A miséria dum destino
A vida era uma amargura naquela casa
humilde, que uma doce ventura iluminara antigamente, em dias de que apenas restava
a saudade. O marido, o Bernardo, fora para o Brasil, a bordo dum vapor que se
sumira na imensidade das águas, sob um céu azul e tão calmo que escutara,
impassível, os seus dolorosos queixumes de abandonada, e vira, sem uma cólera,
as suas lágrimas calcinadoras: e Marta ficara só com o pequenino ainda de mama
— que ela adormecia nos pobres braços magros com o carinho de de quem, no vasto
mundo egoísta, não tem outro coração amigo — e que aconchegava, numa ânsia, do
seio estéril, com afagos e ternuras que só as mães conhecem.
O destino talhara-a bem desgraçadamente
para uma existência de sofrimento constante, crestara-lhe no peito a pura flor
da esperança logo na manhã suave em que ela desabrochou. E fora tão invejada na
mocidade pelas outras raparigas! Com a sua pureza de adolescente ingênua, a sua
delicada beleza que lhe iluminava o rosto, os seus dedos tão ágeis quando,
pelas tardes de descanso, à porta da granja teciam rendas, ninguém a via que a
não admirasse. Se pelos crepúsculos de verão recolhia à herdade, atrás da
boiada, com as roupas honestas e airosas cheirando ao feno dos prados
atravessadose à seiva das vegetações esmagadas, parecia que atrás dos seus
passos ficava um rastro luminoso — tão radiante é a juventude.
Entre os trigos louros, pelos outonos
mansos e fartos, toucando o chapéu de grosseira palha com as rubras papoulas —
que vistas de longe pareciam labaredas — lembrava uma dessas deusas da
mitologia pagã, Ceres, por exemplo, visitando as messes maduras. As aves
conheciam-na e rodeavam-na, chilreando, às horas de merenda; os arvoredos
ofereciam-lhe as aromáticas e leves sombras refrigerantes, para as suas sestas.
Como uma Eva moça e robusta — ainda Imaculada porque os seus lábios
desconheciam o calor perturbante dos beijos e o seu coração ignorava os
cuidados e as penas do amor — cantava sempre, durante as rudes lides agrícolas.
Trabalhava toda a semana, ajudando os pais velhos na cultura das terras de pão
— e as sementeiras que fazia prosperavam maravilhosamente, atulhando as arcas
na abençoada estação das colheitas. Aos domingos, descalça, andava pelos
pousios guardando o rebanho, como uma daquelas pastoras de que falam os livros
sagrados: e a sua alma, formada na inocência rústica, na paz, na unção
campestre, nos grandes ambientes desafogados, tinha subtilezas e precocidades
de sentimento.
Nas romarias, em tardes triunfais de
festa, pulando nos adros das ermidinhas claras, aninhadas como pombas entre
árvores, era um regalo vê-la improvisar as desgarradas, ao som da viola:
Ai
cantador, cantador,
Onde
a tua ambição vai!
Quanto
mais alto.se sobe,
Tanto
mais de alto se cai!
E toca de roda, em nervosos ritmos,
meneando as ancas, repenicando os dedos, batendo o pé e erguendo a fronte com
orgulho. Os peitos arfavam de fadiga; as faces coravam como cerejas bicais em
maio; e Marta, toda purpurejada como um cravo, era então soberbamente linda. O
nosso abade, que era um santo, quando a surpreendia nestes momentos, fechava os
olhos — para fugir à tentação, abria atrapalhadamente o seu Breviário e
exclamava, numa voz cortada.de comoção:
— Eu te arrenego, inimigo de cachopa!
E o padre cura, um rapaz possante, de
lábios grossos e olhar vivo, levado para a igreja para obedecer à vontade
materna, esse, ao contemplá-la, benzia-se muito agitado.
Ora foi por este tempo que o Bernardo
começou a namorá-la, esperando-a quando ela ia à fonte, de cântaro na ilharga,
morena e cheia de graça. A princípio, Marta sorria-se com indiferença, levava o
caso em brincadeira, ao encontrá-lo no seu caminho, todo encolhido de timidez.
Ao bater das Trindades, ela passava, com um riso grácil na flor da boca, a
bilha cheia de água ainda murmurosa do cantar das fontes onde fora colhida.
— Santas noites, Marta! — exclamava
Bernardo.
— O Senhor te dê as mesmas! — respondia
ela, naturalmente.
