A
Noiva do Conjurado
(Século XVII)
Ao anoitecer do último dia de novembro de 1640, na mais estreita
das casas sobradadas que se arrimavam à cerca dos jardins do Marquês de
Marialva, em Lisboa, uma donzelinha cerrava sem ruído as adufas da única
janela rasgada na frontaria, a par dum registro de azulejos, quando julgou
ouvir o seu nome no brado de carinho e de súplica que nesse mesmo instante
subiu da sombra da rua:
— Guiomar!
Indecisa, ficou alguns segundos
sem movimento, a mão esquecida na
branqueia; depois, de mansinho, tornou a abrir as adufas e, pela fisga assim entreaberta, espreitou receosamente.
Em baixo, na calçada, um homem envolvido em larga capa, que a ponta
da espada levantava, tranquilizou com uma exclamação de ternura o seu olhar inquieto.
A sombra de uni largo feltro de mosqueteiro tomava-lhe quase indistintas as
linhas do rosto, mas não conseguia apagar inteiramente o brilho de mocidade que
esplendia nos seus olhos.
Guiomar reconheceu-o logo — e um nome, mais beijado que murmurado, saiu dos
seus lábios:
— João!
Para diminuir a distância que os separava, ele subiu lesto os dois
degraus exteriores que davam acesso à porta da casa.
— Vim para te falar sem tardançal — disse.
A sua voz, embora fosse
cariciosa, revia impaciência. Guiomar
assustou-se.
— Que sucedeu? — inquiriu ela. E logo em seguida, sem esperar resposta:
— Vou pedir a minha mãe que te receba.
Desassossegada, cerrou de novo
as adufas e correu a uma câmara interior onde
sua mãe, à tênue claridade de uma lâmpada de azeite, orava de joelhos em frente
de um crucifixo.
Guiomar devia ter vinte anos. A
sua beleza, de linhas puras, não colhia de
sobressalto os olhos que facilmente admiram. Havia nela alguma coisa de semelhante
a certas flores preciosas que, desabrochadas à sombra, como almas doentes,
escondem sempre ria delicadeza da coloração ou na suavidade do perfume uma
obscura saudade da luz. Esbelta, possuindo essa espontânea graça de movimentos
que, entre formosas e feias, virgens e cortesãs, acusa as mulheres da estirpe
de Eva, seduzia pela doçura que aveludava os seus olhos escuros e pelo encanto
do sorriso melancólico que, às vezes, mal alvorecendo nos seus lábios, logo se
lhe delia e difundia no rostozinho pálido de noviça namorada como uma máscara
de luz.
Ao seu inesperado aparecimento
no oratório, a mãe ergueu-se logo, alarmada,
como se esperasse alguma notícia trágica:
— Que aconteceu?
— Não sei... — respondeu a filha, sem ocultar também a sua perturbação.
— João está ali, com grande pressa de nos falar.
— Ah!... E ele não disse...?
— Nada!
— Que sucederia? Que sucederia?... — murmurou a velha dama, absorta,
saindo a receber o visitante.
João do Rego Beliago, moço nobre da província, tinha vindo dois anos
antes para Lisboa, na companhia de seu pai, e com ele fora iniciado, pouco
depois, nos, segredos da conjuração que lentamente se urdia para libertar a
pátria de Afonso Henriques das imprevidentes mãos de Filipe de Castela. Um dia, perdido entre a multidão que
festejava os momos e as danças carnavalescas da procissão do Corpo de Deus, tinha
visto Guiomar — e tudo nela o enfeitiçara, desde o recato senhoril da
compostura à suavidade do olhar, um pouco alheado e triste. Terminada a festa,
seguira-a de longe, com reserva, até o alto do Loreto; mas quando mais tarde,
afervorando-se na simpatia nascida no primeiro instante, procurou saber qttem ela
era, apenas pôde obter informações sem consistência nem verossimilhança, meias
palavras de intenção duvidosa que velavam de mistérios a origem da linda
criatura. A mãe, D. Isabel Pacheco, era uma dama bem nascida, segundo se dizia,
afilhada do velho conde de Cantanhede, e com parentes poderosos em Lisboa; mas
no tocante ao pai, ninguém sabia se ele era mouro ou cristão, mecânico ou filho
de algo. Apenas D. Agostinho Manuel de Vasconcelos, cuja mordacidade era
proverbial, lhe havia dito:
— Em minha opinião, a mocinha é filha de algum crúzio. Aquilo é obra
muito perfeita para não ter sido acabada com devoção e vagar em cela de frade rico!
