A Doida de Tagilde
Poucas serão,
no Porto, as pessoas que não conheçam Vizela.
Disse mal...
Poucas serão as que não tenham ido a Vizela; as que conhecem bem aquela formosa
aldeia são raras.
Para a maior
parte dos banhistas, Vizela é uma praça irregular, cercada de casas ainda mais
irregulares, praça emendada numa outra, a que, por murada e cheia — de árvores,
dão o nome de alameda os mais modestos, e de jardim os que tentam convencer-se
de que é jardim aquele recinto, onde as galinhas ensinam as ninhadas a — dar os
primeiros passos e a ganhar a vida, e onde o porco passeia sem vergonha e à
vontade.
A tudo isto,
dão indígenas e estrangeiros o nome — de Lameira
e devem os porcos, que ali pascem, dar o de lameiro.
Dessa classe
de banhistas, há um ou outro mais
ousado, que estende a sua sede de ver mundo até à igreja de São Miguel, ou
mesmo até à ponte.
Pois
dificilmente se encontrará tanta beleza em tão limitado espaço!
Ao leitor
que tiver arremessado para longe as muletas, com que lá foi este ano, e puder
para o seguinte dar o seu passeio a pé, sem se incomodar, poder-lhe-ia eu
apontar tantos passeios, quantos forem os dias que tiver de demorar-se a
banhos!
Há, porém,
pontos de vista, que o não dispenso de gozar, se é que falo a um homem
inteligente, a quem canseiras e anos não roubaram de todo o entusiasmo, que
desperta em nós a contemplação do belo.
Por noites
bem claras e tépidas de Julho, se a sua boa sorte o levar à antiga ponte de
pedra, detenha-se o leitor em meio e espraie a vista para ambos os lados.
Se se
encostar ao parapeito que dá para a povoação, enxergará, à luz do tapete de
pirilampos, que a lua estende sobre as águas verde-negras do rio, enxergará,
repito, a fita agitada do Vizela a serpear por entre pequenas ilhas, cobertas
de ervas e arbustos, e ao fundo, despenhando cristais e pratas polidas, o açude
— do Pisão, flanqueado de um lado por decrépito moinho, assombrado do outro por
anosas carvalheiras.
Se, depois
de cinco minutos passados na contemplação daquele quadro, a que as sombras
caprichosas e fantásticas da noite dão um aspecto de selvagem e inexcedível
poesia, o leitor não ouvir a voz da sua alma bradar-lhe: "É belo!..."
então... vá para casa, que são horas de tomar banho.
Volvendo a
vista para o lado oposto, a cena é totalmente diversa.
Sumindo-se
silenciosamente e vencendo, sem esforço, as sinuosidades das margens, o Vizela
escapa-se por entre choupos e salgueiros, cujas sombras vêm projetar-se no rio
e encontrar-se no meio, refletindo, num ou noutro ponto, a Lua, que parece respeitar
aquele sossego.
Mais formoso
do que o Vizela nesse espaço que se avista — da ponte, só o poético Mondego!
Se,
estimulado por este espetáculo, quiser, no dia seguinte, subir ou descer o rio,
juro-lhe que verá paga a fadiga.
Quer suba
até à ponte velha, quer desça até à fábrica de papel, verá suceder o ameno ao
selvagem, o horrível ao belo, mas sempre poético, sempre, deixe-me assim dizer,
original.
Se subir
pela margem direita, ao fim de um campo ou antes areal, encontrará uma descida,
semeada de pedras brutas e informes até à beira do rio e poderá, caminhando por
sobre as poldras, ir sentar-se junto à represa do moinho da Cascalheira.
O
misantropo, o poeta que precise cerrar os ouvidos à voz do homem e procure a de
Deus, que nos fala no sussurro do vento, no murmurar da linfa, no ciciar das folhas, ou no bramir
da torrente, todos os que, ou por feridos no coração ou por aspirarem mais
alto, se sentem pouco à larga entre os homens, não poderão decerto ver a
Cascalheira, sem invejarem a sorte do pobre moleiro, a quem as pancadas das
rodas tornam surdo para tudo, se é que algum dia ouviu.
