A Morta Romântica
— Quem morreu,
pregunta? Foi Angélica, uma pobre e dolorosa rapariga predestinada para o
sofrimento e que, de todas as riquezas do mundo, apenas teve a das suas
lágrimas. Há de lembrar-se ainda dela, certamente. A claridade da beleza que a
inundava extinguiu-se apenas há 48 horas!... Não se recorda? Que fraca memória
tem! Todavia, a história de Angélica é uma das mais interessantes, sob o ponto
de vista emotivo... Se eu conheço essa história? Conheço-a perfeitamente, linha
a linha, episódio a episódio, como a conheci a ela...
Coitada! Acaba
de enterrar-se.
Venho agora
mesmo de pousar-lhe sobre o caixão, antes d' ele baixar à campa rasa em que
para sempre se sumiu, o mais perfumado, virginal e fresco botão de rosa que
encontrei no meu jardim!... Devia esta homenagem à sua pureza...
Angélica foi
sepultada por uma tarde bem serena e bem dourada de sol. No cemitério, o ar era
tão doce e tão profundo, que os meus olhos se fecharam de gozo. E a morta ficou
num lindo sítio! Junto do seu coval anônimo, as roseiras, em abril, enroscam-se
nos ciprestes como as serpentes no coração de Laocoonte, e mesmo de inverno,
quando cai neve, as toutinegras que não emigram dão ali serenatas!...
Que pena senti
por ela!
Ah! mas que o
meu ato de piedade o não leve a julgar que nos amámos ou que Angélica fosse
para mim, algum dia, mais do que uma desditosa criatura, a quem só por
compaixão se consagra um pouco de afeto desinteressado!...
Bem sei! Não
acredita. Esse riso irônico é uma confissão. Não negue! Para quê? Bem vê que
não me considero ofendido e que continuo a falar-lhe serenamente.
No nosso tempo tão
positivo ou tão egoísta, ninguém crê já na ternura dum homem por qualquer
mulher de 20 anos que tenha a sua origem na obrigação, na dor pelos outros,
pelos que são humildes e desgraçados. A nossa época é desdenhosa e perversa,
sendo o cinismo a sua expressão mais característica. Diante da imagem tangível
do bem, o que ela procura ativamente é o mal...
Considere,
porém, uma coisa. Angélica não era uma dessas belezas raras que causam
deslumbramentos pelo esplendor da radiação. Só os seus olhos eram melancólicos,
ingênuos, misteriosos, espelhando não sei que inocência e tendo o negro
aveludado e úmido de certas violetas debaixo da água... De resto, nunca
experimentei a menor curiosidade de observar se ela era bela ou feia. Perto de
Angélica, o meu coração nunca — mas nunca! — bateu mais apressadamente.
Juro-lhe que o meu interesse por essa infeliz rapariga, que o amor criou para o
infortúnio como a muitas outras para a felicidade, foi em todos os momentos
inspirado pela mágoa...
Não há o menor
mérito em tal procedimento da minha parte, está claro. Não sou um santo, mas um
impuro pecador, como muitos outros. E a quantas almas sensíveis eu terei
causado tristezas irremediáveis! Mas, à de Angélica, não! Pelo menos, jamais
tive esse intuito...
Ela morreu. Já nada
quer dos dramas ou das comédias da vida — e eu, sem a melindrar, sem a fazer
corar de pudor ferido, posso referir-lhe uma particularidade que a define com
nitidez.
Ei-la: quando,
certo dia, lhe chegou aos ouvidos o boato malévolo de que era minha amante —
veja que a suspeita em que há pouco me envolveu é muito antiga! —, Angélica
procurou-me, com a vista toldada de pranto e a garganta cheia dos ansiados
soluços que lhe subiam do peito, murmurando:
— O que dizem de
mim!... Que injustiça tamanha, pois não é verdade?... Bem sabe que me não ama...
E contudo!...