Estas ambiguidades e incertezas combateram
durante alguns dias, no pensamento de João
Beliago, a recordação da linda Guiomar; mas depois, pouco a pouco, como a água
duma levada que perenemente corre sobre a mesma penha, o amor gerado em meio de
tantas impressões contraditórias acabou por pulir as últimas arestas da sua indecisão,
desembaraçando-o por fim de escrúpulos e temores. Guiomar, pela primeira vez
cortejada, pela primeira vez amou. O casamento, vencidas todas as dificuldades,
tinha-se patuado em agosto daquele ano; mas João Beliago, que logo confiara à
noiva o segredo da conspiração e receava perder a vida ou a liberdade nessa
aventura, impôs a condição de se adiar a cerimônia até que a revolução tivesse
restituído Portugal aos portugueses.
Por isso,
sabendo que o golpe preparado pelos conspiradores
estava iminente, foi com o maior alvoroço que as duas mulheres acolheram a
imprevista visita do moço patriota naquela noite de novembro.
E ambas estremeceram de esperança, ou talvez de receio, quando ele, cerradas
todas as portas, lhes segredou:
— É amanhã!
— Jesus! — exclamou D. Isabel, juntando as mãos. Mas Guiomar, com um clarão
de fé nos olhos súbito umedecidos, logo reanimou o noivo.
— Enfim! — disse, confiadamente.
— Eu pertenço ao grupo que tem de atacar a guarda castelhana —
continuou João Beliago. — Tudo está bem concertado. A vitória deve ser nossa!
— Quem sabe?!... — murmurou a mãe de Guiomar, que escutava aturdida,
com os lábios agitados por um contínuo murmúrio de orações.
— Se não for, Deus se amerceie de nós! — respondeu resignadamente o
conjurado. Depois, com maior mágoa na voz: — Será o fim: o fim da vida, o fim
da pátria, o fim de tudo!
— Deus não pôde permitir tal! — clamou Guiomar, insurgindo-se
varonilmente contra o receio de ver o seu sonho de felicidade amortalhado num
perpétuo luto.
O olhar de João Beliago reacendeu-se.
— Não! — confirmou ele. — Deus não pode permitir tal! Amanhã, a estas
horas, já estrebuchará nos infernos a alma negra de Miguel de Vasconcelos!
Um movimento de ira sacudiu a
dorida apatia de D. Isabel:
— Quê?! Ides matá-lo?!
O moço inclinou à cabeça enérgica, num gesto de
confirmação.
— Está condenado! — disse, simplesmente. — Foi o único. Devia
acompanhá-lo o arcebispo de Braga, mas a esse salvou-o o sagrado do seu
ministério.
— Matar! Matar! — tornou a mãe de Guiomar. — Que mal nos fez esse
homem?
— Oh, mãe!...
— Que mal nos fez Miguel de Vasconcelos? Acaso o ignorais vós?...
Ninguém há em Portugal que não tenha sentido na vida, na honra, nos haveres, a
sua mão do carrasco!
— Outros fizeram o mesmo a Pedro Barbosa, para lhe darem em seguida
morte afrontosa... — discorreu ainda D. Isabel, com acrimônia. — Miguel de
Vasconcelos não é um mau homem; é um filho que vinga seu pai!
— Atentai, senhora, que estais defendendo um traidor!