Basta!...
Estou satisfeito; era à Cascalheira que eu queria que, ou por gosto ou por
condescendência, o leitor me acompanhasse.
Seguindo,
para lá chegar, o caminho que descrevi há pouco, haverá bons vinte anos vi eu
pela primeira vez aquele pitoresco local. Era ainda mais belo, se é possível,
porque, de então para cá, a mão do homem, que estraga tudo quanto a natureza
cria, operou ali umas transformações, que só serão toleráveis quando a água do
Vizela e o trabalho do tempo tiverem impresso no que é moderno o cunho de
velhice que distingue o resto.
Nesse tempo,
pois, era aquele formoso assunto de aprazível quadro ainda mais pitoresco do
que hoje, e, no dia em que pela primeira vez o vi, animavam-no dois seres, que
me ficaram para sempre gravados na memória.
Ia eu a pôr
o pé na primeira poldra, para atravessar o rio, quando, da outra margem, me
chegaram estas palavras, cantadas numa toada melancólica, que ouvia pela vez
primeira e nunca mais tornei a ouvir:
Vagamos juntas no mundo,
Que nada nos prende, nada!
Eu guiada pela ovelha,
A ovelha por Deus guiada!...
Que nada nos prende, nada!
Eu guiada pela ovelha,
A ovelha por Deus guiada!...
Observando
atentamente a margem fronteira, descobri, cerca de vinte passos abaixo do
moinho, uma mulher sentada à beira do rio, e ao lado dela uma ovelha branca.
Era singular
o aspecto daquela mulher, que se me apresentava acompanhada pela ovelha, como
me prevenira a cantiga.
Teria trinta
e cinco anos; a tez, que, a avaliar pelos olhos azuis, devia ter sido alva,
estava queimada pelo sol e o tempo levara-lhe o viço, dando-lhe em troca uma ou
outra ruga. O cabelo louro começava a branquear nas fontes.
O vestuário
era pobre, mas atestava escrupulosa limpeza.
Ocupava-se
naquele momento em introduzir por todas as costuras de um grosseiro chapéu de
palha uma aluvião de flores silvestres, e parecia causar-lhe voluptuoso prazer
a frescura da água, em que mergulhara os pés, provavelmente doridos de longa
jornada.
Certo de que
ela me não vira, retirei-me cautelosamente, e fui sentar-me um pouco mais
longe.
Despertara-me
a curiosidade aquela mulher.
Meia hora,
seguramente, permaneceu ela ali, entregue de alma e coração à sua tarefa, até
que, satisfeita provavelmente com o seu
trabalho, mirou o chapéu por todos os lados e pondo-o, finalmente na cabeça retirou os pés do rio e, ajoelhando
sobre a margem, contemplou atentamente a
própria imagem, refletida na água.
Em seguida,
erguendo-se, voltou-se para a ovelha, dizendo:
— Anda,
Menina... vamos esperar o Francisco.
E a Menina,
levantando-se, correu, naquele passo trêmulo e pretensioso das ovelhas, a
colocar-se diante da dona, e lá seguiram as duas, como a mulher de novo cantava
— esta guiada pela ovelha, a ovelha por Deus guiada!
Mas quem era
aquela doida — pois já se vê que o era —
que assim ia, acompanhada por uma ovelha, como por um cão, em procura desse a
quem chamara Francisco?!...
CAPÍTULO 2
Não imaginem
os leitores que estou improvisando!... Não!... Quem tiver ido a Vizela, haverá
vinte anos, deve ter visto aquela mulher mais do que uma vez.
Curioso de
descobrir quem era a pobre doida, logo às primeiras perguntas tive quem me
dissesse: "Ah! já sei!... É a doida de Tagilde, ou da ovelha, como lhe
chamamos por aqui."
— E sabe a
história da pobre mulher?... — perguntei eu.