Declaro-lhe que
me pareceu adivinhar, nestas lamentações, a saudade infinita duma adoração
ardentemente ambicionada e idealizada e que, apesar disso, nunca dera flor no
coração de Angélica. Cheguei mesmo a crer, nesse instante, que, por uma tal
adoração, que tocaria de graça toda a sua vida, como rosa que desabrocha numa
jarra de cristal e a cobre de aroma e cor, Angélica daria, sem hesitações e sem
remorsos, a sua virtude sem mácula, a nobreza da sua reputação, a castidade do
seu corpo, a sua própria vida...
Não se ria dessa
forma! Digo-lhe a verdade! Poucas vezes tenho sido tão sincero como agora. Para
certas organizações femininas, exaltadamente afetivas, só há na existência uma
única hora transcendente e digna de viver-se, que é a do amor. E Angélica era
uma das organizações de que falo. Apesar disso, ninguém reparava nela... Oh! se
reparassem! De que loucuras e heroísmos Angélica daria provas! Porque, quando
se ama intensamente, não se pensa nas coisas que ficam para além, muito para
além, do coração, sejam elas humanas ou divinas... Pois não é assim?
E olhe que todas
as mulheres são capazes de tal desvairamento sublime, ou puras como os mármores
nitentes em que estão gravadas as estrofes dum cântico religioso, ou mais
arrastadas do que a lama das ruas!...
Não concordará?
Está no seu direito. E talvez até que a experiência lhe tenha dado razões para
esse pessimismo...
O que é certo,
no entanto, é que a solitude e o desamparo em que Angélica viveu a tornaram
concentrada, levando-a a afastar-se mais dos outros, para melhor se isolar com
as suas aspirações e o seu sonho...
Estou, talvez, a
enfastiá-lo com a narrativa dum caso a que falta o encanto da ação!...
Para que hei de
continuá-lo? Acabemo-lo, tanto mais que o facto essencial é que Angélica jaz
numa cova muito funda, na comunhão sombria dos bichos e das raízes que já,
decerto, começaram a devorá-la com suas bocas terríveis...
O quê? Não se
enfastia? Quer, então, saber tudo? Pois bem! Ouça... Angélica ficou órfã de pai
aos dois anos — e a mãe, que tinha uma pequena casa de comércio, morreu duma
demorada e angustiosa enfermidade, deixando-a na maior pobreza, porque o
estabelecimento, vendido ao desbarate, mal deu para pagar os credores e a conta
do enterro. Isto é banal, mas é também lúgubre, não acha? Medite nesta
particularidade: uma rapariga em plena adolescência, com uma certa cultura e
uma inteligência que lhe afinavam a faculdade de sentir, absolutamente entregue
a si mesma, sem proteções que a defendessem e aconselhassem, obrigada a ganhar
por suas mãos — que não estavam costumadas aos trabalhos rudes e violentos — o
pão para a boca!...
Enquanto a
doente esteve no leito, consumindo-se lentamente na febre duma tuberculose que
a exauria de toda a seiva e a esgotava de toda a vitalidade, Angélica
sentou-se-lhe à cabeceira e foi duma dedicação incomparável. Não a abandonava
um só instante, de noite ou de dia, enxugava-lhe piedosamente os cabelos que as
bagadas de suor lhe empastavam na testa, sustinha-lhe com brandura a cabeça —
que a aproximação da morte tornava mais pesada — nos seus braços débeis, quando
a tosse sufocava a dolorosa tísica, abalando-lhe o organismo enfraquecido,
extenuando-a, fazendo-lhe arquejar o peito magro e exangue, ministrava-lhe
cuidadosamente os remédios e o alimento, consolando-a nas suas crises e nas
suas horas de maior crueldade... Não seria mais venerável uma irmã da caridade
que se devotasse aos que sofrem para conquistar as alegrias do Céu, de que S.
Bruno tinha tantas saudades!...
Às vezes, nos
momentos de mais serenidade, a doente, fitando na filha uns olhos absorventes
de luz e em que se refletia, com o reconhecimento, uma pena imensa, exclamava,
numa voz abafada de choro:
— O que mais me
custa é deixar-te só e tão pobrezinha que nem uma sede de água terás!...
