
— Covarde, sim; porque tão covarde é quem recua diante do inferno quando
se trata de servir a Cristo, como quem recua diante dos inimigos quando se
traía de servir el-rei.
Houve um momento de silêncio.
— Deus tenha piedade das nossas almas! disse em fim Lourenço Dias.
Invistamos com o Bojador.
O navio continuava a correr,
impelido pelo vento, com a mesma velocidade; o costado gemia, quando a barca se
inclinava toda, obedecendo à pressão da vela.
— Ânimo, meus bravos companheiros! exclama Gil Eanes. Deus é conosco.
Todos a postos.
Os marinheiros chegaram para a
manobra. O ruído do mar, quebrando ao longe com
fúria, era cada vez mais distinto; o referver das ondas indicava a aproximação
do promontório; a barca jogava com violência.
Ouvia-se o murmúrio das orações que todos rezavam neste momento
supremo; Gil Eanes, pálido, mas firme, encostado ao mastro da barca,
preparava-se para montar o cabo.
De súbito divisa-se ao longe uma enorme língua de terra
que entra pelo mar a grande distância; as ondas refervem num vórtice medonho,
ouve-se o estampido do Oceano quebrando com fúria nos rochedos, e vê-se uma
nuvem de espuma que tolda ao longe a fronte pouco elevada das dunas de areia.
— O Bojador! o Bojador! exclamam, todos pávidos, caindo de joelhos.
— Coragem, amigos! brada a voz sonora de Gil Eanes, dominando o rugir
do Oceano e o sibilar do vento. Coragem! o nosso nome será grande no futuro, e
nossos netos hão de se gloriar de terem por antepassados os companheiros de
Gil Eanes!
E, excitado por uma verdadeira
febre de entusiasmo, o bravo marinheiro comanda a manobra. Muda de rumo para
oeste e segue longo tempo essa direção,
coisa que sempre assustava os mareantes desse tempo. A sua voz, em que não se
conhece a mínima alteração, e que vibra cheia e sonora no meio dos rumores do
Oceano, infunde ânimo em todos os marujos.
Está-se já próximo da extrema ponta ocidental do cabo. Reina
silêncio absoluto na embarcação. A luz dúbia da madrugada parece mais desmaiada
ainda a palidez de todas as fisionomias.
Gil Eanes descobre-se
vagarosamente.
— Senhor, diz ele com voz grave, é só para mais longe plantarmos a
árvore da cruz que ousamos devassar os mistérios do Oceano. Se vos agrada a
nossa tentativa, protegei-nos, Senhor; mas se involuntariamente vos ofendemos,
acolhei-nos na vossa misericórdia, Deus Onipotente!
— Misericórdia, Senhor, bradou a companha, caindo de joelhos.
Um último impulso do leme quebrara o velho encanto.
Estava dobrado o cabo Bojador. Todos se ergueram soltando um grito de
entusiasmo.
O sol surgira a final do
oriente, e o seu alegre resplendor mostrava aos espantados marinheiros a terra
ondulada e arenosa que seguia para o sul do famoso promontório; até onde a vista podia alcançar para o lado
do Oceano viam-se espumar as ondas alegres e luminosas; na terra nem sombra de
estátuas; no mar nem vestígio de negras vagas. O sol banhava-se com delícias
no seio esverdeado das águas, e os seus raios brincavam à flor da espuma como
cintilantes golfinhos.
— Graças vos sejam dadas, Senhor! exclamou Gil Eanes enquanto a barca,
aplacada a velocidade da corrente, seguia, embalando-se airosa, para ir fundear
num ancoradouro próximo.
E ajoelhou. Um rio de lágrimas corria-lhe pelas faces bronzeadas.
De tantos marinheiros rudes que
o acompanhavam, não houve um só que
não chorasse; mas eram prantos de alegria.
Estava montado o cabo Bojador;
estava praticada a maior façanha da história
moderna, maior não pelo que em si valia, mas pelas consequências que viria a
ter. Diante da audácia de Gil Eanes caíra a terrível porta que tinha cerrada
para a civilização metade do globo terrestre. Agora os outros que seguissem o
caminho que ele traçara: estavam quebrados os encantos, desfeitas em pó as
estátuas misteriosas que a imaginação dos árabes ali erigira como guardas de
desconhecidos mundos.