— Se sei!...
Todo o mundo a sabe! — respondeu-me a minha senhoria, tia Miquelina, santa
velha que morreu sem tomar um banho termal, por estar convencida de que aquela
água, que assim jorrava, cheirando a enxofre, do seio da terra, era, como ela
dizia — aquecida nas profundas do Inferno!
— Então, se
sabe, conte-ma!...
— À noite...
agora não; à noite!... — respondeu a boa da velha.
E o caso é
que tive de esperar até à noite. Escusado é dizer que recolhi nessa noite mais
cedo.
Se me não
saíam da ideia a doida e a ovelha! Não nascera, infelizmente, a tia Miquelina,
para contar casos.
Era uma
ladainha monótona a narrativa, feita por ela, de forma que, sacrificando embora
a cor local, tenho eu de contar a história a meu modo.
Dez anos antes
da época a que me referi, isto é, haverá trinta anos, não havia em dez
freguesias ao redor quem não conhecesse a formosa "loura de Tagilde"
destinada mais tarde a ser a — doida de Tagilde.
Era uma
destas criaturas perfeitas, encantadoras, sem senão, que Deus se compraz em
soltar de sua mão, para justificar a mais alta lisonja feita pela tradição ao gênero
humano: "Fez Deus o homem à sua Imagem e semelhança! "
Seria
impossível contar os jovens que se deixaram prender nos áureos fios daquelas
bastas tranças e aspiraram a ver raiar o sol da esperança no céu azul daqueles
lânguidos e apaixonados olhos!
E assim
correram anos, sem que as tranças da jovem se deixassem agarrar pelos que as
perseguiam, sem que do céu daqueles olhos baixasse um raio de sol a iluminar de
preferência o coração de qualquer deles.
Lá veio um
dia por fim — e tinha Maria os seus vinte e três anos — e que numa romaria se
encontrou com um gentil paz de Santa Eulália de Barrosas, e sentiu, pela
primeira vez, palpitar o coração com desusada força.
Era
Francisco, o mais guapo moço, jovial cantador ao desafio, destemido jogador de
pau, e habilidoso carpinteiro, de todas aquelas cercanias.
Só tinha um
defeito... Era um mãos largas — vintém ganho, vintém gasto!
Se Maria deu
pela primeira vez atenção a um rapaz, desconhecida emoção deu também a perceber
a Francisco quão efêmeros tinham sido todos os seus amores até então.
Finda a
romaria, retirou-se a jovem no meio de um rancho de companheiras, debaixo da
proteção dos marmeleiros dos parentes, e seguiu-a a distância Francisco com um
bando de mancebos.
As raparigas
riam e cochichavam, lançando de vez em quando olhos maliciosos para os rapazes,
ao passo que estes pesavam os prós do folguedo com as raparigas, e os contras,
que podiam resultar da má vontade dos marmeleiros paternos.
De repente,
uma cachopa morenita, de olhos negros e nariz arrebitado, a quem as goelas
ardiam e a língua se perdia com cócegas, distribuiu dois murros pelas amigas
que levava aos lados e que pareciam querer desviá-la de levar por diante uma
resolução qualquer, arqueou os braços, fincou as mãos na cinta e cantou:
Quem nos segue, se é cão — ladre;
Se homem é... então que fale!
Se o cão que não ladra é falso
Homem mudo é tal e "quale!"
Se homem é... então que fale!
Se o cão que não ladra é falso
Homem mudo é tal e "quale!"
Palmas e
vivas das raparigas e dos guardiões não havia no rancho quem, como o leitor, se
escandalizasse por uma sílaba de mais — palmas e vivas, repito, acolheram o
final da cantiga de Joana, que assim se chamava a azougada cantadeira.
— Ó
Francisco!... Ó Francisco!... — instavam os rapazes. — Responde àquele diabo!...
Olha que parece mal!...
— Esperai,
homens!...
Seguiu-se
profundo silêncio.
