A guitarra do Braz
À noite, mal a sineta da
fábrica dava o sinal de levantar o trabalho, o Braz enfiava à pressa, por cima
da blusa azul muito luzidia do uso, a jaqueta de pano, pegava no chapéu e a
correr, embrulhando nas mãos um cigarro, ia encostar-se ao parapeito da ponte
de Alcântara à espera da Gertrudes, que à mesma hora despegava do trabalho na
fábrica de tecidos em Santo Amaro. Os vadios do sítio, os trabalhadores, os
marujos, que ao escurecer se juntavam ali, já o conheciam, e, apenas o viam
desembocar na rua da Cruz, diziam uns para os outros, com ar de troça:
– Lá vem o gajo, e a gaja é
que não tarda uma loja de barbeiro!
Efetivamente a Gertrudes era
sempre das primeiras a passar as portas. Ao sair da fábrica separava-se das
companheiras, que aos grupos, rindo e conversando, se demoravam pelo caminho. O
Braz apenas a avistava embrulhada no seu xale de lã, saía-lhe ao encontro e ao
seu lado, muito preso da luz dos seus olhos meigos, da sua voz que lhe saía
arrastada da boca pequenina, acompanhava-a invariavelmente, todas as noites,
até à rua das Trinas, onde a Gertrudes o despedia pretextando – que o pai já estava
em casa, que era muito desconfiado, que nunca mais a deixaria voltar só da
fábrica, se os visse juntos. O Braz apertava-lhe as mãos e deixava-se ficar até
que ela desaparecia lá em cima, na esquina a rua. E voltava triste para casa,
repetindo as palavras que lhe ouvira.
Ela morava numa casa térrea ao
lado da fábrica de estamparia. Teria então os seus vinte anos, e todas as suas
recordações se prendiam àquela casa onde vivia desde criança com a avó, uma
santa mulher que lhe queria como às meninas dos seus próprios olhos! Dos pais nada
sabia, só se lembrava vaga e confusamente d‘uma cena terrível de lágrimas numa
desordem de policias, de gritos, de apitos e de soldados da municipal. Um
domingo, já depois de homem, tentou arrancar à avó essa história que ele pressentia
se ligava com o desaparecimento dos pais. Era uma tarde de dezembro. De quando
em quando a chuva caía em grossas bátegas lavando as pedras da calçada,
escoando-se pelas valetas. A intervalos aparecia o sol, um sol de inverno baixo
e frio mas muito claro que enchia de brilho as gotas, que compassadamente
continuavam a cair dos beirais dos telhados. Com os raios do sol o canário
animava-se dobrando o canto, e saltava contente de poleiro para poleiro na sua
gaiola de arame, suspensa da verga da única e estreita janela de peitoril que alumiava
toda a casa. Sentados à banca depois de jantar, o Braz olhava pela porta aberta
para a água que corria nas valetas e recordava-se com saudade do tempo em que,
garoto ainda, muito pequeno, antes de entrar para a fábrica, se divertia
improvisando barcos das folhas secas das árvores, e os seguia, metido na
enxurrada, até se sumirem pelas bocas esboroadas das sarjetas! A avó, do outro
lado da estreita mesa, com os cotovelos fincados sobre a toalha, lavada daquele
dia, com a cara rugosa apoiada entre as mãos enregeladas, se desviava os olhos
do neto era para os fixar na estampa da Virgem, pregada com quatro taxas na
parede fronteira e que de lá lhe sorria acenando com o menino Jesus
amoravelmente seguro contra o seio! Tinha feito do seu Braz um homem. Era
feliz. E essa alegria disfarçava a sua velhice com um véu de mocidade. Como na
rua passasse um pequeno chorando com o fato molhado muito unido ao corpo e
tolhido de frio chamasse pelo pai, pela mãe, numa voz tremelicante cortada
pelos soluços, o Braz, apiedando-se da desprotegida criança, exclamou:
– Coitado!
E em seguida encarando a avó,
acrescentou:
– Nunca me falou dos meus pais.
