A destruição de Áuria
(Século VIII)
Um som de queixume e pavor — um
grito tremendo e doloroso escutava-se em todas as províncias de Hispânia. Desde
os fraguedos de Gibraltar, até os distantes desvios das Astúrias, não se via
senão desespero, aflição e luto. O império fugira das mãos dos Godos, o trono
de Rodrigo jazia por terra, e estava fadado que a altiva Hispânia sofresse o
jugo do invasor muçulmano.
Que espantoso espetáculo era aos
olhos de um cristão o ver o velho e o mesquinho; o fraco, o enfermo e o
indefeso; a mãe com o seu filho nos braços; o monge com o crucifixo que
salvara; o jovem e a donzela; o marido e a quase desfalecida esposa — fugindo
em tropel pelas estradas, e abandonando os seus tetos queridos para se
acolherem nas cidades muradas, a fim de escaparem ao ferro do infiel
despiedoso! Desde a batalha dos oito dias o terrível inimigo tinha voado de
conquista a conquista, sem dar nem tomar repouso.
O Árabe
feroz e o incansável Sarraceno tinham-se ligado com os desumanos filhos da
África. A mesma crença os tinha fraternizado; o mesmo espírito de uma religião
feroz, e de uma ambição desvairada, os havia tornado conquistadores. Nenhuma
barreira que não fosse efêmera, se podia opor à série das suas vitórias, que,
devorando tanto as aldeias como as cidades, levavam a assolação a toda a parte,
com tal força, que nem paços fortificados, nem baluartes, nem castelos
torreados, lhes podiam obstar. Diante deles, o país parecia os jardins do Éden;
atrás deles, um ermo árido e despido.
Mas o
império godo não baqueou com ignomínia: não herdaram os filhos da Hispânia
nenhuma herança de opróbrio. O trono de Rodrigo só foi destruído pelas
perfídias de traidores, e à custa de batalhas muito feridas. Os exércitos godos
não fugiram; foram passados à espada e totalmente aniquilados; mas deixando
repassadas de sangue mourisco as veigas do Meio-Dia, e tintas nele as correntes
do Xerez. Quando até já não existiam nem as esforçadas legiões espanholas, nem
o seu capitão, na planície vizinha a cada castelo, a cada cidade, tinham os
agarenos que lutar e vencer um combate de morte; era um vasto campo de batalha
que se estendia perante eles desde os enfileirados cimos das montanhas nevadas
até os vales dos Pirenéus.
Época
medonha foi esta para a Hispânia! A assolação, tremenda e irresistível,
assemelhava-se a uma torrente caudalosa, que saindo do leito profundo, que
durante séculos a conteve, submerge as aldeias espalhadas pelas suas antigas
margens, tornando-as em montões de ruínas, ou antes podia-se comparar a mil
torrentes descendo repentina mente das montanhas e vindo afluir nos vales — tão
imprevista, tão irresistível era aquela súbita devastação.
A bela
Andaluzia foi a primeira vítima. De mar a mar: desde os rochedos do Sul até os
cabeços das Alpujarras, as cidades foram incendiadas, os templos profanados e
os sacerdotes expulsos deles. O ferro exterminou uma população inteira, e
debaixo dos pés duros do Africano e do Árabe, as mesmas campinas, outrora tão
lindas, e os vales relvosos, amareleceram e secaram-se. E a sorte da Andaluzia
era a que esperava a Hispânia inteira.
Lá soa pelas
ameias da torre de atalaia de Áuria um grito estremecedor: “Mouros! Mouros!
Ei-los! Ei-los!” E mil bocas repetiram este grito de baluarte em baluarte, de
ameia em ameia, de palácio em palácio, e de choupana em choupana: “Os mouros!