Angélica,
entalada de soluços e fazendo esforços enormes para conter as lágrimas
represadas, acudia:
— Ora vejam em
que está a pensar! Se eu lhe afirmo que se cura!... Ainda ontem o médico!...
Oh! a doce, a
santificada mentira!
O clínico
dizia-lhe, precisamente, todos os dias, que nada havia a esperar — e com uma
ausência de sensibilidade, uma frieza de quem lida muito com a morte —, mas
Angélica, escondendo a verdade e sorrindo, iludia a moribunda, alimentando-lhe
o sopro da existência, prestes a extinguir-se.
Quando não tinha
forças para simular por mais tempo, Angélica escondia-se da mãe e carpia-se...
Ah! poucas
mulheres como esta tenho conhecido, dotadas de maior espírito de sacrifício!...
E todavia, como o Destino é estranho e misterioso!
Tendo nascido
para devotar-se, para amar, jamais o amor parou por instantes perto dela, curvando-se-lhe,
risonhamente, sobre a fronte em que a revoada de sonhos cor-de-rosa batia as
invisíveis asas de luz, para murmurar-lhe ao ouvido as suaves confidências
inolvidáveis...
O quê? Diz-me
que Angélica devia proceder assim para com a sua mãe doente? Decerto! Sei-o
perfeitamente. Mas nem por isso deixava de revelar uma beleza moral que fazia
enflorar paraísos de ternura no seu coração! Repare, além disso, em que essa
rapariga admirável, que passou no mundo sempre incompreendida, sentia um gozo
íntimo em dedicar-se aos outros.
Nada me
impedirá, neste momento, de fazer afirmações que tanto melindrariam a sua candura
e a sua ingenuidade, porque, como acabo de dizer-lhe, Angélica morreu, dorme
numa álgida e funda cova, e eu mesmo lhe atirei, há pouco, um punhado de terra
sobre as quatro tábuas do caixão forrado de branco. Nenhum escrúpulo me
forçaria hoje a guardar silêncio, tanto mais que na vida que há horas apenas se
apagou não existem impurezas...
Sim! Sim!
Suspeito o que quer dizer-me! Na realidade, eu divago talvez demasiadamente, e
isto fatiga os que não têm, como eu, uma grande, transfiguradora admiração por
essa rapariga humilde. Preveni-o, em todo o caso, de que na história de
Angélica via mais beleza estática do que ação... Não é isto?
Sempre deseja
que continue a narrativa? Pois bem, continuarei. E conceda-me que eu divague à
vontade. É o meu feitio, o meu temperamento. Há em mim qualquer coisa de
desordenado, de anormal. Nunca consegui confinar-me dentro do espaço muito
limitado dum método e nunca me submeti a uma disciplina. Sou assim.
Desculpa-me, não é verdade?...
Ah! mas eu
esqueço o meu assunto essencial. É muito justa a sua observação. Voltemos a
Angélica...
A primeira noite
em que se viu só na sua casa cheia de sombra e de solidão, a pobre rapariga
rompeu num choro angustiado, dobrada sobre si mesma e enclavinhando os dedos
brancos e nervosos, que ainda tremiam, nos longos cabelos desalinhados. Na sua
dor — como ela me contou mais tarde —, teve ainda a lucidez necessária para
verificar que para as criaturas a quem o sofrimento afinou a sensibilidade
basta muitas vezes a coisa mais insignificante para as contentar na sua
humildade, purificando-as pela resignação... A mãe de Angélica, durante toda a
sua enfermidade, nada mais era do que um mísero corpo mirrado, fazendo um
pequeno volume sob as roupas do leito, um feixe de ossos coberto por uma pele
engelhada e lívida — uma pele que não era, decerto, o mimo de seda e de
delicadeza que a terra afagaria com a sua boca voluptuosa e de hálito letal.