CAPÍTULO 3: AS ROSAS DE SANTA MARIA
Os marinheiros que passassem
nesse ano de 1434 à vista do cabo de São Vicente podiam divisar todas as tardes, ou estivessem o mar e o céu serenos, ou
a onda quebrasse com fúria nas penedias da costa, e o vento soprasse
rijamente, açoitando as árvores enfezadas de
Sagres, um vulto imóvel neste último promontório, mirando com olhos longos o
extremo horizonte, onde se atropelavam as ondas como a espumante matilha do
Scylla do paganismo.
Era o infante D, Henrique, duque
de Viseu, que vinha todos os dias espreitar a volta da barca de Gil Eanes.
E todos os dias voltava
suspirando a palácio, porque nenhuma
vela branca surgia no horizonte distante.
Uma tarde em que o sol se
escondia nas águas, escoltado por um cortejo magnífico de nuvens de púrpura e ouro, mas em que o
vento agudo, encrespando a face das ondas, arrepiava as carnes, D. Henrique
voltava, cansado de esperar, ao seu palácio, deixando que o sol se atufasse nas
águas sem o ter a ele por espectador.
Quando se retirava, murmurou com
um suspiro:
— Meu pobre Gil Eanes!
— Quem passar o cabo de Não ou voltará ou não, disse sentenciosamente
um dos seus companheiros.
O infante fez um gesto de impaciência, e tornou a fitar de novo os olhos no Oceano.
Súbito soltou um grito.
— Que ponto branco é aquele que eu diviso além? perguntou D. Henrique
apontando para sudoeste.
— É uma vela, senhor, é uma vela! acudiu um dos pilotos de que ele
sempre andava rodeado.
— É a barca de Gil Eanes! exclamou o infante com um grito de alegria.
O navio aproximava-se, e o sol
poente, banhando-o com os seus últimos raios,
transformava-o numa dessas galés douradas com velas de púrpura que desusavam
no Arquipélago ao longe das plagas resplandecentes da Grécia.
— É ela, é ela! bradaram todos com entusiasmo. —
Meu bravo Gil Eanes! exclamou o infante. Correram todos à praia.
Como se há de descrever a cena de alegria, de entusiasmo,
que ali se passou, quando a barca lançou ferro? Num momento se viu rodeada de
botes, e no convés não cabiam os visitantes que se atropelavam. A confusão era
inacreditável, mas pode-se conceber quem se lembrar de que a tumultuosa
assembleia se compunha pela maior parte de algarvios.
Entretanto Gil Eanes
desembarcava e era recebido nos braços
do infante.
— Senhor, disse ele, a minha promessa está cumprida; foi dobrado o
cabo Bojador. A terra, para além do promontório é arenosa, e nela não encontrei
nem restos de homens, nem de habitações. Para prova, contudo, da minha estada
lá, aqui vos trago estas rosas de Santa Maria, colhidas ao sul do Bojador.
Dissestes-me que Eneias colhera o ramo de ouro para penetrar nas regiões do
inferno; estas rosas, que têm o nome da Virgem Santa, valem de certo mais do
que o ramo de ouro da profana sibila. Aqui vo-las entrego, senhor.
— Ah! meu valente Gil Eanes! exclamou o infante apertando-o nos braços;
perante os teus feitos como desmaiam as ações do troiano Eneias! Se esta terra
não for mais escassa de poetas do que de heróis, haverá um Virgílio para Cantar
tão gloriosas viagens; e, se a posteridade não for ingrata, o teu vulto,
lavrado em mármore, há de lembrar sempre ao mundo a heroica façanha com que
soubeste granjear a imortalidade.
E, encostando-se-lhe ao braço, dirigiu-se, conversando sempre, para o palácio
da sua residência.
Enganava-se o nobre infante. Não faltou um Virgílio aos navegadores portugueses,
pois que tiveram Camões; mas onde campeia a estátua de D. Henrique? do
glorioso iniciador dos nossos descobrimentos? do homem a quem mais deveu a
pátria? de um daqueles a quem mais deveu o mundo? E, se foi olvidado o homem do
pensamento, como o não seria também o homem da ação? Somos pobres, e não
estranhamos que, onde há tantos heróis a reclamarem o pagamento de uma dívida, faltasse
uma estátua a Gil Eanes; mas o herói, que
primeiro montou o pavoroso promontório, não merecia que ao menos a geração que
se lhe seguiu indagasse onde lhe repousavam as cinzas? Fomos grandes outrora,
somos hoje pequenos, mas, pequenos ou grandes, uma coisa fomos sempre:
ingratos!
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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