Ande, madrinha diga-me tudo; no fim de contas não sou um enjeitado.
A pobre velha empalideceu como
se lhe tivessem dado uma facada. Quis falar e não pôde; apertara-se-lhe um nó
na garganta. Estendeu os braços lançando-os ao pescoço do neto, e, com a cabeça
pendida sobre o próprio ombro, chorou por largo tempo num grande desafogo. O
Braz aflito ameigava-a; quando a viu mais sossegada, como se realmente tivesse
ouvido toda a história, perguntou baixo como quem se arreceia da resposta:
– Então foi o pai quem teve a
culpa?
– Sim, foi teu pai; a mãe não
o quis deixar. Lá foram ambos...
O Braz, mudando de tom e de
conversa, satisfeito esforçava-se por fazer esquecer à madrinha o que tanto a
atormentava. Sentia-se aliviado. Tendo vivido sempre no aconchego das saias da
avó, sem a convivência dum homem e trabalhando na fábrica ao lado de mulheres,
repugnava-lhe ao seu coração que fosse a sua própria mãe quem tivesse arrastado
a desgraça àquela casa. Como fora o pai, a coisa era outra. Só as mulheres eram
boas. A avó era uma santa, a Gertrudes um anjo. E esta maneira de pensar
explicava o seu caráter. Impressionável mas irresoluto, tímido e passivo,
deixava-se levar como uma criança. Assim se alguma vez se atrevia a insistir
com a namorada para a acompanhar a casa, depressa se convencia com qualquer
desculpa, a ponto de não saber mesmo a rua onde ela morava. Por isso nos dias
santos não a via. Deixava-se ficar por casa a pensar no seu amor. A avó, que
ignorava a paixão do neto, ralhava-lhe por ele não sair:
– És mesmo um bicho de mato!
E sem compreender que com os
seus sustos de mulher infeliz, as suas pieguices era ela a causa inconsciente
da vida que o Braz fazia, acrescentava:
– Não que nem sequer tens um
amigo.
O Braz não replicava, deixava-a
dizer.
Nessas ocasiões tinha desejos de
falar na Gertrudes; mas não se atrevia.
Havia meses que durava este
namoro. Uma noite, porém, ela não apareceu. As companheiras passaram aos
magotes pelas portas de Alcântara alegres e contentes, animando o sítio. O
Braz, com os olhos esgazeados, procurava em vão a Gertrudes. Pouco a pouco tudo
aquilo foi caindo numa grande solidão. De longe a longe parava um americano. O
condutor gritava – Alcântara. Um ou outro passageiro apeava-se. Em cima, nas
companhias da municipal e no quartel dos marinheiros, as cornetas tocavam
melancolicamente a silencio; somente nos cafés de Alcântara saíam em notas
estridentes os compassos de velhas valsas tocadas em pianos desafinados. O
Braz, fora de si, fez naquela noite, umas poucas de vezes, o caminho desde as
portas até à rua das Trinas. Só tarde é que entrou em casa. A avó esperava-o.
Pela primeira vez teve para ela um movimento rude. Ao outro dia foi com repugnância
para o trabalho ansioso pela noite para esperar a namorada no pouso do costume.
Tão infeliz como na véspera, decidiu ir na manhã seguinte à fábrica de Santo
Amaro indagar das companheiras o que era feito da sua Gertrudes. Era à hora do descanso.
Os garotos corriam na rua brincando uns com os outros; os homens conversavam às
portas das tavernas onde estavam afreguesados; as mulheres, aos grupos,
sentadas ao longo do passeio fronteiro à fábrica, aqueciam-se ao sol. Nos
degraus das Flamengas o Braz viu a Inês, uma rapariga com quem a Gertrudes
tinha ido um domingo à festa de Santo Amaro, aproximou-se dela e perguntou-lhe:
– Então a Gertrudes está doente?