Toda a energia da doente parecia concentrar-se-lhe nos olhos, que dardejavam
dum brilho de febre e que com tanta insistência procuravam os de Angélica, como
se quisessem ler neles uma boa-nova ou uma sentença terrível. A tísica mal
respirava — e, no entanto, a sua débil respiração dir-se-ia animar a vivenda
inteira, do soalho ao teto, como a luz duma candeia, minúscula abelha de ouro e
de claridade que apesar disso alumia imensidades! A morrer, mesmo, a doente
ainda parecia comunicar uma alma à habitação e um sentimento a tudo quanto nela
se encontrava — ainda ao que era inerte! E até essa aflitiva companhia faltara,
de repente, a Angélica!... Por isso é que ela se lamentava tão doridamente que,
sempre que a surpreendia nos seus queixumes, me custava a reprimir a própria
emoção...
Por quê?
Singular pergunta a sua! Porque, naturalmente, é sempre doloroso ver sofrer
alguém, embora alheio ao nosso afeto, quanto mais uma criatura que se conhece e
se estima!...
Depois, nas
lamentações de Angélica havia uma eloquência de tal ordem, tanta razão e uma
tão justificada revolta contra a aspereza do Destino, sempre enigmático e
inexorável, que eu torturava-me só por não poder acudir-lhe e reparar a
clamorosa injustiça...
Mas esta revolta
de Angélica foi transitória. Volvidos poucos meses sobre o falecimento da mãe,
ela conformou-se com o seu desamparo, exclamando a cada momento, com uma
convicção e uma sinceridade que me desorientavam:
— A sorte, se me
castiga assim, é porque eu sou merecedora disso. Quem sabe que pecados andarei
a expiar neste mundo?
Pobre dela!
Nunca tinha sabido o que fosse alegria de viver, bem-estar, felicidade; jamais
trouxera a abrir na alma a flor eterna duma adoração humana, contava 20 anos;
nenhum pensamento impuro havia envenenado as suas aspirações; os seus desejos
eram duma candidez que, postos sobre as brancas aras dos altares, não lhes maculariam
a alvura; e, contudo, julgava-se uma pecadora ou, pelo menos, uma escolhida
para a expiação de pecados que não cometera! Era a alucinação mística. A
desgraça produz estes desvairamentos...
Angélica não
tinha mais ninguém à sua volta: se adoecesse, não haveria quem lhe refrescasse
a boca de água; trabalhava para viver; a sua mocidade em flor desbotava
rapidamente, crestada pelo fogo das lágrimas...
Que diz? Que
isto é uma novela romântica à moda de Camilo? Que estou compondo, pela
imaginação, um conto de sentimentalismo atroz em que uma infeliz mulher
desliza, com a sua beleza e a sua graça, para encantar as almas tristes, como
uma visão celeste que esvoaçasse sobre os espinhais, com um lírio na mão e
perfumando tudo à volta? Que ideia a sua! E, sobretudo, que ironia!... Bem sei
a que ponto pretende chegar. Oh! eu surpreendo-lhe as intenções nos gestos mais
vagos e inexpressivos... É ainda um sarcasmo. A virtude e a formosura
ocultam-se na sua cabana solitária, à espera do príncipe que surgirá de súbito
em certa alvorada. Então, tudo se transmudará repentinamente, ouvindo-se o
lírico arrulhar dos beijos e os festivos epitalâmios das bodas...
Era nisto que
estava a pensar... Não era? Para que há de negar?
Afirmo-lhe, no
entanto, que se tivesse formulado este seu pensamento em palavras sardônicas
cometeria, além duma iniquidade, uma verdadeira maldade, que mais tarde
causaria remorsos à sua equitativa consciência. Eu já lhe disse que, apesar de
ser linda e de ter a divina graça de todas as mulheres na mocidade, Angélica
não era um desses tipos de beleza que passam soberanamente, por entre fileiras
de admiradores submissos, enlanguescendo-os...
Foi sempre, para
mais, uma criatura tímida, recolhida, procurando, de preferência, a sombra,
para mais se apagar, para não dar nas vistas, para se não revelar. Toda a
ousadia, todo o barulho, toda a estridência, a assustavam. Não tinha coragem
para sustentar com fixidez, resolutamente, tanto o olhar sarcástico ou
admirativo dum homem, como o duma criança, porque temia praticar um ato
censurável ou uma inconveniência que justificasse outras!