João Beliago, quando urna hora depois deixou a casa da sua noiva, levava
oculto em si, como pápula de lepra, um receio que debalde tentara separar. O
fervor de ânimo com que D. Isabel tinha defendido o secretário do Estado, era
de molde a inquietá-lo naquela hora crítica. Abafada embora pela generosa
confiança do seu coração namorado, uma voz interior segredava-lhe que essa
criatura misteriosa, vivendo talvez do bem-fazer da casa de Marialva, podia
muito bem ser uma das espias que o odiento renegado mantinha nas antecâmaras
da nobreza, à custa de vexatórias exações. E, apartando-se de Guiomar, algumas
palavras indiscretas se insinuaram, mau grado seu, nas efusões do último adeus:
— Vela por tua mãe!
Velar por sua mãe!... Guiomar, a princípio não atingiu o alcance
desta prevenção singular. — Sua mãe estaria ameaçada por algum perigo?...
Dilacerando incertos pensamentos nas arestas daquele brado, reentrou na quadra
principal, onde D. Isabel tinha ficado — e, já entreabria os lábios para lhe
pedir a explicação dos estranhos dizeres de João Beliago, quando ao atentar
nela, que jazia em uma velha marquesa, abatida, sombria, como vergada ao peso
de irremediável desgraça, teve subitamente a intuição da verdade. João, aquele
que ela amava, cria sua mãe cana/ de o atraiçoar!
Este pensamento revoltou-a;
todavia, confortando D. Isabel, procurando minorar com piedade de filha uma dor
que não compreendia, notou que, ao cabo de
alguns instantes, uma obscura apreensão a alheava das palavras que entre os
braços de sua mãe estava balbuciando. Lentamente, como serpente crespa de
escamas, a dúvida ia-lhe apertando em torno do
coração os seus anéis de morte. A coroa de rosas do seu amor bem fadado
aparecia-lhe de súbito eriçada de espinhos...
— Será possível? — interrogava o pensamento insaciado e cruel, enquanto
os seus lábios desfolhavam beijos e consolações sobre a enigmática mágoa
daquela que até então julgara invulnerável.
Mais tarde, já no leito, em vão procurou, durante longas horas,
o refúgio do seu tranquilo sono habitual; a suspeita maldita não cessara de a
atormentar, com a tenacidade de um remorso.
Já a sineta dos frades da Trindade tocava a matinas, quando conseguiu
adormecer. Mas foi breve como um desmaio esse sono em que apenas o corpo quebrantado
pela vigília achou repouso — e ao despertar, sobressaltada como se fugisse a
uni pesadelo, logo outro pesadelo a empolgou. Sua mãe, envolvida num longo
manto escuro, atravessava naquele momento a câmara comum, encaminhando para a
porta do corredor os passos cautelosos... A surpresa estonteou; mas quando o
vulto de D. Isabel, mais esguio e quase sinistro sob os negros panos talares,
desapareceu entre os batentes da porta mal aberta, o pressentimento dum perigo
de morte arrancou-lhe da garganta opressa um grito que tanto podia ser de
socorro como de ameaça:
— Minha mãe!
Descalça, apenas resguardada a sua nudez de virgem pelo
alvo linho duma camisa de noite, insensível ao frio da manhã, um fulgor de
demência nos olhos, correu no encalço da velha dama. Ansiada, aloançou-a quando
ela, no fundo da escada estreita e cheia de sombra, já fazia girar com
precaução a chave da porta da rua.
— Minha mãe!... Minha mãe, aonde ides?...
O assombro paralisou D. Isabel.
Furtando os olhos ao olhar da filha, onde a suspeita, embora fundida em lágrimas, já ousava acusar, perguntou, aturdida.
— Onde vou?...
Mas, após uni breve silêncio, vencida a perturbação do primeiro instante,
acrescentou com severidade:
— Que despropósito é esse? Que vens aqui fazer, tão desatinada e quase
despida?
Sem lhe responder, d domar
juntou as mãos, num fervoroso gesto de súplica:
— Minha mãe, senhora, não façais tal! Vós ides perdê-lo! E se o
perdeis, matais-me! É a vossa filha que matais!