As jovens
esperavam, curiosas, a réplica dos rapazes, ao passo que estes se impacientavam
com a demora que Francisco punha na resposta.
Depois de
visível esforço, cantou Francisco em voz trêmula:
Ao ver-vos perdi a fala,
E perdi o coração;
Perdi-o por uma loura,
Que me trata como um cão!
E perdi o coração;
Perdi-o por uma loura,
Que me trata como um cão!
Estrondosos
gritos de alegria saíram do grupo dos rapazes, ao passo que as raparigas
pisavam com os cotovelos os braços de Maria, dizendo-lhe maliciosamente:
"Apanha!... Aquilo é contigo!...Olha que foi o Francisco, de Barrosas!...
Responde-lhe tu agora, anda!..."
De cantiga
em cantiga se foram os dois grupos familiarizando, a ponto de, na primeira
venda que encontraram, enquanto Francisco se aproximava sorrateiramente das
raparigas, que no meio do caminho riam alegremente, torcendo os lenços de
renda, que são os leques da aldeia, fraternizaram os dois grupos de homens
entre enormes copos de vinho, trocadas as sacramentais palavras:
— Vá a virar!...
— Está em
boa mão...
— Para
melhor vai.
— Então lá
vai à saúde de vossemecê.
E leva-se o
copo à boca, põe-se-se em meio, limpa-se o bordo do copo com a manga da camisa,
antes de o passar para a mão do outro, e aí está como se trava na aldeia um
conhecimento, e muitas vezes amizade eterna!
Esgotados os
copos, e findo o duelo de bizarrias para ver quem havia de pagar a despesa,
seguiram os grupos, rindo e folgando confundidos.
Mais do que
um perdeu a liberdade do coração naquele passeio, e, entre esses, Francisco,
que retirou doido de amor daquela primeira escaramuça, precursora de futuras e
valentes batalhas.
Estava
seriamente ferido, e, que o não estivesse, não era ele homem que deixasse em
meio a disputada conquista do coração de Maria.
Domingos e
dias santos, quantos vieram ao mundo, todos os passou ele em Tagilde desde
então, e, mais — que uma vez por semana, ao despegar do trabalho, o levou lá o
amor.
Correram
dias e meses, e cada dia que passava não só enterrava mais fundo no coração do
carpinteiro as raízes daquele afeto, mas também cada vez lho depurava mais.
Naquele
coração volúvel, que até àquela data só conhecera do amor a parte vil, entraram
de florescer respeitos e germinar escrúpulos, que lhe transformavam o peito em
altar, onde sorria pura e imaculada a casta imagem da loura virgem de Tagilde.
Quanto ao
que esta sentia, diz-se tudo dizendo-se que fora aquele o único homem que vira
com os olhos da alma.
Bastante
tempo correram aqueles amores, sem serem contrariados; lá veio, porém, um dia,
em que o pai da jovem abriu os olhos e compreendeu a alegria da filha aos
domingos, a contrastar com a tristeza que lhe anuviava o rosto pelo resto da
semana adiante.
José
Francisco era o que se chama um bom chefe de família, e um homem honrado.
Afligiu-o a
descoberta dos amores da filha, porque o carpinteiro tinha adquirido fama de
estroina e de gastador, defeitos apenas compensados pela virtude do trabalho e
pela justiça feita à sua probidade.
Depois de
muito ruminar, um domingo, em que Francisco lhe passava pela vigésima vez à
porta, desesperado por não ter podido falar com Maria, a quem a presença do pai
não permitia sair, bradou-lhe o velho:
— Olé!... ó
Sê Francisco!...
O leitor
imaginará a pressa com que este acudiu ao reclame.
— Vai para
diante? — perguntou o lavrador, trocadas as boas-tardes.
— Vou, sim
senhor... — respondeu o mancebo.
— Então, se
dá licença... acompanho-o até além...
— Com muito
gosto... — replicou Francisco.
Em coisas
indiferentes foram os dois falando, até chegarem fora da povoação.