Não compreende,
por tudo isto, como eu a conheci e como entabulei com ela relações íntimas e
fraternas? O reparo admite-se, decerto, mas deixará de subsistir quando eu a
informar de que éramos vizinhos e que todos os dias nos encontrávamos. A
modesta habitação de Angélica ficava junto da minha, como se procurasse uma proteção
segura. E desde pequenita que Angélica entrava na nossa casa, onde era sempre
bem acolhida por minha mãe e minhas irmãs... Note a sinceridade desta narrativa
e a pureza da alma de Angélica, desde que eu não hesito em associar à sua
dorida memória as senhoras da minha família...
Quando ficou só,
passou a frequentar a minha morada com mais assiduidade. Com uma infinita pena
dela, minha mãe, que foi uma santa, chamava-a, dava-lhe trabalho — que era uma
piedosa e engenhosa maneira de lhe fazer bem, sem a humilhar —, ensinava os
outros a estimá-la. De sorte que eu via Angélica diariamente, nos corredores ou
nas salas do casarão imenso, e nunca me esquecia de saudá-la cortesmente, o que
fazia com que ela baixasse os olhos, enleada, torcendo nervosamente, na ponta
dos dedos, o lenço que quase sempre trazia nas mãos. Com o andar do tempo, a
timidez dissipou-se, estabeleceu-se entre nós uma certa intimidade que me
encantava, porque bem sabe que nunca fui orgulhoso, apesar de ser filho de pais
ricos e vaidosos das suas árvores de costado. As grandezas e os esplendores do
armorial não me afastaram jamais do convívio das pessoas simples e das
multidões deserdadas, preferindo-as mesmo, em muitos casos, às outras classes...
Pergunta-me a
razão desta preferência? A resposta é fácil! É que as plebes sofredoras, apesar
de violências que se justificam, parecem-me mais abertas, mais francas, dotadas
de maior lealdade do que as aristocracias ou as burguesias. E são,
incontestavelmente, mais originais e, portanto, mais atraentes... Não concorda?
Está bem. Mas não nos emaranhemos em discussões calorosas acerca disso. Para
quê?... Vejo que não estou aqui para controvérsias ruidosas mas para contar-lhe
a história duma rapariga que, sendo digna da felicidade, não foi, todavia,
feliz...
Angélica, que
pertencia a essa legião comovedora dos humildes, parecia-me desejar um bem que
não alcançaria nunca, parecia-me sofrer, e isto enternecia-me. Aproximei-me
dela, só por isto, um pouco mais, e logo a intriga começou a tecer a sua teia
malévola... É claro, eu estava nos meus 24 anos, concluíra o meu curso, tinha
fama de namorador a que se não resiste, pelo prestígio da juventude, do nome,
da fortuna. Por sua parte, Angélica ia nos 20, estava na sua plena manhã
primaveril.
Viam-nos, muitas
vezes, sentados no mesmo banco do jardim, conversando perto do mesmo alegrete
de cravos brancos e rajados.
Era natural que
isto se estranhasse, sobretudo numa sociedade que, deparando um homem e uma
mulher a palestrar, logo julga estar na presença de Paolo e Francesca, naquela
hora fatal em que liam ambos o mesmo livro e em que, ao chegarem a certa página
de amor, tão perturbados ficaram, que não conseguiram ler mais em todo o dia!...
Ri? Contudo, não
ousará negar a veracidade das minhas palavras. O mundo é péssimo, e creio que
nunca foi melhor!
Uma vez por
outra, certas insinuações abomináveis chegavam aos ouvidos de Angélica, uma
vida heroica lutando com desespero para ultrapassar os limites marcados pelo
Destino à sua existência.
Quando me
contava essas insinuações, mirava-me com olhos de infinita doçura, em que havia
um não sei quê de mistério que jamais penetrei, quase até ao fim de seu
Calvário, a flor duma ansiedade que me perturbava sem eu saber porquê.