A velha empalideceu, como se um
sopro de morte lhe tivesse gelado o sangue; e ereta, desenhada na sombra como
uma sombra mais forte, a mão alvejando,
imóvel, na chave da porta, tinha a grandeza dum réu a quem uma sentença iníqua
dignificasse.
Fora, sob o céu cristalino da linda manhã de inverno, um sino
começou a tocar. A mãe de Guiomar corno que despertou então do seu sonho de dor
e assombro; lentamente, numa voz que procurava abrir caminho através de
emaranhadas comoções, murmurou:
— E à missa que eu vou... orar por todos!
Rápida, ainda dominada pelo terror que, como um vento de procela, a
tinha arrastado até ali, a filha volveu:
— Levai-me convosco, como costumais! Por todos orarei também, ao vosso
lado!
— Sim, por todos... — repetiu D. Isabel, absorta. Depois, sem fitar a
filha, acrescentou: — Veste-te e vem. Que a vontade de Deus seja feita!
***
Já o sol brilhava, em plena glória, livre das névoas matinais, quando as
duas mulheres entraram juntas na igreja do Loreto. No altar, um padre erguia a
hóstia consagrada. Assim surpreendidas pela cerimônia, logo se prosternaram nas
lajes da entrada, em uma contrita e apaziguadora renúncia de Iodos os seus
pensamentos e desejos.
Quando a missa findou,
subiram lentamente, por entre os devotos que saíam, até junto do altar-mor; e aí, sem trocarem uma palavra, longo
tempo oraram, de joelhos, com redobrado fervor. Uma nova missa principiara já O celebrante, imobilizado na posição do ritual,
meditava o Evangelho, quando subitamente um confuso rumor de vozes encheu toda
a igreja. Perto das duas mulheres, uma velha, alçando sobre a gola do capote
um horrendo carão de bruxa alucinada, gritou:
— Jesus! O Senhor nos valha, que anda fogo na igreja!
Esse brado, logo repetido,
alarmou instantaneamente toda a multidão
que se premia e marulhava entre as grossas paredes do templo. A confusão teve,
por momentos, a violência e a bruteza dum regresso ao caos. O padre, atingido
também por aquele tufão de pavor, interrompeu a missa e abandonou o altar, a
correr, sofraldando a alva. Quando a quando, por meio da turba que se
comprimia, escoando-se entre lutas atrozes pela porta principal, um grito
irrompia: era a onda humana que esmagava inexoravelmente crianças, velhos,
mulheres, todos os fracos, nessa ferina ânsia de salvamento. Alguns conheciam
talvez a verdadeira causa do alvoroço — mas, sob a pressão daquele ambiente de
catástrofe, duvidavam de si próprios; outros, mais calmos, não vendo indício
algum do sinistro anunciado, pediam ordem, clamavam que o perigo era
imaginário, mas não cediam o passo aos que atropeladamente saíam.
Guiomar e sua mãe acharam-se na rua, quase involuntariamente,
arrastadas pela onda popular. Perto, sobre um poial, um frade borra arengava;
mas as suas palavras já mal se ouviam entre o vozear do povo que se acardumava
na calçada. O movimento de peões e cavaleiros era extraordinário. Um alvoroço
festivo, contrastando com a truculenta desordem da igreja, rejuvenescia a
cidade, que o sol, já alto, inundava. de luz. As palavras
"liberdade", "rei", "castelhanos", cruzavam-se
incessantemente no espaço — eram como que a espumas crespa e brilhante daquele
revolto mar de vozes,.
Guiomar aproximou-se mais de sua
mãe.
— Que terá sucedido, meu Deus?... — murmuro» ela.
D. Isabel não respondeu; lívida, tinha a rigidez duma estátua
de bronze erguida no meio de frágeis, movediços arbustos.
Naquele momento, um grande
magote, quase todo-composto de mulheres e crianças, tendo saído provavelmente pela porta do Duque de Bragança, subia
em festa a nova rua que vinha da ribeira ao longo da cerca gritando sem cessar:
— Viva el-rei D. João IV! Viva o nosso rei! Abaixo os castelhanos!
