A Figa de Azeviche
CAPÍTULO 1
Tome fôlego,
leitor!... Olhe que ainda temos a subir mais dois lanços de escada. Até que
afinal!... Faça favor de entrar.
Não se
canse; estão à vista todas as riquezas do inquilino. Ora diga: não é verdade
estar lá por dentro a perguntar: "Como se pode viver aqui?!..."
Pois pode,
sim senhor. Vive-se aqui; vive-se ainda em muito pior morada! A míngua que
nota, seria o supérfluo para milhares de famílias.
Analisemos
estas águas-furtadas.
Quatro
paredes mal caiadas, tendo por únicos adornos uma imagem colorida da Senhora
das Dores, a vera efígie do Senhor Jesus de Matosinhos e a patente que prova
ser Maria Rosa da Silva irmã da Celestial Ordem Terceira da Santíssima Trindade
— todas três em caixilhos de vinhático, com cantos de pau-preto. Além destes caixilhos,
não se veem senão pregos, muitos pregos: são os guarda-roupas dos pobres. A um
canto, uma cama de ferro; aos pés da cama uma cadeira; entre esta e o canto
fronteiro um lavatório, também de ferro, com uma bacia rachada e um jarro
esbeiçado. Daquele lado nada mais se vê, nem há espaço para mais coisa alguma.
Do lado
oposto ocupa o centro uma cômoda, entre duas cadeiras. Depois de abertas as
gavetas daquela cômoda, não há memória de terem elas consentido que as
fechassem, sem oporem vigorosa resistência! Felizmente, as donas já lhes
conhecem a balda, que não passa de rabugem da idade, e sabem que é preciso
empurrá-las, primeiro de um lado e depois do outro. Praticando-se esta operação
três ou quatro vezes, é raro não se deixarem convencer.
Junte-se a
isto uma mesa de pinho, com uma gaveta que contém uma velha toalha de mesa,
alguns garfos e facas, com os cabos amarelos e rachados, quatro ou cinco côdeas
e muitas migalhas de broa; veja-se o que encerra aquele armário encravado na
parede e caiado de branco — porém, quase que posso afirmar que encerra meia
dúzia de pratos, dois ou três copos de quarteirão e duas canecas de quartilho —
e está feito o inventário deste pequeno aposento, alumiado por um postigo que
dá sobre o telhado, e pela luz que côa por entre as telhas, que, além da luz,
dão passagem ao calor no Verão, às nortadas no Inverno, à água sempre que
chove.
Não há mais
nada?... vejamos bem... Decididamente, não há.
Passemos da
morada aos moradores.
Ela aqui
está, a Sra. Maria Rosa da Silva, viúva de um honrado municipal vítima das
consequências do serviço de patrulha, feito numa noite de Dezembro na Rua do
Wellesley.
A Sra. Maria
tem uma destas caras que não enganam; é uma santa! Solteira-era o descanso dos
pais e a segunda mãe dos irmãos; casada — era a confidente e a enfermeira do
marido; viúva — é o anjo que vela pela filha. Pode escrever-se-lhe a vida em
duas palavras: abnegação e sofrimento. A Sra. Maria, enquanto pôde, nunca
consentiu que a filha fosse sozinha para casa da modista; infelizmente, há um
ano, quebrou uma perna, tem dificuldade em andar e é isso hoje, talvez, o que
mais a amofina. Não que ele, também, por esse mundo, há cada malvado mais
atrevido!... E depois, a sua Rosa é... é tão bonita!
— Valha-me
Deus!... — diz a pobre velha, quando pensa nisso.
E a Rosa?...
Que é dela, a Rosa!... Escute...
Ela aí sobe
a escada; ela aí está! — A sua bênção, minha mãe. — Deus te abençoe, filha.
Que formosa
rapariga! Eu, por mim, não sou dos tais malvados atrevidos, mas confesso que
por um olhar daquelas duas amostras do céu, era capaz de fazer asneiras como
qualquer rapaz de vinte anos!
Não que eu
nunca vi coisa assim! Se ela até aos doze anos nunca deixou de ir de anjinho em
todas as procissões!...
Já se viu
cabelo louro como aquele?... Onde há outros olhos como os dela?... E aquelas
duas covinhas das faces, onde os risos e os amores jogam às escondidas?... E a
cinta, capaz de fazer morrer de inveja a vespa mais espartilhada?!... E...