Julgava, nesses
momentos, que os olhos imensos, melancólicos, interrogativos, de Angélica
revelavam muito menos do que aquilo que escondiam. E também observei que, se a
voz de Angélica tremia, ao queixar-se-me da dureza dos outros, no seu rosto se
espelhavam uma placidez ou uma alegria que me desconcertavam! Cheguei até a
suspeitar — sem que todavia desse corpo e forma a essas suspeitas, tão monstruosas
me pareciam — que Angélica estimaria que os dizeres venenosos fossem
verdadeiros!... Mas imediatamente me arrependia de pensar assim, se a
contemplava mais demoradamente, encantando os olhos na sua candura, na sua
resplandecente inocência, na sua graça de flor nova. E sentia então que, quando
se encontram ao lado dum coração puro, as almas sensíveis e delicadas têm uma
grande necessidade de ternura!... A impressão desagradável manteve-se, por mais
que eu tentasse bani-la — e foi até sob a sua influência que eu comecei a
evitar a desditos a rapariga... Porquê, Deus do Céu? Que mal me fazia ela?
Nenhum, aí está!... Se, na realidade, me fizesse algum mal, com que intensidade
eu a adoraria, talvez!... E atente na delicadeza da Angélica. A minha frieza
repentina e inexplicável deveria tê-la ferido rudemente. No entanto, a sua boca
não se abriu para uma lamentação, para uma amargura, e continuou a sorrir-me,
de longe, com a mesma paz e a mesma celeste gracilidade! O seu olhar não
repreendia, embora a tristeza o amortecesse — abençoava ainda... Quando recordo
isto, o remorso sobressalta-me...
Está bem... Não
se impaciente... Diz-me, desdenhosamente, que não sabe onde esteja o interesse
de que lhe falei, nesta história!?...
Até aqui, a vida
de Angélica é vulgar, nada tem de extraordinário, de intensamente emotivo.
Mas eu ainda não
cheguei ao fim.
Pode acontecer,
de resto, que, para o seu sentimento, seja trivial o que para mim é duma
elevação e duma grandeza excecionais, como nuança afetiva e como lealdade. Mas
agora há de ouvir-me. Serei rápido...
Escute: tive,
certo dia, de sair de casa para uma viagem em que me demorei dois meses. Na alegria
e na impaciência da partida, nem sequer me despedi de Angélica. Só agora sei
que isto a devia ter melindrado amargamente, fazendo-lhe chorar, no silêncio da
sua casa que ninguém procurava, essas lágrimas que, na expressão admirável dum
poeta, vêm de muito mais longe do que dos olhos, porque saem dos mistérios
eternos da alma. Como a passara a encontrar poucas vezes, ia-a esquecendo a
pouco e pouco. Quando regressei, já nem me lembrava dela — e foi preciso que me
aparecesse, pálida, mais triste, talvez mordida pelo mal de que havia de
morrer, que eu de súbito tornei a recordar, mas sem um grande interesse, devo
confessá-lo... Parece-lhe isto insuportavelmente romântico, não é verdade?
Todavia, estou a
reconstituir um caso vivido. A existência tem destas singularidades... Não
imagine, contudo, que Angélica procurou de qualquer forma atravessar-se no meu
caminho, para que eu a visse. De modo algum! A pobre rapariga tinha o orgulho
que nascia da sua dignidade. Cruzou-se comigo naturalmente, certa manhã em que
foi a minha casa para tomar conta dum trabalho.
Sorriu com a
amabilidade de sempre, falou-me, com a afabilidade costumada, em coisas
vulgares e que nem sequer me ficaram na memória. Só à despedida, quando eu,
gracejando, lhe perguntei se já tinha noivo e se o seu casamento se celebraria
brevemente, observei que ela se fazia, de repente, muito séria, murchando o
riso no vermelho-cravo da sua boca, e exclamando com custo e em palavras
gaguejadas:
— Para que quer
saber isso?