– Doente? Isso sim! Na
terça-feira ao despedir-se de nós, da Rita e da Joana, disse-nos: Adeus
raparigas, vou ter tudo quanto me falta; nunca mais voltarei à fábrica, sejam
felizes. Perguntamos-lhe se ia casar. – Sim, vou casar... e desatou a rir
deitando a fugir ali pela ponte nova, que até parecia que levava o diabo no
corpo.
O Braz sentia fugir-lhe a
vista e pálido encostou-se à parede.
– Está a caçoar! Ela era lá capaz
de fazer tal.
– Tão verdade como eu estar
aqui; assim Deus me ajude.
– O pai rebenta-a, contestou o
Braz.
– Pai! Ora bem embaçado, pai foi
coisa que nunca teve. Chegue daqui à rua do Machadinho, vá à carvoaria e lá lhe
dirão quem mora defronte.
Nisto a sineta principiou a
badalar, e o largo portão da fábrica escancarou-se para dar passagem a toda
aquela gente. O Braz, mordendo os beiços, procurava represar as lágrimas que
lhe umedeciam os olhos. A Inês pegando nos restos do seu almoço, embrulhados num
lenço, disse-lhe:
– Adeus, Sr. Braz! Olhe que
não vale a pena!
E, juntando-se às companheiras,
apontou do portão para ele, que se deixara ficar sem saber o que havia de
fazer, como um idiota, a chorar!
***
A Ignez falara verdade; a
Gertrudes havia muito que não podia aturar o Braz. A sua natureza viva e
esperta não compreendia os longos silêncios apaixonados do namorado. Enganava-o
e agora... tinha desaparecido. Ele andava perdido como doido. Ao princípio
continuou a ir à fábrica, mas já não era o mesmo operário amigo de trabalhar.
Tudo lhe repugnava até mesmo a companhia da avo. Caíra numa tristeza sombria,
carrancuda e desesperante, que o levava a evitar tudo o que antes lhe era
prazer e alegria. Fugia de casa para andar como um vadio encostado pelas
esquinas. A avó sentia despedaçar-se-lhe o coração ao ver o seu neto tão diferente
do que era! Mas, como lhe queria muito, nem sequer se atrevia a fazer-lhe uma
pergunta com medo de o exasperar.
– Se eu fosse cega, diria que
mo tinham trocado! – pensava a infeliz à noite deitada na cama, de ouvido à escuta,
sem se mexer, a fingir que dormia, à espera do seu Braz! Ele recolhia tarde, e,
as mais das vezes, já nem ia à fábrica. A figura da Gertrudes fina, esbelta e
graciosa
perseguia-o, aparecia-lhe
constantemente desenhada na sua fantasia, boa e simples idealizada pela paixão!
Tinha alucinações. Como se a tivesse diante de si, estendia os braços para a matar
apertando-a contra o peito; mas ela fugia-lhe, e via-a então sumir-se lá ao
longe, rindo às gargalhadas, como no dia em que se despedira das companheiras!
Começou a beber e no vinho
afogava a sua dor. Com um grão na asa era uma risota, a alegria das tavernas.
Ligou-se com um faia, e numa noite em que o cartaxo lhe caiu na tristeza,
contou-lhe a triste história dos seus amores.
– Homessa! Queres a rapariga?
Anda comigo. Manda ao diabo a fábrica, apanha o bago que houver lá por casa,
que eu por esta... – e fez uma cruz com os dedos que chegou à boca, desviando
para o lado, num movimento rápido de língua, a ponta do cigarro – te juro que
em três dias a havemos de encontrar.
O Braz deu um pulo de
contente, pediu mais vinho e bebericando combinaram que naquela mesma madrugada
principiariam a bater Lisboa. Como a taverna fechou às onze horas da noite,
passaram para o café ao lado. O faia excitava-o com as histórias do bairro
alto, do arco do Bandeira e do marquês de Alegrete. Aquilo ali, em Alcântara,
era nada, comparado com tudo isso que ele conhecia a palmos. O dono do café
viu-se parvo para por fora os seus tardios fregueses. às duas da noite lá saíram
depois de muito empurrados. O Braz levou o amigo até à ponte. Sentaram-se na
soleira das grades da estátua de São João.