À beira — de
um campo, encostou-se o lavrador a um portelo, fez com o pau uma mossa no chão,
e, metendo a extremidade superior debaixo do sovaco, perguntou com aspecto
grave:
— Fale-me
sério e verdade, como se falasse ao confessor!... Ora diga-me... vossemecê anda
atrás da minha cachopa?... É escusado fazer-se vermelho, homem!... Nem sequer
lhe progunto as suas tenções... Só
lhe progunto uma coisa... Vossemecê
sabe quantos filhos eu tenho?...
Francisco,
de enleado, nem encontrou resposta.
— Tenho
cinco; três — do primeiro casamento e dois do segundo. O que há pode-se dizer
que é dos três mais velhos; os segundos nada e o que têm é a mesma coisa... Ora
a cachopa é do segundo casamento... Já vê que nem tudo que luz é ouro!...
Francisco
fez um gesto de abnegação e ia a falar; mas o velho interrompeu-o, dizendo:
— Bem sei,
homem!... Bem sei o que me vai dizer!... Não é pelo dote?... Acredito... Mas eu
é que sou pai... e progunto... Que
posses tem vossemecê para manter mulher e filhos, se os vier a ter?.. Não olhe
para os braços, homem!... São bons... bem sei... mas... braços quebra-os uma
doença... e depois?... Numa palavra, Sê Francisco... Nem vossemecê nem ela têm;
é preciso que cada qual arranje quem lho traga... Não servem um para o outro; e
vossemecê, se é homem honrado, como me dizem que é, e eu acredito, vire as
vistas para outra banda... Aquela não lhe serve.
Francisco
ficou como fulminado. Mal pôde falar, o ardor da paixão tão eloquentemente o
inspirou, que o lavrador chorava como uma criança, mas continuou a abanar a
cabeça, dizendo com magoada voz:
— Não pode
ser, homem!... Não pode ser!... Era uma desgraça para os dois!
E o coração
do velho, embora rudemente abalado, permaneceu sujeito aos austeros ditames
daquela razão, robustecida pela sua previdência de pai.
Dizer o que
Francisco sofreu desde Tagilde até Barrosas, contar os projetos que formou na
noite de insônia que se seguiu àquela conversa, seria inútil tentá-lo!
Quando o
dia, coando pelas fendas da janela o convidou a erguer-se do leito, onde se
deitara vestido, só um dos mil projetos, que formara, se conservara de pé.
Mas de que
cruel execução ele era!
O Brasil
prometia-lhe um futuro; mas o presente... o presente iluminado pelos meigos
olhos de Maria... quem lho havia de pagar?!...
Como havia
ele viver anos sem a ver, se semana que a não visse lhe parecia uma eternidade?!...
Bem procurou
o pobre rapaz outro meio, menos custoso... Não o encontrou!
Dias depois,
quem passasse ao cair da tarde na extrema da aldeia de Tagilde, veria o
carpinteiro conversando com o pai de Maria, e, se parasse, ouviria estas
palavras, que eram naturalmente o resumo de quando haviam dito antes:
E vossemecê
promete-me não obrigar a filha a casar com outro, se ela quiser esperar por
mim?... — perguntava Francisco com pungente ansiedade.
— Prometo respondeu
o velho em voz solene. — Vá, trabalhe, faça-se homem e, se ela quiser esperar
por si.. não serei eu quem lhe negue o consentimento...
— Muito
obrigado!... muito obrigado!... Deus Lhe pague tanta amizade, como a que
vossemecê me mostra... Só tenho mais um pedido a fazer-lhe... — continuou
Francisco, chorando. — Dá licença que me despeça dela?... Olhe que pode ser
para sempre!...
Depois de
breve hesitação, o velho respondeu em tom comovido:
— Vá lá!...
Diga-lhe adeus!...
E o velho
voltou o rosto para o lado, para encobrir as lágrimas.
— Venha daí!...
— acrescentou o honrado lavrador.
Seguiu-o
Francisco, cabisbaixo e com o coração golpeado.