Basta ou fico até amanhã a enumerar-lhe as perfeições.
A Rosa,
porém, tem hoje um não sei quê, que a torna menos bonita. Que será?... Sigamos
o olhar da mãe, que logo descobrirá o que é. É a ligeira ruga traçada entre as
sobrancelhas; é uma vaga expressão de luta interna; é um certo ar de
desassossego, que lhe não é próprio!
Rosa dobrou
e pousou a capa sobre a cama; tirou a manta azul da cabeça; alisou o formoso
cabelo diante de um mesquinho espelho, destes espelhos de papelão, forrado de
papel encarnado, e sentou-se, deixando pender os braços com gesto de desânimo.
A Sra. Maria, depois de lhe interrogar debalde o rosto, aproximou-se dela,
agarrou-lhe a cabeça com as mãos, e, cravando os olhos nos — de Rosa,
perguntou-lhe com uma destas inflexões de voz, que são segredo privativo das
mães:
— Tu que
tens?... Tu andas doente?
— A mãe está
a brincar! respondeu a filha, desviando os olhos. — Eu que hei de ter?... A mim
que me falta?
Havia tanta
amargura envolta nesta última frase, e tão manifesta, apesar do sorriso que a
acompanhou, que a velha não pôde reprimir um gesto de aflição.
— Não!... Tu
tens alguma coisa que te aflige!... Ora diz-me o que tens, Rosa! — insistiu a
pobre mãe, ajoelhando, para melhor ver o rosto da jovem.
— Olhem que
cisma!... — respondeu esta, forçando os lábios a sorrir. — Eu que hei de ter?...
Se me calo cinco minutos, logo a mãe começa a imaginar que estou doente!... Não
tenho nada... Acredite... — continuou ela.
— Bem... Não
tens confiança em mim... Paciência! — replicou a mãe, erguendo-se.
— E a mãe a
dar-lhe! — observou Rosa, com visível impaciência.
Aqui para
nós, o maior defeito da rapariga era estar perdidinha com mimo. Mas, como não
havia ela de o ter, se a mãe não tinha outra e ela... era tão bonita?!...
CAPÍTULO 2
Duas horas
depois, descia Rosa a Calçada dos Clérigos e dava lugar ao seguinte diálogo:
— Acredite,
Senhor Conselheiro. Vossa excelência não tem estudado, como eu, o viver desta
gente. São felizes, creia... Mais felizes do que eu, mais felizes do que vossa excelência!...
Ora veja aquela pequena que ali vai... Veja que riso aquele, que alegria!...
Uma manta, uma capa, um vestidinho de chita, uma botinha que lhe estreita o pé,
um conversado... Aí tem o necessário para ela viver mais feliz, com oito
vinténs por dia, do que a filha de vossa excelência, a quem sobejam todas as
comodidades da vida!... Não tenha pena desta gente, Senhor Conselheiro!... São
felizes, creia!
Isto dizia
um sujeito grave, que se penteia para ser deputado, a outro que já o foi, e
que, julgando-se ainda na câmara, lamentava, da boca para fora, que se não
pudesse melhorar o viver das camadas
inferiores, bordão estafado de quase todas essas velhas raposas, que a
indiferença dos eleitores parece mandar a cortes... justificar essa
indiferença.
Se não
causasse nojo, faria morrer de riso a filosofia rançosa destes vendedores de
água chilra.
Então com
que, é feliz aquela rapariga? Tem a manta, a capa, o vestido, os oito vinténs,
o conversado talvez... logo é feliz?!... É feliz, hem?... Então ali não há
aspirações, não há faculdade de comparar, não há inveja; há apenas a
necessidade do pão de cada dia, o desejo de que hoje seja igual a ontem e
amanhã igual a hoje?!... Valha-te Deus, homem!... Que círculo te escolherá para
o representares?!...
Há tudo
isso, míope! E como poderia deixar de haver? Como, se tu, homem grave por fora,
mas corrupto por dentro, és o primeiro a dizer-lhe, quando ninguém te pode
ouvir, que Deus a talhou para duquesa, que não há pele mais fina, mão mais
aristocrática, pé mais distinto, do que a pele, a mão e o pé que fazem o
desespero de todas as outras mulheres?... Como, se, além de ti, lho dizem o
janota, o estudante travesso, o sargento hiperbólico e — o mais perigoso de
todos! — o caixeiro que lhe vende o retrós, esse Lovelace de chinelo de liga e
pena na orelha, que lhe deslumbra a vista com um arco-íris de peças de seda e
lhe ajuda a combinar a cor que melhor se aliaria ao preto ou ao louro dos
cabelos, se ela pudesse trajar sedas?!...