Ei-los, ei-los!” Mas não era esta voz a do pavor ou descorçoamento — não se
ouvia ali o estrépito do exército preparando-se para o combate, nem o murmúrio
do povo tumultuando, nem revolta, nem sinal de terror: tudo estava pronto. Por
nove dias estiveram abertas as portas de Áuria desde o amanhecer até o
sol-posto, para receberem dentro dos muros os desgraçados fugitivos, que para ali
corriam de todas as terras próximas, temendo a chegada dos bárbaros muçulmanos:
nove dias lhes ofereceram os muros de Áuria este asilo transitório; passados
eles, as pesadas portas se aferrolharam. Havia justamente um instante, que o
som dos ferrolhos e batentes tinha repercutido nos ouvidos dos sentinelas,
quando se ouviu clamar na atalaia: “Mouros! Eis os mouros!”
Passou uma
hora — hora durante a qual todos os corações estavam cheios de uma resolução
inabalável e sofrida, a qual se reforçava a cada momento mais. Ela passou — e
as portas de Áuria foram cercadas. Não pelos mouros! — ainda não pelos mouros;
mas pelo tropel desvairado dos camponeses, que em altos gritos pediam guarida.
Ainda que só por uma hora mais se concedesse a entrada, os de novo chegados
eram tantos, que bastariam para povoar uma cidade inteira. Debalde lhes diziam
os de dentro que Áuria estava já atulhada; as palavras, que lhes dirigiam para
acalmar a sua desesperação, não faziam senão excitar mais altos e enfurecidos
clamores. A cada instante se aproximava mais o inimigo. Os soldados, que das
alturas fortificadas tinham, sem se comoverem, escutado as pragas e as ameaças
dos homens, pareciam já não poderem resistir ao olhar suplicante e aos gemidos
profundos das mulheres, que imploravam piedade; mas os cabos de guerra estavam
firmes na resolução tomada: com os olhos enxutos e os corações partidos de dor,
recusaram absolutamente abrir as portas, vendo bem que a imediata consequência
disso seria a destruição de todos. Entretanto fizeram deitar das muralhas
abaixo todas as armas que se podiam dispensar; e os que estavam de fora apenas
tiveram tempo de lançar mão delas, e formarem um círculo à roda das mulheres e
filhos, antes da chegada dos seus cruéis perseguidores. Os valentes de Áuria desejariam
voar no seu socorro; mas não era possível abrir as portas em tal crise: seria
um louco heroísmo o tentá-lo. Naquele momento, com um tremendo Allah! e com a
ferocidade de selvagens, os maometanos correram à sua presa. No princípio os
desesperados godos ficaram tranquilos, e as suas caras imóveis, como se fossem
de bronze; depois, como por um impulso do instinto, posto que tão mal armados,
deram sobre o inimigo com tal fúria, que lhe fizeram bem conhecer a recepção
que deviam esperar em Áuria, dando ao mesmo tempo aos seus compatriotas, que
das ameias olhavam para eles espantados, uma lição semelhante à que deu Leônidas
com os seus trezentos soldados ao resto da Grécia. Breve acabou a sua
resistência inútil: seguiu-se uma horrível matança de velhos e de inválidos —
uma bárbara carnificina de mulheres; depois uma pausa silenciosa. Tinha
anoitecido.
Os
vencedores descansaram um dia da sua obra de sangue, talvez para cobrar alento,
talvez à espera de novas cabildas da sua raça sanguinária, que à pressa se
aproximavam. Nem os de dentro podiam capitular, nem os de fora ofereciam
condições para isso: veio e passou o terceiro dia do cerco, e os cercados
indignavam-se do repouso e vagar dos infiéis. Mil dos mais esforçados
resolveram-se a fazer uma correria, e a acometê-los. Afonso, guerreiro ilustre,
os devia capitanear.
Entregue às
preocupações daquela audaz entrepresa, Afonso sentia o coração bater-lhe de
exultação, e trasbordando de gozo afagava o seu ligeiro cavalo. Guerreando por
outras terras, não tinha assistido à batalha de Xerez; mas depressa lhe havia chegado
aos ouvidos o brado da ruína da sua pátria. Nem duvidoso, nem secreto era o
assustador progresso do inimigo da Cruz, o qual enchia de terror todas as
nações da cristandade. Olhado de longe, maior ainda se representava o dano: era
como um prodígio que fazia tremer os homens; era como se um cometa, até então
desconhecido, tivesse aparecido nos céus, e corresse com a rapidez do relâmpago
para a terra ameaçada por ele. Afonso ouvira contar a vitória e os triunfos dos
muçulmanos no seu país natal; e a indignação, e pensamentos eivados de remorsos
ardiam dentro na sua alma. Decerto, para dar asas à pressa que tinha de voltar,
não era preciso saber que Elfrida — a prometida esposa — existia num país
entregue à devastação de infiéis.