— Que sina a
minha! — pensava o pobre rapaz. — É a primeira vez que entro em casa dela, e
talvez que seja a última!
Entraram os
dois.
Maria, que
já estava prevenida e havia muitos dias não fazia senão chorar, ao ver o rosto
demudado do carpinteiro e a tristeza do pai, fez-se pálida como um cadáver e
teve que se agarrar a uma cadeira para não cair.
— Maria... —
disse o velho. — Está aqui o Francisco, que te vem dizer adeus. Tomo a Deus por
testemunha, filha, que sinto hoje não ter bastante de meu, para te deixar
seguir a tua inclinação. Mas o tempo depressa passa — continuou ele,
esforçando-se por parecer alegre. — Oh! se passa! Verás, cachopa!... A vontade
que ele leva de ser homem, temo-lo cá para o ano rico como um porco!... Ora andem
lá... conversem, mas nada de afligir!... leve o Diabo paixões!
E o velho,
já para fugir a uma contagiosa cena de lágrimas, já por um movimento de
instintiva delicadeza, — deixou-os sós.
Há cenas que
se não descrevem. O leitor que tiver passado por tão solene transe, como é o de
uma despedida, quando a volta é incerta, lembra-se, sem dúvida, — de quanto
sofreu!
O coração
estorce-se; a mente compraz-se em enegrecer o futuro, tornando eterna uma
separação, que a voz sempre viva da esperança nos aponta como temporária; os
olhos estudam amorosamente as feições do ser que vamos deixar, como querendo
gravá-las ainda mais fundo no íntimo do coração; as mãos estreitam-se sem se
poderem desunir; os lábios emudecem, receosos da fatal palavra — Adeus! — e os
pés como que se pregam ao solo amado, onde nos fica tudo quanto nos tornava
risonha e fácil a existência!
— Hás de
escrever... Francisco!... sempre!... e muito!... — dizia a jovem, comprimindo
convulsivamente as mãos do mancebo.
— Sempre!...
Maria... sempre! — respondia este soluçando.
— Para que
te vi eu, Maria!... — continuou ele, estreitando nos braços a gentil menina.
Estavam os
dois assim, nos braços um do outro, e confundindo as lágrimas, quando soou, por
detrás deles, comovi-da, a voz — do velho:
— Basta,
filhos!... basta!... Então! é preciso ter ânimo!... Ora vá.. ora vá.. Então...
Maria!... Vá... Francisco... Vá! Um homem é um homem!
o velho
desuniu-os brandamente.
Francisco,
doido de saudades, levou as mãos aos lábios e lançando à jovem um derradeiro
beijo, bradou:
— Adeus! — e
saiu desorientadamente.
— Francisco!
— exclamou Maria num grito, que traduzia todas as dores que podem lacerar um
coração de mulher.
O mancebo,
porém, já a não ouviu, e a jovem, lançando os braços em volta do pescoço do
pai, exclamou dolorosamente:
— Oh! meu
pai!... vi-o pela última vez!
O velho
empalideceu e não encontrou resposta, porque, como ele mais tarde confessava,
pareceu-lhe ouvir dobrar afinados naquela frase angustiada da filha!
CAPÍTULO 3
Partiu
Francisco para o Brasil. Nesse tempo, o país dos sonhos ambiciosos desses que
vão colher areias de ouro em rios de lágrimas, era bem mais cruel exílio do que
hoje!
Nesse tempo,
quando dois corações se separavam, só ao cabo de muitos meses de amarguras e
preces vinha uma carta, trazida por navio de vela, minorar ou aumentar as dores
da ausência.
E, nos
longos serões da aldeia, quando os corações guiavam a conversa para o chorado
ausente, o saudoso chefe de família erguia-se e ia buscar ao escaninho da arca,
onde estava guardada, a carta do filho, já rota nas dobras e ensebada das mãos,
abria-a e, nesse instante solene, a mãe tirava a roca da cinta, o fuso
calava-se na mão da jornaleira, os pequenos apuravam olhos e — ouvidos, e
lia-se pela centésima vez, em voz alta, a preciosa carta, como se houvesse
ainda alguém em casa que a não soubesse de cor!