— Para lhe dar a
prenda prometida — respondi prontamente.
As suas
pálpebras cerraram-se, por um momento, e, depois duma curta pausa, Angélica,
subindo a escadaria, disse:
— Esteja
descansado que hei de informá-lo a tempo. A sua prenda é que eu não desejo
perder, de maneira alguma...
Este incidente
aproximou-nos, de novo, da confiança um do outro: e, sempre que Angélica surgia
diante de mim, eu não deixava de insistir:
— E esse namoro?...
Era uma
inofensiva maneira de chalacear com uma rapariga na primavera dos anos — porque
a mocidade só pensa no amor. No entanto, Angélica parecia não gostar da
pergunta. E não gostava, com efeito! Mas só muito tarde eu tive a certeza disso
e conheci o motivo do seu desgosto... Muitas vezes, amuava, não dizia nada,
partia visivelmente contrariada e empregando grandes esforços para dissimular o
seu mau humor, porque era duma perfeita delicadeza de maneiras; outras, porém,
corava muito, os seus olhos fulguravam dum brilho mais vivo, e eu sentia a
impressão de que ela tinha, na realidade, um segredo para revelar-me. Por isso
mesmo, redobrava de impertinência... Que a sua alma imaculada me perdoe! Nunca
eu pensei que lhe causasse tanto sofrimento!...
Uma tarde, todas
as obscuridades deste pequenino drama que lhe estou narrando se dissiparam. Não
olvidei ainda nenhum dos pormenores da cena — que tenho bem presente no meu
espírito —, tanto ela me perturbou. Havia uma ruidosa multidão nas ruas que um
sol radioso iluminava. Era a um domingo.
No ar fino e
penetrante, os menores rumores adquiriam uma prolongada vibração. Angélica, que
estava por essa época em minha casa, fazendo uns trabalhos de costura, descera
um momento ao jardim, onde eu andava a tratar de umas roseiras. Ouvindo passos
ligeiros rangendo na areia dos arruamentos, levantei a cabeça: e, vendo
Angélica, de novo inquiri, banalmente:
— E esse
consórcio?...
Era a
insistência fútil de quem nada mais tinha para dizer a uma criatura de coração
apaixonado que, certamente, talvez esperasse ouvir da minha parte palavras
menos frívolas. Angélica, parando à beira dum canteiro de tulipas em flor,
fitou-me demoradamente — e eu, contemplando-a nesse momento, vi com nitidez que
um sentimento estranho, decerto o do amor, tinha entrado, como um cego, na sua
alma!
Há certos
instantes em que os seres conscientes sabem tudo e se confessam inteiramente,
sem precisarem de bulir com os lábios — e era num desses instantes que se encontrava
Angélica.
— Que tem para
dizer-me? — exclamei eu, querendo acabar com uma situação que me sobressaltava.
— Uma coisa
importante! — replicou Angélica, tão branca, tão falta de cor, que eu temi um
desmaio.
Aproximou-se
mais, sem dúvida para comunicar-me o seu segredo numa voz tão baixa que ninguém
mais a ouviria, a não ser eu, e repetiu:
— Uma coisa
importante.
— Mas o quê?
— É que,
efetivamente, há um homem que me ama... Parece-lhe impossível!... Mas é
verdade. Bem sabe que eu não minto. Mentir para quê?...
O sangue
refluiu-lhe ao rosto, e falava apressadamente, numa exaltação de quem quisesse
evadir-se, com rapidez, duma tortura insuportável. Eu, acendendo um cigarro,
atendia-a sem a interromper: e Angélica, vencendo a vergonha de que aquela confissão
a invadia, continuava:
— Sim! Há um
homem que me ama, que baixou os olhos para a minha tristeza. Só por isto, eu o
veneraria... Bem vê... A mão que se estende lealmente para todo o desamparo
merece ser beijada com ternura...
— E Angélica? —
interroguei.