Ora anda cá,
psicologista de lareira... Fala-me sério!... Crês que entre essa aluvião de
raparigas pobres, que trabalham para raparigas ricas, haverá uma tão
indiferente à vaidade, tão despida de curiosidade, que, ao ver-se só entre as quatro
paredes do seu quarto, depois de dar o último ponto num vestido de seda, tenha
resistido à tentação de experimentar em si esse vestido?!... E, se a sua boa ou
má sorte quis que ela fosse bela e o espelho lhe disser que, assim vestida, é
mil vezes mais bonita, será para estranhar que a pobre criança diga:
"Assim... quem não há de ser amada, quem não há de ser formosa?!"Custará
a compreender que ao enfiar de novo o modesto vestido de chita, o suspiro, que
não pode conter, seja a primeira manifestação de uma surda inveja, o gérmen de
outras paixões más, produzidas por aquela?!... Valha-nos Deus! Compreende-se...
Mas... ainda
eu agora reparo!... Eu estou pior do que o tal candidato a deputado!... Olha
que maçada eu preguei ao leitor!
Perdão, amigo...
Era preciso. Eu só tive em vista i-lo guiando, insensivelmente, para onde me
convém. Sem este longo aranzel, ficávamos ambos como a Sra. Maria, pasmados
diante da Rosita, sem sabermos o mal de que ela sofre, e tentando em vão
descobri-lo.
A Rosa sofria
de — que nome tão feio! — sofria de... inveja!... Perdão! Não era bem inveja o
mal dela; era um desejo irresistível de ir passear às tardes, reclinada nas
almofadas de um landau, encadernada
em moire e veludo, e ver, com os seus
olhos, se o Teatro de S. João, mirado de um camarote da segunda ordem, produzia
melhor efeito do que visto das varandas, de onde ela se lembrava vagamente de o
ter visto, havia muito tempo, uma vez que o pai estava de guarda ao teatro, e a
levara a ela e à mãe a ver "A Degolação dos Inocentes".
Este desejo,
este aspirar ao impossível, não poderia ela explicar como germinara. Tinha
aparecido espontaneamente, a contrastar com a candura e modéstia que lhe
ornavam a alma, como estas parasitas que o zéfiro maldoso se compraz em deixar
cair, na passagem, entre as mimosas plantas dos vergéis e que fazem raivar o
horticultor.
O caso era
que Rosa sentia em si o fermento de um mal, que tem feito tropeçar e cair
milhares de anjos cândidos e puros, como ela. Havia cerca de um mês, começara a
perder as cores e a alegria, e visões, a um tempo tristes e risonhas, a
perseguiam em sonhos, que lhe traziam aos lábios palavras sem nexo, em que o
ouvido atento da mãe buscava em vão descobrir o segredo da filha.
A leitora, a
quem a sua posição independente torna, por assim dizer, fácil a santa tarefa
materna, e que, apesar disso, estremece ao notar a insistência com que qualquer
mancebo lhe contempla as janelas e a segue, quando sai em companhia de uma
filha jovem e formosa, compreende decerto as torturas da pobre mulher, obrigada
a afastar de si e a entregar ao próprio arbítrio uma filha, diante da qual
surgem, a cada passo, todas as tentações do luxo, todas as ciladas de um amor
que o coração, aos dezessete anos, considera sempre puro e sincero.
Rosa, além
das aspirações que já lhe conhecemos, tinha encontrado um tentador perigoso na
pessoa do Sr. Augusto, caixeiro de uma loja de objetos da moda, mimoso alfenim
dos arredores de Braga, proprietário de duas rosadas faces e senhor de
luxuriante floresta de cabelos pretos, atravessada por um carreiro, aberto a
pente, a começar na testa e a findar na cova-do-ladrão.
Não havia em
toda a rua outro caixeiro, que lhe botasse água às mãos na meiguice do gesto,
na elegância com que cortava uma peça de seda, ameaçando cortar também os dedos
mimosos da freguesa. No que ele então era inexcedível, era no rolar dos olhos e
nas lisonjas alambicadas, a que o uso do v dava subido realce. Rosa — e mais
uma dúzia de Rosas — era capaz de se esquecer horas inteiras a ouvi-lo, e posso
asseverar que nenhum bem lhe vinha de tão agradável conversa.