E parecia, na verdade, uma suave moça
das Escrituras, com os seios a estourar de viço dentro do colete, as carnes
regadas por um sangue rico. Mas, tantas vezes Bernardo a seguira,
aparecendo-lhe pelos campos, pelas ruas da aldeia, pelas desfolhadas, nas
noites de luar, que esta insistência começou a irritá-la.
— Boa! Tenho agora guardião... Era o
que me faltava!
E Bernardo, sempre a mesma perturbação
na voz:
— Bons dias, Marta.
— Deus te salve.
Nessa época, era ele o melhor tangedor
de viola das redondezas. As cordas, sob os seus de dos, gemiam, choravam ou
trinavam que era um enlevo de alma ouvi-las. Improvisava rapidamente, com uma
mordacidade que não havia na povoação quem se lhe pudesse comparar — e todas as
raparigas lhe queriam com mal contido ciúme. Nas descamizadelas, ao luar,
quando Bernardo encontrava milho rei e ia abraçá-las, nem uma só se recusava e
lhe fugia. Ele, contudo, não se inclinava para nenhuma, pairando com todas
desprendidamente. Curvado sobre o braço da viola — eh! cachopas, vá de saltar
sem repouso! E vinham logo as provocações que lhe estimulavam a vaidade:
Oh! tocador de viola
És o bem deste meu peito!...
Nos arraiais, nas feiras, com o largo
chapeirão de feltro desabado sob a face satisfeita, tostada do bafo das
soalheiras, a faixa vermelha enrolada à volta da cinta, de jaqueta ao ombro e
um ramo de manjericão na orelha, era efetivamente um belo rapaz, de músculo
resistente, peito largo, onde respiravam dois pulmões de aço, potentes e
sadios, bebendo a largos haustos o ar puro das campinas. Cavava um dia inteiro
sem que experimentasse a mais leve fadiga, e, quando os seus companheiros de
trabalho recolhiam extenuados ao lar, de enxadas às costas, pachorrentos e tristes,
de caras maceradas e negras da terra, ele, jovialmente, enchia de canções as
azinhagas sonoras.
Se o não haviam de amar as moças!
No entanto, Marta desgostava-se
intimamente, se o encontrava. O coração dava-lhe um rebate de perigo e todo o
seu ser se retraía, num mal estar supremo. Começava a sobressaltá-la aquela
perseguição constante.
Já os outros lhe dirigiam chufas, com
desespero de se verem desdenhados:
— Oh! Marta, então agora sempre é
certo?
— É certo o quê?
— Pois fala-se p'r’aí no teu derriço
com o Bernardo da Bouça.
— Some-te, demo!
— Quer não! Talvez te não sirva?
— Ora!
Encolhia os ombros e seguia o seu caminho.
Um domingo, foi ela rezar uma novena à
Senhora do Monte, extasiada na sua piedade cristã. Devia à Virgem, cheia de
bondade e de misericórdia, o milagre de curar-lhe a mãe, a velha Rosária, dum
quebranto que apanhara e que a tivera tolhidinha na cama, durante um mês, a
gemer constantemente. Perto da capela surgiu o Bernardo, todo enleado.
— Deus te guarde, Marta.
Não se pôde conter que lhe não
respondesse com azedume:
— Olha lá, eu dispenso cães de guarda,
homem. Não tenhas medo que me perca...
— É que eu... — principiou ele.
— Deixemo-nos de endrôminas... Procura
o teu rumo, que procurarei o meu.
E foi ajoelhar, muito contrita, alheada
na sua crença, junto do altar, que resplandecia, na sua toalha de linho branco
cheirando ainda ao sol do coradouro e nos seus vasos de açucenas orvalhadas. Ia
orando e pensando. Afinal, o Bernardo nunca lhe fizera mal. Por que o tratava
com crueldade? Seria por ele lhe querer
tanto, que assim lhe seguia a sombra por toda a parte? Ao levantar os olhos,
encontrou a fronte da doce Mãe dos homens, que esplendia de inocência e de
claridade, e pareceu-lhe ver naquela serenidade virginal um bom agouro. Do s.eu
nicho, entre luzes e os brilhos das pratas, a Virgem abençoava-a, cobria-a toda
da nuvem luminosa do seu perdão. Ao erguer-se, irradiava beleza. Bernardo lá
estava, no mesmo sítio, parado, hirto, numa confusa vergonha; e mostrava-se tão
desalentado e arrependido, que a compungiu.