Era dali, – e apontava para o
lado – que eu esperava todas as noites a Gertrudes! E como se deixasse
enternecer, o outro enfurecido gritou-lhe:
– Olé! Lá maricas é que me não
serves. Se és um homem bem vai a cantiga. Anda, despacha-te.
É ir buscar o bago, que eu
aqui te espero. Se não voltas, Amanhã te ensinarei; e de pé, diante dele, dando
um piparote no chapéu, fazendo uma escovinha, fez com a mão direita o gesto convincente
de quem espeta uma navalha.
– Está dito; se me demorar é
que a avó está acordada.
– Não tem duvida; daqui não
arredo sem ti.
À medida que o Braz se ia
aproximando de casa, dissipavam-se-lhe os vapores da excitação alcoólica; caía
em si.
Quando chegou à porta, abriu-a
mansamente. Ao cerrá-la, pareceu-lhe que a avó se mexera na cama, voltou-se, e imóvel,
suspendendo a respiração, certificou-se que se enganara. Havia em volta de si
um silencio completo. Quis caminhar direito à gaveta da banca, onde sabia que
estavam guardadas as economias de quinze anos de trabalho; mas, maquinalmente,
entrou na sua alcova, que um simples tabique separava da avó. Vestido como
estava estendeu-se sobre a cama. Tinha medo. Medo do respirar sereno e sossegado
daquela pobre velha que tanto o estremecia! Não, decididamente não faria o que
tinha prometido. Iria acordar a madrinha; desabafaria com ela; voltaria à fábrica.
Que importava a Gertrudes? Mas, a este nome, acudiu-lhe a promessa que o outro
lhe fizera de a tornar a ver. Levantou-se, e cautelosamente, foi direito à banca.
Com um puxão seco arrombou a gaveta, e do pé de meia, dissimulado a um canto,
tirou uma mancheia de libras. De vagar, como tinha entrado, saiu de casa.
Todavia os passos do neto acordaram a avó, que dum pulo saltou abaixo da cama,
cobrindo-se apressadamente com a saia, que lhe servia de cobertor, e da porta,
que o Braz deixara aberta, reconheceu-o à claridade indecisa da manhã, que
vinha rompendo, ainda a correr, olhando para trás como um ladrão!
Ansiada, tentou chamá-lo. Não
pôde. As pernas fraquejaram-lhe, soltou um gemido e caiu redonda no chão, para
trás, estatelada como morta. Quando voltou a si chorava amargamente e na gaiola
de arame, suspensa da verga da janela, o canário repenicava a sua cantiga
favorita, saudando alegremente a madrugada!
***
Decorreram três anos. Durante
esse tempo não houve miséria que a avó do Braz não sofresse. No meio de todas
as suas desgraças só uma esperança a amparava. É que ele, mais dia, menos dia
havia de voltar. Rogava a Deus que lhe desse forças para viver até então.