No dia em
que o leitor me acompanhou a casa da Sra. Maria, não sei o que se tinha passado
entre ela e o Sr. Augusto; o que sei é que a rapariga trazia o ânimo em rija
peleja entre a indignação e a vontade de perdoar. Conhecia-se que lhe faltava o
ar, que lhe tardava ver-se outra vez longe daquele ninho de amor materno, cujo
sossego não convinha ao agitado espírito da rapariga. Engoliu o bocado à
pressa, como se costuma dizer, pretextou umas compras de que a incumbira a
mestra, e saiu deixando a pobre velha a braços com a incerteza e o receio.
CAPÍTULO 3
São nove
horas da noite. Rosa, sentada ao pé do pequeno postigo das águas-furtadas, com
os formosos cabelos louros soltos em vagas pelas costas abaixo, contempla,
cismando, a Lua e as estrelas. O vinco entre as sobrancelhas, de fundo que
está, dá-lhe ao rosto uma expressão de desafio ao mundo, à sorte, ao Criador
talvez, daqueles mundos de luz que rolam no espaço; o peito arfa agitado; as
asas do nariz fremem e dilatam-se; os lábios cerram-se teimosos, desenhando aos
cantos duas rugas de supremo desdém e íntima amargura. Rosa sofre, escutando
assustada e ao mesmo tempo curiosa a voz irônica e incisiva do espírito do mal,
que lhe está pintando em ridícula caricatura o porvir que a espera, sob a forma
resignada e prosaica da santa da mãe, que vai erguendo preces a Deus e deixando
cair as malhas da meia de algodão azul que está fazendo.
— Olha, olha
para tua mãe — diz o delegado do Inferno. — Olha para ela!... Não procures a
tua estrela no espaço,!... Os pobres não têm estrela; têm sina... Tira os olhos
do céu, volvemos para ali, que só ali acharás resposta à pergunta. Estuda bem
tua mãe e ficarás conhecendo o futuro: miséria, um marido que talvez te
maltrate, filhos que te peçam pão, Primavera sem flores, Verão sem fruto,
Outono sem folhas, Inverno sem calor!... Trabalha, sofre, sacrifica-te e morre!...
Anda, rapariga!... A quem assim faz não recusa Deus, ao cabo de uma vida
despida de alegrias, um lugar na vala comum e... talvez que um cantinho no Céu!...
E o monstro ria,
revolvendo o coração da pobre criança!
O calor, que
tornava quase inabitável o aposento, o ruído das ruas que o vento lhe trazia, e
a luta íntima atuaram, finalmente, tão de chofre nos nervos de Rosa, que as
lágrimas saltaram-lhe, ardentes, dos olhos abrasados, e toda aquela ânsia do
seio se exalou em soluços.
A Sra. Maria,
dando fé do estado da filha, interrompeu um padre-nosso, tirou apressadamente a
linha do gancho, pousou a meia sem se dar ao trabalho de espetar as agulhas no
novelo, e correu — coitada! nem correr podia! — para junto da filha.
— Rosa,
Rosa! — dizia ela, sacudindo carinhosamente o braço da jovem. — Rosa, tu que
tens?... Ora fala, anda!... diz-me o que tens! — insistia ela, que já então
chorava tanto como a filha. — Diz-me o que sentes, Rosinha!... Ora não sejas
ruim!... Fala, menina... Então?...
Rosa
continuou a chorar sem proferir palavra. A mãe, reconhecendo a inutilidade — dos
seus rogos, contemplava-a, chorando, com as mãos apertadas uma na outra, o
olhar assustado, e a mente cheia de sinistras hipóteses.
Pouco a
pouco a jovem foi — sossegando, e àquela intempestiva explosão de pranto
sucedeu o enleio, filho da necessidade de a explicar à mãe.
— Estás
melhor? — perguntou esta, vendo-a mais sossegada.
— Eu não
sinto nada — balbuciou a jovem.
— Então
por que choravas?
— Eu sei lá,
minha mãe! — replicou a filha. — Acho que adormeci... e sonhei... e acordei a
chorar...
— Havia de
ser isso... Foi talvez o ar da noite... — disse a Sra. Maria, fingindo
acreditar a desculpa. — É melhor ires-te deitar... Vai-te deitar, vai... — continuou
ela.