Morte aos traidores!
O povoléu que se apinhava junto da igreja deu a estes
brados um eco em que algumas centenas de vozes se fundiram na mais admirável
consonância; e quando o rancho, depois de ter atravessado o largo entre mal
abertas alas, enfiou pela porta de Santa Catarina, um novo clamor se ergueu,
que dominou todos os outros:
—— Ao Terreiro do Paço! Ao Terreiro do Paço!
Sem se consultarem, ambas
atormentadas de diverso modo pela mesma curiosidade, Guiomar e sua mãe seguiram também irresistivelmente a turba
desacaudelada. Quando passavam em frente da igreja do Espírito Santo da
Pedreira, um calafate que acabava de sair duma taberna limpando ao canhão da
vestia os beiços aguardentados, clamava com entono de borracho para um camarada
que o seguia de perto:
— É assim mesmo! A regente já está presa e o Vasconcelos morto! Só
falta dar cabo dos castelhanos!
— Misericórdia! — gemeu a mãe de Guiomar, esmorecida por uma vertigem.
De todas as
travessas, de quase todas as casas, saía
gente alvoroçada. Os mais tímidos, desorientados pelo alarido de tão grande;
tropel de povo, hesitavam a princípio, acolhidos nos umbrais das portas ou nas
gargantas dos becos; outros, mais animosos, inquiriam dos sucessos com
desconfiança; mas por fim, rarefeita a surpresa do primeiro instante, todos
iam engrossando a multidão que em alegre grita descia para o Terreiro do Paço.
Na rua Nova dos Mercadores, uma virago de cabelos grisalhos, a célebre Bernarda Soares, à frente do exército
feminino que levantara e armara nos becos de Alfama, anunciou a capitulação dos
castelhanos que defendiam o Castelo de São Jorge.
— Ouvistes, minha mãe?... — perguntou Guiomar, reanimada. — O céu
protegeu-nos!
A velha ficou muda, absorta,
como se nada ouvisse. Ao lado da filha, caminhava em meio da multidão encapelada, como um condenado a quem a visão do
suplício aboliu já urna parcela de vida...
Quando chegaram à porta da Ribeira, um vivo movimento arrepiou de
súbito a marcha dos populares ovantes. Um fidalgo cujas armas resplandeciam à
generosa claridade da manhã, montando um cavalo coberto dos mais ricos jaezes,
saía naquele momento da sombra do arco, em meio das aclamações dum numeroso
séquito. A bandeira da cidade erguida pela sua mão, tremulava livremente no ar.
Era D. Álvaro de Abranches que partia a anunciar ao povo de Lisboa o milagre
da sua libertação.
— Viva D. João IV, legítimo rei de Portugal! — bradou ele, quando viu
na sua frente toda aquela multidão já embriagada pelo triunfo.
— Viva! Viva! Liberdade! — responderam, como se partissem duma só boca,
centenas de vozes.
Algum tempo depois, entrando no
Terreiro do Paço, Guiomar e sua mãe
logo notaram que a imensa praça, despovoada desde o Arco dos Pregos até a
Ribeira do Peixe, tinha sido invadida em larga extensão, no ângulo que o
palácio real limitava, por grande e rumorosa chusma de povo miúdo. Era a
escumalha humana dá cidade, homens, mulheres, crianças, que tinham vindo de
roldão dos bairros miseráveis, excitados pela esperança de se contentarem em
morticínios, pilhagens e devastações, os seus mal domados instintos de feras
cativas. Em alguns pontos daquele perigoso arraial, havia já altercações,
pugilatos bárbaros; mas o grosso da turba premia-se então, com risos, palmas e
brados de toda a sorte, em torno dum escravo mouro que, meio embriagado, cantava e
trejeitava como negro em batuque, desfigurando a miúdo o carão tismado com esgares de símio, que a
canalha regozijada aplaudia.