Quando pela
última vez pousara nas salas do seu castelo, os pensamentos que tinha, os
sonhos que sonhava, eram de prazer e de glória. E agora a vergonha de tantos
reveses era dentro dele um fogo devorador, que estava a ponto de chamejar!
Elfrida refugiara-se em Áuria, antes da chegada de Afonso: nove dias depois ele
chegou ali, seguido de um tropel numeroso.
Ao
enxergarem-se em distância os flutuantes pendões dos maometanos, o guerreiro e
a sua amante olhavam de um cubelo para as planícies, que se estendiam em frente
de Áuria.
— Lá, lá ao
longe — disse o cavaleiro — onde os estandartes da blasfêmia ondeiam, jaz o
nosso aprazível senhorio. Nosso! Oh não! Louca vaidade foi quem me inspirou
esta palavra: não é já nosso; nunca mais o será. Agora mesmo ele é calcado aos
pés do cavalo árabe. Oh! eles são vagarosos! Há tanto tempo que os observo, e
parece que estão imóveis!
O róseo
rosto de Elfrida estava voltado para ele — e sem descorar de susto. O cavaleiro
cravou nela os olhos.
— Elfrida —
disse ele, — os mouros não te assassinarão; não poderão assassinar-te! — E
depois de uma pausa acrescentou, com ar duvidoso, e um tanto carregado: — Que
te parece, Elfrida, não podes tu vir ainda a ser esposa de um muçulmano?
Ela recuou a
estas palavras, como se uma blasfêmia lhe tivesse retumbado nos ouvidos.
— E és tu,
Afonso — exclamou, — és tu que perguntas a Elfrida se tem o coração de um
apóstata?
Sua voz, seu
gesto, seu lindo rosto demudado pelo horror, fizeram estremecer o guerreiro;
mas antes de poder replicar, essa voz, esse gesto, essas faces tinham
asserenado; e as lágrimas lhe borbulhavam nos olhos. Correndo o braço pela
cara, ela as enxugou.
— Afonso —
prosseguiu a donzela, — posso eu esquecer jamais os dias da infância e da
juventude, em que juntos crescemos? Ser-me-ia dado esquecer a oração da
inocência, que no mesmo dia a ambos nos ensinaram? Perderia eu a lembrança das
horas deleitosas durante as quais, nestes últimos anos, passeávamos juntos ao pôr
do Sol, nas nossas aprazíveis veigas? Esquecerei eu jamais a hora atual?
E parou,
porque a profunda comoção que sentia lhe embargava os sons articulados. Então o
cavaleiro replicou com vivacidade.
— Oh sim!
Esquece a hora presente: esquece ao menos esse instante em que tão iníquo
pensamento achou expressões nos meus lábios.
Mas
reanimando-se e olhando para ele, Elfrida continuou:
— Agora
escuta-me, Afonso, e não te esqueças nunca do que te digo. Eu to ordeno: não
ofereças a vida a uma certa destruição. Não é por amor de mim, nem de ti que to
mando: é por amor da Hispânia. Quando Áuria deixar de existir, e nós, tristes
mulheres, recebermos a honra de um sepulcro, tal como as ruínas destas torres
demolidas, não te demores para tomar uma inútil vingança: foge para as remotas
Astúrias; lá vagueiam ainda muitos esforçados guerreiros, e seja o teu cuidado
único, junto com eles, o de redimir das mãos dos infiéis o nosso malfadado
país.
Então
Afonso, cheio de admiração e gozo, exclamou:
— Tu o
mandas! Eu consagrarei à Hispânia esta espada: mas tu não morrerás aqui, nem
para isso eu pouparei a vida. Se o Céu o consente, Elfrida, nunca nos
separaremos! Promete-me uma coisa!