Rosa deu-lhe
um beijo, despiu-se e deitou-se. A mãe, que se sentara de novo a trabalhar,
ouviu-lhe ainda os suspiros por mais de uma hora, até que, chegando-se à cama,
pé ante pé, conheceu que ela adormecera e veio sentar-se outra vez a fazer
meia.
Nunca o
padre-nosso foi rezado com mais unção, embora cortado pelas perguntas que
aquele atribulado coração materno formulava mentalmente!
— Que terá
ela?... Alguma zanga com a mestra?... Se fosse isso, tinha-mo dito... Algum
mexerico das companheiras?... Também mo dizia... Andará a chocar alguma doença?...
Mas ela não se queixa... Será namorico?
A esta
última pergunta, a santa mulher ficou sem pinga de sangue.
— Pois não é
outra coisa!... Mas com quem será?... Valha-me Deus!... E esta minha perna, que
me não deixa sair!... Ó minha Mãe Santíssima! Pela vossa dor vos peço que não
desampareis a minha rica filha!...
E a
salve-rainha foi imediatamente recitada pela aflita velhinha. Ainda não tinha
acabado a oração, quando ouviu palavras entrecortadas, proferidas em sonho pela
filha. Ergueu-se, e, caminhando sem fazer barulho, sentou-se na beira da cama
com o ouvido atento e o coração a bater apressado.
Ao cabo de
alguns instantes, a jovem mexeu os braços e murmurou:
— Cale-se,
Sr. Augusto!... Não torne a dizer isso!... Se a minha mãe soubesse...
E calou-se.
Pouco depois continuou:
— Não quero,
não preciso dos seus favores!
Bem se
demorou a mãe à espera de mais alguma revelação; Rosa, porém, nada mais
proferiu. Não havia, contudo, que duvidar. Aquele Sr. Augusto, que dizia coisas
que não eram para repetir e que uma mãe não devia saber... a recusa de favores
oferecidos, e, sobretudo, a indignação com que palavras e obras eram repelidas
pela jovem, eram indícios mais que suficientes.
A Sra. Maria
voltou para o seu lugar; mas, em vez de pegar na meia, escondeu o rosto nas
mãos e entrou a chorar.
Lastimai-a,
mães!... Lastimai-a vós que sabeis os cuidados que dá uma filha!
Largo espaço
de tempo se conservou a boa mulher naquela posição, entregue a dolorosas
meditações. Erguendo-se por fim, ajoelhou, pôs as mãos e cravou os olhos na
imagem da Senhora das Dores, como que a pedir-lhe conselho. Parece que lho não
recusou a Mãe de Deus, porque, quando a Sra. Maria se ergueu do chão,
lia-se-lhe no rosto que tomara uma resolução qualquer.
Caminhando
nos bicos dos pés, dirigiu-se para a cômoda, abriu cautelosamente uma das
gavetas pequenas e tirou de lá um objeto. Em seguida, erguendo a tampa de um
cesto, tirou um novelo de cordão branco, do qual cortou um pedaço com uma
tesoura. Enfiando o objeto, que tirara da gaveta, dirigiu-se para a cama,
passou com mão sutil uma das pontas do cordão por baixo do pescoço da filha,
deu um nó e assim deixou um ponto negro pousado sobre o colo alvíssimo de Rosa.
O objeto era... uma figa de azeviche!
***
Quando Rosa
acordou, ia alto o sol. Procurou a mãe com os olhos: não estava no quarto.
A Sra. Maria
não tinha querido presenciar o enleio da filha, ao descobrir a figa de
azeviche, símbolo quase tão eficaz contra as tentações do inimigo, como o da
cruz onde foi remida a cristandade.
Rosa levou
finalmente a mão ao pescoço, e achou o milagroso esconjuro. Reconhecendo a
égide, que, enquanto criança, nunca deixara de usar, sentou-se de salto na
cama, com as faces rubras de pejo, e exclamou, desatando a chorar:
— Jesus, que
vergonha!
A jovem
compreendera a tácita censura e amorável previdência da mãe.
Ia-se
fazendo tarde e a jovem não saía daquela posição, nem cessava de chorar. Afinal
assaltou-a o receio das observações maternas; ergueu-se, vestiu-se e saiu, sem
ao menos se lembrar de almoçar.