E assim se
enganava a fome de notícias!... e assim procurava a gente convencer-se de que,
quem estava bom havia seis meses, decerto estava ainda de perfeita saúde!
Seis meses
depois da partida de Francisco, chegavam a Tagilde as primeiras notícias do
saudoso namorado.
O pobre
rapaz encontrara facilmente que fazer, e, como as suas aspirações não iam além
do preciso para comprar uma casinha, um campo, e pôr em reserva uns centos de
mil-réis — o fruto que ia colhendo fazia-lhe antever a realização dos seus
desejos dentro do curto espaço de dois anos.
O que o
resto, ou antes toda a carta, seria, pode o leitor imaginá-lo!
Dizia o pai
de Maria que esta, mal a ouvira ler, logo entrara a ganhar as boas cores que a
saudade lhe roubara.
— Não saber
eu ler!... — dizia a pobre moça, cobrindo o papel de lágrimas e beijos.
E a
abençoada carta andava numa dança para dentro e fora do seio!
— Ó pai!...
só esta vez!...
E o velho
tirava do bolso os óculos de aros de prata, e lia mais uma vez.
E a jovem,
tomando à risca a única aritmética, que o coração lhe aceitava, para contar o
tempo, pensava quase alegre: "Faltam só tantos meses! "
Passados
dois, chegou nova carta, mais própria ainda para alimentar esperanças.
A
terceira... A terceira não era de Francisco!
O velho
lavrador ao recebê-la, e ao ver a obreia preta, tornou-se branco como a parede
a que se encostara, e deixou cair a fúnebre missiva, murmurando em voz estrangulada:
"Minha pobre Maria! "
— Ó pai!...
há carta?... — exclamou Maria, a quem a recoveira dissera que havia trazido
uma.
O velho,
vendo entrar a filha, quis apanhar do chão o fatal papel, mas a jovem, mais
pronta do que ele, abaixou-se e ergueu-o.
— Deixa,
filha!... Não é dele! — exclamou o velho.
Mas a jovem,
se não sabia ler, sabia distinguir as cores e, vendo a obreia preta e as
lágrimas do pai, tornou-se lívida, e com os olhos enxutos mas desvairados, os
lábios brancos e trêmulos, disse-lhe em voz que mal se ouvia:
— Leia!...
leia!...
E com o
corpo inclinado para diante e as mãos estendidas para o velho, que tremia mais
do que ela, esperava que ele começasse.
O velho,
lendo para si — a notícia da morte de Francisco, dada por um patrício dele,
procurava traças para redigir o contrário do que lia, mas a filha, como se lhe
fosse lendo no espírito o conteúdo, ia mostrando no rosto, e sobretudo no
olhar, uma expressão horrível.
O pai,
julgando-se certo do estratagema, ergueu os olhos e disse: "Ora
ouve"; reparando, porém, na jovem, apertou-a nos braços, perguntando
angustiado:
— Filha!...
Maria!... tu que tens, minha filha?!...
Maria,
desprendendo-se dos braços do pai, sacudiu as formosas tranças, e, voltando-se
para ele com indescritível sorriso, tirou-lhe a carta da mão, dizendo:
— Dê cá, que
eu leio...
E,
sentando-se no chão, sem mais se lembrar do pai, a pobre moça entrou de
decifrar no papel uns dizeres, que eram o eco das duas primeiras cartas,
terminando pela notícia da chegada de Francisco no dia seguinte.
— Chega
amanhã!... — exclamou ela de repente. — Vou esperá-lo!
E,
erguendo-se precipitadamente, saiu, correndo, na direção da estrada.
Maria, a
"Loura de Tagilde", passara a ser a "Doida de Tagilde"!