Perdoar-lhe-ia e morreria contente, tendo-o a seu lado para lhe fechar os
olhos! E nesta esperança que uma fé profunda alimentava, aturava todos os
trabalhos calando os sofrimentos da sua penosa existência. Como o Braz não
tinha levado todo o dinheiro, os primeiros meses de abandono passaram sem
maiores privações. No dia porém em que ela teve de trocar a última moeda de
prata, pareceu-lhe que o balcão da tenda, sobre o qual o caixeiro experimentou
o toque dos cinco tostões, era o único obstáculo que a impedia de cair num
buraco muito fundo, que se abria diante dos seus olhos! Velha como estava difícil
lhe foi encontrar trabalho. Ao cabo de muito tempo, depois de muito procurar,
de ter empenhado um a um os tarecos da casa, conservando apenas do tudo quanto
antes possuía, a cama do seu Braz e a enxerga em que ela agora dormia sobre o
chão; depois de ter passado fome, uma caridosa família, mais por dó, ajustou-a
aos dias. Como lhe davam de comer, o pouco dinheiro que ganhava chegava-lhe à justa
para pagar a renda da casa. Ela bem sabia que lhe não seria difícil encontrar
uma outra mais pequena, mais barata e até mais perto das senhoras que servia;
mas era tal o apego que tinha à casa onde sempre vivera com o seu neto, que
mesmo agora, nua como estava, despida de todos os trastes, que eram outras
tantas recordações de dias bem mais felizes, lhe era uma consolação viver entre
aquelas paredes, testemunhas consoladoras desse tempo, que um pressentimento
muito intimo lhe segredava se havia de repetir ainda! E com os raros cabelos já
de todo brancos, cansada de trabalhos com que mal podia, magra, tão magra que a
pele encarquilhada mais parecia encobrir um esqueleto que vestir um corpo vivo,
se se não deixava morrer sossegadamente assim como quem adormece ao cabo dum
dia de longa fadiga, era que essa esperança nem sequer um instante a
abandonava!
No entretanto o Braz, dominado
pelo faia, que o levara a roubar a avó, sem nunca desesperar de encontrar a
Gertrudes, foi-se pouco a pouco habituando à vida desregrada dos fadistas com
que convivia. Aprendera a tocar guitarra tornando-se completo no gênero, e o
seu nome depressa ganhou celebridade no bairro alto, a ponto de nas tavernas e
nos cafés baratos se discutir apaixonadamente se era ele se o Calcinhas que
melhor tocava o fado corrido. Nas esperas de touros, à noite, no Campo Pequeno,
iluminado pelas luzes das lanternas das tipoias, que num giro intermitente lhe
davam o aspeto duma campina enorme, coberta de pirilampos, era sempre em volta
dele que se reunia a mais fina sociedade. E era dali que os rapazes do Chiado o
levavam para as suas ceias de estroinas.
Cantava muito bem, e tinha
como poucos, o dom de improvisar. Os seus fados, sempre tristes, ajustavam-se numa
grande harmonia com o soluçar dolorido da sua guitarra. Quando tocava chegava
mesmo a esquecer a Gertrudes, ou antes afigurava-se-lhe que saciava a sua
paixão, e, cerrando os olhos, cuidava vê-la, ao seu lado, embebida na sua alma
que lhe saía em versos, as mais das vezes errados! Era a guitarra que o
consolava de todas as suas penas. Se se lembrava da avó, da vida tranquila que
passara ao seu lado, agarrava na guitarra e principiava a cantar. Às vezes,
perseguido pelo remorso, tinha vontade de ir ter com a madrinha, ou pelo menos
ir até Alcântara, procurar saber o que seria feito dela; mas acovardava-se com
medo das lágrimas da velha, e demais sentia que já não tinha forças de
abandonar a vida aventurosa em que se lançara. Aquilo também havia de durar
pouco, andava adoentado e sorria-lhe a ideia de morrer um dia, de repente, no
meio da fadistagem! Pouco a pouco, desprezando todas as doenças que contraíra,
foi caindo num grande abatimento. Emagrecera muito e sentia nas pernas uma invencível
fraqueza. Escondia dos companheiros o seu estado, e, para os acompanhar, fazia
esforços terríveis.
Uma noite de grande fado no
Dáfundo, quando se quis levantar da cadeira onde toda a noite estivera a tocar,
não pôde; era como se lhe pesasse sobre os joelhos o peso de cem arrobas. Para
o meterem na tipoia que o trouxe para Lisboa, foi preciso pegarem-lhe ao colo.
