6/06/2019

A miséria dum destino (Conto), de João Grave


A miséria dum destino

A vida era uma amargura naquela casa humilde, que uma doce ventura iluminara antigamente, em dias de que apenas restava a saudade. O marido, o Bernardo, fora para o Brasil, a bordo dum vapor que se sumira na imensidade das águas, sob um céu azul e tão calmo que escutara, impassível, os seus dolorosos queixumes de abandonada, e vira, sem uma cólera, as suas lágrimas calcinadoras: e Marta ficara só com o pequenino ainda de mama — que ela adormecia nos pobres braços magros com o carinho de de quem, no vasto mundo egoísta, não tem outro coração amigo — e que aconchegava, numa ânsia, do seio estéril, com afagos e ternuras que só as mães conhecem.

O destino talhara-a bem desgraçadamente para uma existência de sofrimento constante, crestara-lhe no peito a pura flor da esperança logo na manhã suave em que ela desabrochou. E fora tão invejada na mocidade pelas outras raparigas! Com a sua pureza de adolescente ingênua, a sua delicada beleza que lhe iluminava o rosto, os seus dedos tão ágeis quando, pelas tardes de descanso, à porta da granja teciam rendas, ninguém a via que a não admirasse. Se pelos crepúsculos de verão recolhia à herdade, atrás da boiada, com as roupas honestas e airosas cheirando ao feno dos prados atravessadose à seiva das vegetações esmagadas, parecia que atrás dos seus passos ficava um rastro luminoso — tão radiante é a juventude.

Entre os trigos louros, pelos outonos mansos e fartos, toucando o chapéu de grosseira palha com as rubras papoulas — que vistas de longe pareciam labaredas — lembrava uma dessas deusas da mitologia pagã, Ceres, por exemplo, visitando as messes maduras. As aves conheciam-na e rodeavam-na, chilreando, às horas de merenda; os arvoredos ofereciam-lhe as aromáticas e leves sombras refrigerantes, para as suas sestas. Como uma Eva moça e robusta — ainda Imaculada porque os seus lábios desconheciam o calor perturbante dos beijos e o seu coração ignorava os cuidados e as penas do amor — cantava sempre, durante as rudes lides agrícolas. Trabalhava toda a semana, ajudando os pais velhos na cultura das terras de pão — e as sementeiras que fazia prosperavam maravilhosamente, atulhando as arcas na abençoada estação das colheitas. Aos domingos, descalça, andava pelos pousios guardando o rebanho, como uma daquelas pastoras de que falam os livros sagrados: e a sua alma, formada na inocência rústica, na paz, na unção campestre, nos grandes ambientes desafogados, tinha subtilezas e precocidades de sentimento.

Nas romarias, em tardes triunfais de festa, pulando nos adros das ermidinhas claras, aninhadas como pombas entre árvores, era um regalo vê-la improvisar as desgarradas, ao som da viola:

Ai cantador, cantador,
Onde a tua ambição vai!
Quanto mais alto.se sobe,
Tanto mais de alto se cai!

E toca de roda, em nervosos ritmos, meneando as ancas, repenicando os dedos, batendo o pé e erguendo a fronte com orgulho. Os peitos arfavam de fadiga; as faces coravam como cerejas bicais em maio; e Marta, toda purpurejada como um cravo, era então soberbamente linda. O nosso abade, que era um santo, quando a surpreendia nestes momentos, fechava os olhos — para fugir à tentação, abria atrapalhadamente o seu Breviário e exclamava, numa voz cortada.de comoção:

— Eu te arrenego, inimigo de cachopa!

E o padre cura, um rapaz possante, de lábios grossos e olhar vivo, levado para a igreja para obedecer à vontade materna, esse, ao contemplá-la, benzia-se muito agitado.

Ora foi por este tempo que o Bernardo começou a namorá-la, esperando-a quando ela ia à fonte, de cântaro na ilharga, morena e cheia de graça. A princípio, Marta sorria-se com indiferença, levava o caso em brincadeira, ao encontrá-lo no seu caminho, todo encolhido de timidez. Ao bater das Trindades, ela passava, com um riso grácil na flor da boca, a bilha cheia de água ainda murmurosa do cantar das fontes onde fora colhida.

— Santas noites, Marta! — exclamava Bernardo.