Quando as duas mulheres se
acercaram do grupo, atraídas por invencível
curiosidade, o mouro, cuja cabeça bamboleante e truanesca se elevava acima de
todas as outras, interrompeu de improviso o seu cantar; e, lisonjeado talvez
pela atenção daquelas damas de aparência nobre, estendeu para elas, apertada
como o punho duma adaga na mão disforme e tinta de sangue, uma grande mecha de
cabelos grisalhos.
— Só um patacão, senhoras! Só um patacão! Livra do mau olhado! Cura o
quebranto! Tem mais virtude que o signo-saimão!
A matulagem, que se tinha
desagregado em busca do alvo de tamanhas deferências, vendo essas, duas damas que sem soberba nem temor se
associavam ao seu folgar de vilões, deixou-se vencer momentaneamente por um
impulso de simpatia, quase de confraternização, — e com mesuras não isentas de
ironia, logo se afastou, abrindo-lhes passagem até o centro do grupo, donde o
mouro continuava a visá-las com o seu lamuriento pregão:
— Só um patacão de cobre! Só um patacão velho!
As duas avançaram, quase constrangidas, através do magote
clamoroso; mas logo aos primeiros passos D. Isabel, que ia na frente, recuou
com um grito de pavor, como se encontrasse de súbito, apontado ao seu peito sem
defesa, o punhal dum inimigo. Acabava de ver, sob os pés nus do escravo, mal
coberto de farrapos encodeados de lama e sangue, o corpo de um homem, que a
vida abandonara já, sem dúvida, porque apenas o patear desumano do mouro dava
movimento aos seus membros lacerados por atrozes feridas. Em volta, a corja
insensível, vendo quase desfalecida aquela mulher que lhe parecera forte como
Judite, rosnou longamente, com desprezo e mofa.
— Quem é? — perguntou Guiomar, com a voz quase delida pela comoção, a
uma alentada megera em cujo olhar creu divisar alguns lampejos de piedade.
— É o renegado! É Miguel de Vasconcelos!
O mouro, que ouvira estas
palavras, recomeçou com maior alegria
o seu infernal bailado sobre o cadáver já meio desmembrado:
— É o meu senhor! — regougava ele, na toada monótona de certos cantos
das selvas. — É o meu senhor! Já me não açoita! Perdeu a peçonha! Estamos ambos
forros!
Este perverso cantochão, festejado com palmas e risos por toda a
assistência, provocou uma deflagração de ódios.
— Não torna a mandar-nos para o tronco! — vociferava um.
— Nem a matar-nos de fome! — bramia outro.
— Nem a vender a nossa pele aos castelhanos!
— Cão!
— Traidor!
Excitando-se a si própria com esse gritos de sanha, que mais pareciam
uivos, toda a matilha humana arremeteu de novo contra o cadáver. Um cão latiu,
atropelado pelos mais impacientes — e logo um moço da ribeira, colhendo-o pelo
cachaço, o lançou contra o morto, entre brados de ferino incitamento:
— Fila, Dragão! Css! Css!
Aboca, que é caça brava! As duas mulheres, apavoradas, fugiram entre as vaias e
os risos da turbamulta.
— A canalha! A canalha! — exclamou D. Isabel, revoltada, emergindo
daquele pesadelo com os olhos cheios de lágrimas.
Guiomar conteve-a, intimidada:
— Vede que não vos ouçam, minha mãe!... Aquilo é horrível; mas Deus o quer...
É a expiação!...
O olhar da velha faiscou.
— Tu defendes os algozes! Tu?! — invectivou ela, com a mais acerba
violência. E depois, adelgaçando a voz num sopro que procurava como um estilete
em brasa o coração da filha, acrescentou: — Sabes quem é aquele homem trucidado
e injuriado pela populaça?... Sabes quem é o renegado, o traidor, o vencido!...
Sabes?...
E como Guiomar a fitasse, já assustada pelas misteriosas ameaças que
empeçonhavam aquele falar de demência, concluiu:
— É teu pai!
---
Do livro: "Portugal Amoroso".
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