— Então adeus, Marta!
— Então adeus, Bernardo.
— Se queres que te acompanhe... É para
dizer-te uma coisa.
— Não quero nem deixo de querer... Se
isso te dá agrado, eu não caminho com as tuas pernas — exclamou ela com
brandura.
Ao anoitecer, já reluziam estrelas no
céu alto e ainda eles conversavam; e foi assim que Marta começou a amá-lo com
uma adoração infinita.
O casamento fez-se daí a poucos meses e
com uma grande pompa. O opulento bragal que Marta levou! Os lençóis de linho
cheiravam a maçãs camoesas, as suas saias e os seus lenços novos rescendiam a
funcho e alfazema. Apareceu na igreja de grilhões de ouro que lhe cobriam todo
o peito, e nos seus dedos tremiam brilhos de anéis. Foi o padre-cura que os casou;
e, ao pegar na mão de Marta para a juntar para sempre à do noivo, subiu-lhe a
cor à face branca e gorda. Ela rejubilava de contentamento, enquanto os sinos
tocavam na gloriosa calmaria da manhã azul, manchada do voo das asas boêmias.
— Mais taful não se encontra por estes
arredores! — murmuravam de todos os lados.
Durante as bodas, a viola de Bernardo
não teve um momento de repouso, e repicava, mais alegremente do que nunca,
na Caninha Verde e na Ribaldeira.
— Eh! raparigas! E uma, e duas, e vira
de roda! — gritava ele.
Os meses de noivado foram duma doçura
admirável; morriam e raiavam auroras, e jamais um fulgor de ventura deixou de
se espelhar na casa em que viviam — uma sossegada casa branca, escondida entre
latadas de limoeiros, onde cantavam ninhos e zumbiam enxames. Mas, de líeis
veio o aborrecimento, a saciedade, o tédio.
Em certos instantes, Bernardo
relembrava com nostalgia os tempos idos e lançava-lhe em rosto o seu desdém
antigo.
— Então que queres? Se eu comecei a
gostar de ti só mais tarde, naquele dia em que fui à capela!
— A gente encontra uma forca para cada
canto! — exclamava ele.
E vieram os ralhos contínuos, as
injúrias, as maldições.
— Bem me dizia o coração!
— O quê?
— Dizia-me isto, adivinhava tudo...
Batia-lhe, arrastava-a pela casa, com ferocidade.
— Grande porca!...
Ela chorava e resignava-se à sua sorte.
Quando nasceu o pequenino, Bernardo quis ir para o Brasil arranjar fortuna.
Vendeu-lhe o grilhão, as arrecadas, uma leira que Marta herdara do pai e levou
todo o dinheiro, deixando-a desamparada, sem uma sede de água.
— Não vás, meu rico homem!
— Vou! É uma cisma que se me meteu na
cabeça e ninguém ma tira.
— Diz-me o coração que te não torno a
ver.
— Tolices. Deixa-te de lamúrias!
E foi, por uma tarde triste. Ela ainda
o acompanhou ao vapor, pranteando-se, agarrando-se a ele com fúria,
mostrando-lhe a criança, que galrava descuidadamente, com a carinha rosada
picada de covas.
— Ó Bernardo, olha este anjinho, que é
teu filho!...
— Que preparo! Ora o diabo da mania!
Partiu sem lhe dar um beijo; e Marta, com os olhos enevoados de lágrimas, viu
sumir-se o navio, lançando grandes rolos de fumo e perdendo-se, por fim, no
deserto das águas, lá muito ao longe, onde nem voavam gaivotas.
E agora, para ali se encontrava com o
filho doente e mirradinho encostado ao peito débil onde o leite secara como um
manancial maldito. Ainda cantava, embalando o enfermo:
Dorme,
dorme meu menino,
o, ó, ó, ó...
o, ó, ó, ó...
Passava assim as noites; e tanto havia
chorado, que o pranto queimara-lhe as faces, cavando-as de sulcos fundos. Pobre
flor agreste e pobre mãe sem refrigério nem paz! Já lá vão dois anos, e nem uma
carta, nenhumas notícias do seu homem. O único refúgio dela é a criança, quase
moribunda. O nosso abade, quando agora a vê, diz compungidamente:
— O que tu foste e no que te tornaste,
mulher!
E abre o Breviário com uma grande
sombra no rosto vincado...
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Pesquisa e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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