No dia seguinte levaram-n’o para o hospital. Atacado por uma paraplegia, saiu
de lá ao fim de três meses numa cadeira de rodas, que com o produto duma
subscrição os companheiros lhe compraram. Durante todo o tempo que esteve no
hospital pensava muito na madrinha; e um dia em que o João, o toureiro, o foi
visitar, pediu-lhe para ir saber novas dela. À proporção que se julgava
perdido, renasciam no seu coração todos os afetos carinhosos pela avó. Recomendou-lhe
que, se porventura falasse com ela, lhe não dissesse o estado em que se achava;
mas que a prevenisse que, dentro em breve, voltaria a ir viver para junto dela,
de onde nunca devia ter saído! acrescentava com os olhos de doente languidos e umedecidos!
Quando o medico lhe anunciou que lhe ia dar alta, mandou chamar o João.
– À manhã saiu daqui; quero ir
direito para casa da avó. Levas-me?
– Decidido.
– Entrouxa a roupa que eu
tiver no quarto do Caretas, e manda-ma hoje mesmo para Alcântara.
A guitarra traz-ma. Apenas
chegue à rua quero ver se ainda sei tocar. A caminhada é comprida; mais que a
um moco de cego preciso de te distrair. Irei a tocar por essa baixa fora!
– Dentro em pouco estarás
fino; a tua doença agora é o hospital. Fora daqui, verás como as pernas te principiam
a dançar.
***
A avó esperava ansiosamente o
neto. O João, ao anunciar-lhe a sua vinda, escondera-lhe a gravidade da doença.
– Uma fraqueza nas pernas, que
há de passar; é questão de dias.
Também que lhe importava a ela;
ia vê-lo, e isso era o essencial; não andava – melhor! Nunca mais lhe fugiria!
Quando porém ele entrou,
sentado na cadeira de rodas, impelida pelo toureiro, transfigurado pela doença,
pálido, com a cara coberta de pústulas, um bigodinho petulantemente levantado
dos lados; o cabelo muito rareado, todo puxado para diante, aparecendo por
debaixo do chapéu inclinado para o lado, de aba direita e muito larga com a
copa muito baixa; a quinzena muito esticada e curta; as calças apertadas
abrindo em baixo em boca de sino; abraçado à sua guitarra, a avó sentiu um
baque no coração. – Como ele mudara! Nem parecia o mesmo. – Diante do toureiro
conteve-se; mas, apenas ele saiu, caiu de joelhos em frente da cadeira de
rodas, e agarrando-se às mãos do neto principiou a fazer-lhe mil perguntas sem
nem sequer dar tempo a ouvir uma resposta. O Braz sossegava-a – que nunca mais
voltaria a abandoná-la. E, informado do novo modo de vida que a madrinha agora
levava, acrescentou:
– Enquanto me não curo, aqui
estarei metido. Depois também hei de trabalhar.
– Ficas tão só! Eu passo todos
os dias fora, em casa das minhas benfeitoras.
– Tenho a minha guitarra;
cantarei ao desafio com o canário.
– O canário?... – e a velha
apontou, olhando com tristeza para a gaiola de arame, ainda suspensa da verga
da janela, mas que uma enorme teia de aranha, muito suja de poeira envolvia
agora assim como um fumo de luto com que a tivessem coberto!
***
Nas visitas que o toureiro
fazia ao Braz, fácil lhe foi conhecer que não era a abundancia e a fartura o
que mais havia naquela casa. Arranjou então que ele fosse às noites tocar para
uma taverna da rua de Alexandre Herculano, para servir de chamariz aos fregueses.