Quando
voltou para jantar, mãe e filha apenas trocariam meia dúzia de palavras. À
noite Rosa não se atrevia a encontrar os olhos da mãe, ao passo que esta,
aparentando indiferença, prestava os seus
sete sentidos ao revesilho da meia azul. Opressa por aquele silêncio, a
jovem levantou-se, deu um beijo na fronte da mãe e disse:
— Vou-me
deitar.
— Pois vai,
filha... Deus te abençoe! — respondeu a Sra. Maria.
Rosa
deitou-se, mas movimentos agitados e suspiros, provavam que chamava em vão o
sono.
A Sra. Maria,
que mais de cem vezes volvera os olhos para a cama, levantou-se, e,
acercando-se da filha, deu-lhe um beijo e murmurou-lhe ao ouvido:
— Dorme,
filha... Lembra-te de mim e pede a Nossa Senhora que te dê juízo...
Rosa,
cedendo a um impulso irresistível, voltou-se, e, lançando-lhe os braços em roda
do pescoço, puxou para si a cabeça encanecida da santa que lhe dera o ser, e
quedou-se assim a chorar. A mãe, não menos comovida, deixou passar aquela
explosão de lágrimas, salutar aguaceiro que nos minora o sofrer da alma
calcinada pela dor, desprendeu-se brandamente dos braços da filha, e,
afagando-lhe o cabelo, murmurou:
— Está bem,
está bem!... Reza e dorme... Dorme, filha!...
Rosa andou
alguns dias triste e enleada, mas ganhou juízo. O Sr. Augusto perdeu a freguesa
e só teve, em troca, as graçolas pesadas — dos companheiros.
Entre a mãe
e a filha nunca houve a mínima alusão ao passado. Para que serviriam alusões,
se, para aquela, era indício seguro da cura a alegria da filha, se esta tinha
severo censor na figa de azeviche, que nunca mais deixou de trazer ao pescoço?...
A mãe,
quando pensava em tal incidente, nunca deixava de volver olhos de gratidão para
a Imagem da Senhora das Dores, e dizia mentalmente:
— Foste tu,
minha Mãe Santíssima!...
A filha,
quando se lembrava do — que sofrera, levava a mão ao pescoço e murmurava: — Se
não fosse a figa!...
E assim se
dissipou a nuvem que ameaçava trazer consigo medonha tempestade.
CAPÍTULO 4
Haverá coisa
de quinze dias, entrava eu na loja do Sr. Manuel Francisco, acreditado
sapateiro desta cidade, para ver se, interpondo o seu valimento, conseguíamos
chamar a uma conciliação — para evitarmos demandas — as botas, que ele me
fazia, e os calos que vão começando a apoquentar-me.
Tudo
apoquenta os velhos!
O Sr. Manuel
Francisco não estava em casa; guardava a loja naquele momento uma velhinha,
muito velha, que me disse ser sogra dele. Neste momento entrou na loja,
beijando um pequerrucho de dois anos, que trazia ao colo, uma formosa mocetona
de vinte e cinco anos.
Sabem quem
eram aquelas duas mulheres?... Eram as nossas conhecidas... a Sra. Maria e a
loura Rosa!
Esta
parecia, se é possível, mais bonita e fresca do que quando pela primeira vez a
vimos! As alegrias da maternidade fazem às vezes destes milagres!
Estava eu
esperando pacientemente a vinda — do dono da casa, quando se abriu a porta
envidraçada, ao fundo da loja, e apareceu uma linda rapariga de dezesseis anos,
que trazia os olhos vermelhos de chorar.
— Até logo,
Sra. Rosa... Boas tardes, Sra. Maria — disse ela e saiu.
— Até logo,
Julita — responderam as duas.
— Tu
ralhaste com a Julita? — perguntou a Sra. Maria à filha, mal a gaspeadeira
saiu.
— Ralhei — respondeu
Rosa.
— Então ela
que fez?-insistiu a velha.
— Não fez
nada — retorquiu a jovem.
— Essa agora!...
Não fez nada... e tu ralhaste-lhe?...
— Sabe o que
é? — redarguiu Rosa, fazendo-se corada. — Precisa que a mãe lhe dê uma figa!...
Aí tem o que é!
Eu abri
olhos curiosos e perguntei pela causa de tão extravagante necessidade. Da
explicação que a Sra. Maria me deu, nasceu este conto.
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