— O Senhor te dê as mesmas! — respondia ela, naturalmente.

E parecia, na verdade, uma suave moça das Escrituras, com os seios a estourar de viço dentro do colete, as carnes regadas por um sangue rico. Mas, tantas vezes Bernardo a seguira, aparecendo-lhe pelos campos, pelas ruas da aldeia, pelas desfolhadas, nas noites de luar, que esta insistência começou a irritá-la.

— Boa! Tenho agora guardião... Era o que me faltava!

E Bernardo, sempre a mesma perturbação na voz:

— Bons dias, Marta.

— Deus te salve.

Nessa época, era ele o melhor tangedor de viola das redondezas. As cordas, sob os seus de dos, gemiam, choravam ou trinavam que era um enlevo de alma ouvi-las. Improvisava rapidamente, com uma mordacidade que não havia na povoação quem se lhe pudesse comparar — e todas as raparigas lhe queriam com mal contido ciúme. Nas descamizadelas, ao luar, quando Bernardo encontrava milho rei e ia abraçá-las, nem uma só se recusava e lhe fugia. Ele, contudo, não se inclinava para nenhuma, pairando com todas desprendidamente. Curvado sobre o braço da viola — eh! cachopas, vá de saltar sem repouso! E vinham logo as provocações que lhe estimulavam a vaidade:

Oh! tocador de viola

És o bem deste meu peito!...

Nos arraiais, nas feiras, com o largo chapeirão de feltro desabado sob a face satisfeita, tostada do bafo das soalheiras, a faixa vermelha enrolada à volta da cinta, de jaqueta ao ombro e um ramo de manjericão na orelha, era efetivamente um belo rapaz, de músculo resistente, peito largo, onde respiravam dois pulmões de aço, potentes e sadios, bebendo a largos haustos o ar puro das campinas. Cavava um dia inteiro sem que experimentasse a mais leve fadiga, e, quando os seus companheiros de trabalho recolhiam extenuados ao lar, de enxadas às costas, pachorrentos e tristes, de caras maceradas e negras da terra, ele, jovialmente, enchia de canções as azinhagas sonoras.

Se o não haviam de amar as moças!

No entanto, Marta desgostava-se intimamente, se o encontrava. O coração dava-lhe um rebate de perigo e todo o seu ser se retraía, num mal estar supremo. Começava a sobressaltá-la aquela perseguição constante.

Já os outros lhe dirigiam chufas, com desespero de se verem desdenhados:

— Oh! Marta, então agora sempre é certo?

— É certo o quê?

— Pois fala-se p'r’aí no teu derriço com o Bernardo da Bouça.

— Some-te, demo!

— Quer não! Talvez te não sirva?

— Ora!

Encolhia os ombros e seguia o seu caminho.

Um domingo, foi ela rezar uma novena à Senhora do Monte, extasiada na sua piedade cristã. Devia à Virgem, cheia de bondade e de misericórdia, o milagre de curar-lhe a mãe, a velha Rosária, dum quebranto que apanhara e que a tivera tolhidinha na cama, durante um mês, a gemer constantemente. Perto da capela surgiu o Bernardo, todo enleado.

— Deus te guarde, Marta.

Não se pôde conter que lhe não respondesse com azedume:

— Olha lá, eu dispenso cães de guarda, homem. Não tenhas medo que me perca...

— É que eu... — principiou ele.

— Deixemo-nos de endrôminas... Procura o teu rumo, que procurarei o meu.

E foi ajoelhar, muito contrita, alheada na sua crença, junto do altar, que resplandecia, na sua toalha de linho branco cheirando ainda ao sol do coradouro e nos seus vasos de açucenas orvalhadas. Ia orando e pensando. Afinal, o Bernardo nunca lhe fizera mal. Por que o tratava
com crueldade? Seria por ele lhe querer tanto, que assim lhe seguia a sombra por toda a parte? Ao levantar os olhos, encontrou a fronte da doce Mãe dos homens, que esplendia de inocência e de claridade, e pareceu-lhe ver naquela serenidade virginal um bom agouro. Do s.eu nicho, entre luzes e os brilhos das pratas, a Virgem abençoava-a, cobria-a toda da nuvem luminosa do seu perdão. Ao erguer-se, irradiava beleza. Bernardo lá estava, no mesmo sítio, parado, hirto, numa confusa vergonha; e mostrava-se tão desalentado e arrependido, que a compungiu.