O taverneiro fornecia-lhe em paga o almoço e o jantar de cada dia. Ao princípio
era a própria avó quem, ao recolher do trabalho, o conduzia até lá. Curvada, já
meio trôpega, tinha de parar de quando em quando para vencer as desigualdades
da calçada, para evitar os solavancos, impelindo a cadeira de rodas docemente,
como se levasse diante de si um carrinho com uma criança adormecida! O Braz afligia-se,
sentindo atrás de si a respiração ofegante da avó; conhecia o horror que ela
tinha à taverna, o sacrifício que fazia
em ser ela própria quem lá o levava; mas que fazer, se a taverna era agora o
seu ganha pão! Felizmente o taverneiro, descobrindo na guitarra do Braz uma
verdadeira mina para a sua casa, acabou por o mandar buscar todas as noites por
um garoto que o servia. A doença se não progredia também não dava esperanças de
cura. Todavia o Braz de cada vez tocava melhor; dir-se-ia que toda a força,
todo o movimento que a paralisia lhe roubara, se lhe concentrara nos braços e
nas mãos. Comprimia e feria as cordas da sua querida guitarra com tal força e
justeza, que as notas saltavam-lhe dos dedos vibrantes de nitidez. As horas
passadas na taverna alegravam-n’o, sem contudo conseguirem roubar ao seu canto
a feição melancólica que lhe era predominante. Quando a taverna regurgitava de fregueses,
e se armava uma desordem, o taverneiro, pela banda de trás do balcão, fazia um
sinal ao Braz para apaziguar a baralha. Então, acompanhando-se na guitarra, o
Braz levantava a sua voz dolente; e, pouco a pouco, como por encanto, ao burburinho
tumultuoso de muitas vozes falando a um tempo, sucedia o silencio de quem
escuta. Em volta dele fazia-se um circulo que os mais afastados procuravam
romper para melhor o ouvir. Serenada a tempestade, calava o canto; e, com a
cabeça pendida sobre o braço da guitarra, executava ainda durante alguns
minutos variações duma grande dificuldade sobre o mesmo acompanhamento. Uma
noite em que ele, muito rodeado, cantava a glosa do seu fado favorito:
Ainda depois de enterrado
Debaixo do frio chão,
Teu nome escrito acharás
No meu terno coração.
dando a cada verso a expressão
da mais infinda tristeza, entrou na taverna uma mulher calçada com botas novas,
de biqueiras de polimento, pespontadas a branco, com tacões muito altos, arrastando
a comprida cauda dum vestido esfarrapado, com um lenço de seda amarelo, já muito
desbotado, na cabeça, um xale preto, de velho merino, traçado por debaixo do
braço, deixando a descoberto o seio, mal resguardado pela camisa. Dirigiu-se ao
balcão, e, batendo fortemente com a mão espalmada, pediu dois decilitros, que
bebeu dum só trago. O Braz em voz gemente, acabava a última décima:
..............................
Porque a morte, nem o fado
Riscam teu nome gravado
No meu terno coração!
quando os seus olhos,
marejados pela comoção que sempre sentia ao repetir aquele fado, se encontraram
com os dessa mulher que o fitava indiferente.
Angustiado, abafou com ambas
as mãos as vibrações das cordas, fez um esforço enorme para se levantar da
cadeira a que a doença o prendia; e, impotente, soltou um grito dilacerante, ao
mesmo tempo que fazia voar em estilhas a guitarra, quebrando-a de encontro ao
braço da sua cadeira de rodas!
Levantou-se em toda a taverna
um grande clamor. O taverneiro, vendo o Braz meio desfalecido, desviou os fregueses:
– Arrumem-se homens; deixem-no
respirar. Isto foi coisa que lhe deu. E chegava-lhe ao nariz uma botija de
vinagre.
E ela, a Gertrudes, sem
reconhecer no fadista estropiado o seu namorado de outro tempo, teve apenas
esta exclamação:
– Olha o raio do homem que deu
cabo da sanfona!
E saiu insensível, tomando
pela borda do canteiro, em cujas águas se refletia a sua imagem, repetindo numa
toada alegre os versos que lhe tinham ficado:
Porque a morte, nem o fado
Riscam teu nome gravado
No meu terno coração!
A lua enchia de claridade o vale,
recortando lá em cima, no cume da montanha, os jazigos e os ciprestes dos
Prazeres. Do fundo lodoso do canteiro, prateado àquela hora, subiam vapores fétidos,
pestilentes, nauseabundos, como se realmente as águas do rio, em lugar de
contornar lá ao longe a montanha coroada pelo cemitério, tivessem as suas
nascentes ali, na decomposição dos cadáveres duma cidade inteira!
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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