— Eu, é claro,
admiro esse homem, tenho vontade de ajoelhar diante dele. Quando me apareceu
esta adoração tão sincera estava ao alcance da dor: e agora!... Agora, chego a
crer que estou muito longe dela! Depois da morte de minha mãe, não tive maior
afeto à minha volta.
— E ele é
sincero?...
— Tem uma
ambição única: a de ser meu marido. Há semanas que vivemos nesta luta... Que me
aconselha?
— Aconselho-a a
que aceite!...
— Que me case?...
— Sim!... Que se
case!...
Sorriu
doloridamente e disse, em palavras espaçadas:
— Tenho a
certeza de que, se casar com este homem — o melhor dos homens! —, serei absolutamente
feliz. O problema do meu destino ficará resolvido por completo.
— Aí está! —
bradei eu.
— E, contudo,
decidi não casar, repelir, sem orgulho, mas com firmeza, esta generosa oferta...
Por quê? Por honestidade.
— Ora essa! —
atalhei, aturdido.
— Sim — bradou
ela —, por honestidade. Eu não quero enganar quem, tão confiadamente, acreditou
em mim, oferecendo-me toda a sua vida e todo o seu futuro. Oh! seria uma
traição: e os espíritos desta elevação moral não devem ser atraiçoados...
— Uma traição!
Quantas palavras inúteis e irrefletidas.
— Uma traição,
certamente. E quer saber por quê?... Por isto: é que amo, que amei sempre, um
outro homem!...
Esta afirmação,
que me surpreendeu, foi feita num grito que Angélica não conseguiu sufocar.
— Ama outro
homem? — disse eu.
— Amo! E este
amor, que me faz sofrer, não o maldigo, porque me deu a conhecer infinitas
doçuras. Procurei, entretanto, libertar-me dele, mas em vão...
— E quem é esse
homem?
— Ah! não queira
sabê-lo. Não lho posso dizer. Apenas lhe digo que ele não sabe que é
ardentemente amado por mim, e que eu nunca teria a coragem de revelar-lhe este
amor!... É por isso que não me caso!... Não devo fazê-lo...
E, no entanto,
não viria eu a adorar a criatura admirável que me quer?...
Peguei-lhe na
mão, que a pobre Angélica não retirou, e que tremia entre as minhas; uma grande
comoção apoderava-se de mim; não encontrava vocábulos com que pudesse exprimir
claramente as minhas ideias.
Recordo-me,
porém, de lhe ter asseverado que devia casar e que os seus escrúpulos eram
pueris. Angélica, erguendo impetuosamente a cabeça, que uma bela, enérgica
decisão animava, acudiu, com desespero:
— Não me fale
assim!... Todos os homens podem dar-me tal conselho, menos o senhor...
E, escondendo o
rosto nas mãos, fugiu, numa alucinação, através do jardim em flor, chorando
perdidamente.
Compreendi tudo,
e a minha comoção foi enorme. Nunca mais pude tornar a ver Angélica. Saiu de
sua casa na noite desse mesmo domingo sem dizer para onde ia, e só voltou dias
antes de morrer!...
Aqui tem o drama
de Angélica. Uma romântica? Incontestavelmente! Mas um coração raro, uma
verdadeira flor humana! É provável que a este drama falte intensidade e
movimento. Não direi o contrário...
Todavia, eu
apenas quis contar-lhe a história sublime de Angélica — a história da sua alma,
do seu sonho, da sua dor, da sua ternura, que é a que eu considero superior...
Talvez esteja em erro: mas eu venho do cemitério, pousei um fresco botão de
rosa sobre o caixão de Angélica, no minuto em que ele baixava à sepultura,
convivi com a morta encantadora, nos primeiros momentos da sua vida
extraterrestre — e quando se está ao lado da morte, as sensibilidades como a
minha têm uma grande necessidade de beleza espiritual...
Eis tudo quanto
acerca de Angélica tinha a dizer-lhe...
Não! Não é tudo!
Espere... Agora, que ela já não
é mais do que
uma forma vaga na minha saudade, começo a amá-la exaltadamente! Como o coração
humano é estranho!...
Porto, janeiro de 1924.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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