— Então adeus, Marta!

— Então adeus, Bernardo.

— Se queres que te acompanhe... É para dizer-te uma coisa.

— Não quero nem deixo de querer... Se isso te dá agrado, eu não caminho com as tuas pernas — exclamou ela com brandura.

Ao anoitecer, já reluziam estrelas no céu alto e ainda eles conversavam; e foi assim que Marta começou a amá-lo com uma adoração infinita.

O casamento fez-se daí a poucos meses e com uma grande pompa. O opulento bragal que Marta levou! Os lençóis de linho cheiravam a maçãs camoesas, as suas saias e os seus lenços novos rescendiam a funcho e alfazema. Apareceu na igreja de grilhões de ouro que lhe cobriam todo o peito, e nos seus dedos tremiam brilhos de anéis. Foi o padre-cura que os casou; e, ao pegar na mão de Marta para a juntar para sempre à do noivo, subiu-lhe a cor à face branca e gorda. Ela rejubilava de contentamento, enquanto os sinos tocavam na gloriosa calmaria da manhã azul, manchada do voo das asas boêmias.

— Mais taful não se encontra por estes arredores! — murmuravam de todos os lados.

Durante as bodas, a viola de Bernardo não teve um momento de repouso, e repicava, mais alegremente do que nunca, na Caninha Verde e na Ribaldeira.

— Eh! raparigas! E uma, e duas, e vira de roda! — gritava ele.

Os meses de noivado foram duma doçura admirável; morriam e raiavam auroras, e jamais um fulgor de ventura deixou de se espelhar na casa em que viviam — uma sossegada casa branca, escondida entre latadas de limoeiros, onde cantavam ninhos e zumbiam enxames. Mas, de líeis veio o aborrecimento, a saciedade, o tédio.

Em certos instantes, Bernardo relembrava com nostalgia os tempos idos e lançava-lhe em rosto o seu desdém antigo.

— Então que queres? Se eu comecei a gostar de ti só mais tarde, naquele dia em que fui à capela!

— A gente encontra uma forca para cada canto! — exclamava ele.

E vieram os ralhos contínuos, as injúrias, as maldições.

— Bem me dizia o coração!

— O quê?

— Dizia-me isto, adivinhava tudo... Batia-lhe, arrastava-a pela casa, com ferocidade.

— Grande porca!...

Ela chorava e resignava-se à sua sorte. Quando nasceu o pequenino, Bernardo quis ir para o Brasil arranjar fortuna. Vendeu-lhe o grilhão, as arrecadas, uma leira que Marta herdara do pai e levou todo o dinheiro, deixando-a desamparada, sem uma sede de água.

— Não vás, meu rico homem!

— Vou! É uma cisma que se me meteu na cabeça e ninguém ma tira.

— Diz-me o coração que te não torno a ver.

— Tolices. Deixa-te de lamúrias!

E foi, por uma tarde triste. Ela ainda o acompanhou ao vapor, pranteando-se, agarrando-se a ele com fúria, mostrando-lhe a criança, que galrava descuidadamente, com a carinha rosada picada de covas.

— Ó Bernardo, olha este anjinho, que é teu filho!...

— Que preparo! Ora o diabo da mania! Partiu sem lhe dar um beijo; e Marta, com os olhos enevoados de lágrimas, viu sumir-se o navio, lançando grandes rolos de fumo e perdendo-se, por fim, no deserto das águas, lá muito ao longe, onde nem voavam gaivotas.

E agora, para ali se encontrava com o filho doente e mirradinho encostado ao peito débil onde o leite secara como um manancial maldito. Ainda cantava, embalando o enfermo:

Dorme, dorme meu menino,
o, ó, ó, ó...

Passava assim as noites; e tanto havia chorado, que o pranto queimara-lhe as faces, cavando-as de sulcos fundos. Pobre flor agreste e pobre mãe sem refrigério nem paz! Já lá vão dois anos, e nem uma carta, nenhumas notícias do seu homem. O único refúgio dela é a criança, quase moribunda. O nosso abade, quando agora a vê, diz compungidamente:

— O que tu foste e no que te tornaste, mulher!

E abre o Breviário com uma grande sombra no rosto vincado...

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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