Seguiu-a o
pai e pôde a muito custo trazê-la para casa; mas a cada instante erguia a jovem
a fronte, como se ouvisse passos, e fugia, repetindo: "Vou
esperá-lo!"
Prenderam-na
em casa, e ela tornou-se furiosa.
Alma
caritativa e inteligente convenceu o velho a que a deixasse andar sozinha.
Foi então
que começaram as longas correrias, na companhia da ovelha, da
"Menina", como ela lhe chamava.
O meigo
animal, acostumado a comer na mão dela, seguira-a na primeira ocasião em que
achara a porta aberta.
E assim
começaram a vagar as duas no mundo, sem
nada que as prendesse, uma guiada pela — ovelha, a outra por Deus guiada,
como rezava a cantiga que um estudante compusera para a doida, e que esta
retivera na memória.
Terminou
aqui a narrativa da tia Miquelina, e começaram as minhas perguntas.
— E
tratam-na bem?...
— Se a
tratam bem!... Pois quem havia de a tratar mal?!... Olhe... Ela, à noite,
quando não dorme debaixo das árvores, entra em casa de qualquer lavrador, vai
direita à cozinha e pede pão. O primeiro bocado é para a "Menina".
Depois de comer, pega na primeira roca que acha à mão e fia... fia... até lhe
dizerem que se vá deitar. Por lá dorme no palheiro, ou onde a mandam dormir, e
pela manhã, por muito que a gente da casa madrugue, já ela vai longe!
— Vai
esperar o Francisco! — pensei eu, avaliando os tesouros de amor que teriam
cabido àquele homem, se Deus o não houvesse chamado a si!
Antes de
deixar Vizela, em vão procurei a doida; não a encontrei!
Sabe — Deus
para onde ela se deixara guiar pela ovelha, que era quase sempre quem marcava o
itinerário!...
CONCLUSÃO
No ano
seguinte voltei a Vizela.
— Que é
feito da doida de Tagilde, tia Miquelina?... — perguntei eu.
— Coitadinha!...
Morreu!... sempre tivemos todos uma pena dela!... Coitadinha!... Uma morte
assim!...
Vou
contar-lhes o triste fim de Maria. Fora rigoroso o Inverno.
A água dos
córregos estava gelada, e os montes alvos de neve.
Por uma
noite de Dezembro, uns pastores, que dormiam no monte, numa cabana de madeira,
ouviram a espaços os balidos de uma ovelha, cujo som ora se afastava, ora se
aproximava do sítio onde estavam.
Quem se
levantaria por causa de uma ovelha tresmalhada, quando a neve caía silenciosa
do céu e o vento sibilava por entre as tábuas da cabana?
No dia
seguinte, ao abrirem a porta, viram ao longe a ovelha, que se dirigia para
eles, voltando a miúdo a cabeça para trás.
Chamaram-na
— parou; caminharam para ela — começou a andar para donde viera, voltando-se
como que convidando-os a segui-la.
Chegando a
certa altura estacou, e começou a arredar a neve com o focinho.
Aproximaram-se...
De sob
espessa camada de neve saía um braço; puxaram-no.
Era a doida
de Tagilde!
Dera-lhe
Deus ordem de recolher ao Céu, e surpreendera-a a morte sobre o monte, onde ela
colhia as flores com que se adornava para agradar a Francisco, cobrindo-lhe o
corpo com o lençol de neve, tecido nos céus, mortalha cândida como a alma dela!
— E a
ovelha?... — perguntei eu, disfarçando mal as lágrimas.
— A
ovelha... pobre bichinho! A ovelha andou três dias com três noites a balir em
volta da igreja, sem se deixar agarrar por ninguém... Ao quarto dia
encontraram-na morta, no adro da igreja! Há certos animais, que parece mesmo
que têm alma! — concluiu a tia Miquelina.
— Quem sabe?!...
— pensei eu.
A dedicada
criatura fizera bem em morrer; a dona, que ela guiava, tinha chegado ao seu
destino!... Tinha afinal encontrado o seu Francisco!
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