— Eu ta
prometo.
— Pois bem!
Se os infiéis submeterem Áuria, vem ter comigo aqui.
Separaram-se
— e o inimigo chegou esse mesmo dia, antes do por do Sol.
***
Há três dias
que os mouros estavam acampados diante de Áuria, quando Afonso e os seus
soldados impacientes saíram ao campo. As portas fecharam-se atrás deles. Ei-los
travados com o inimigo!
Nunca tão
rijo encontro tinham experimentado os invasores. Mortal vingança guiava as espadas
dos godos, e durante muito tempo o conflito não parecia mais do que uma ceifa
de vidas e membros de mouros. Os infiéis iam fugindo diante dos cristãos, por
tal modo, que parecia os tomavam pelo feroz Éblis, e pelos demônios seus
companheiros, vindos à voz do profeta a castigá-los de terem, por três dias,
demorado o assalto.
Os mil de
Áuria cortavam nos mouros com um furor incansável, oferecendo assim repetidas
hecatombes às cinzas dos compatrícios assassinados. Nenhum deles estava ainda
ferido; mas o inimigo já os estreitava. Afonso fez reunir aquele punhado de
heróis. Os mouros tinham voltado sobre eles com todo o seu poder, e começavam a
fazer nos godos uma terrível matança: na volta para a cidade quatrocentos deles
caíram mortos; mas ressoaram em Áuria as orações e as graças ao Céu, quando os
seiscentos voltaram com o seu capitão.
Acabaram as
demoras no exército dos exasperados invasores. Nem descanso nem piedade deviam
esperar já os godos. Diariamente eles iludiam as esperanças dos mouros, posto
que mesmo as solenes horas da noite (a noite por quem tantas vezes suspiram os
desgraçados) — as horas do desejado descanso não lhes traziam repouso; mas,
pelo contrário, os allahs dos moslemes, e o retinir dos alfanjes e o estrépito
dos furiosos agarenos, subindo a alguma nova brecha, e caindo despenhados dela,
e os gritos de aplauso dos cristãos — eram os sons que despertavam os ecos
noturnos da cidade silenciosa, e que não cessavam desde o anoitecer até o
despontar da manhã.
Um coro
lamentável se ouvia em Áuria — tal como nunca se tinha ouvido — e gemidos de
íntima aflição ressoavam em toda a cidade como se fosse uma voz única. A fome
tinha chegado. Os velhos e os principais do povo se reuniram em conselho, e a
incerteza fazia bater insuportavelmente todos os corações; mas ninguém se
lembrava de ceder ao odioso conquistador. Levantou-se então um velho para
falar: o seu porte era majestoso; a sua cara a de um profeta; mas a espada lhe
pendia da cinta. Tinha a cabeça descoberta, e os longos, raros e alvos cabelos
lhe caíam sobre os ombros; porém sua voz, forte e clara, não estava ainda
sumida pela idade, nem pelas desditas.
— Não
cedamos — começou ele, — não cedamos! Talvez Deus nos envie socorro.
O velho olhou
para a multidão esfaimada que o rodeava, e ergueu os olhos ao Céu; mas
recolhendo em si toda a sua energia voltou a romper o silêncio.
— Qual
dentre nós não tem encarado cem vezes a morte? Qual de nós a temerá agora? Por
mim estou resolvido: sou velho, assaz velho, de mais tenho eu vivido! Não mais
tornarei a provar o pão que diariamente recebo: eu o cedo aos homens jovens e
robustos; muitos outros de bom grado farão o mesmo. Este é pois o meu conselho:
em Áuria há sustento para nove dias, ainda sendo repartido por todos; divida-se
o povo em duas partes: metade defenderá a cidade por dezoito dias destes ímpios
africanos, e talvez durante esse tempo sejam socorridos; a outra metade
junte-se comigo, retiremo-nos para o lado ocidental da cidade, e morramos às
mãos da fome: isto não é mais do que receber dez dias antes a coroa do
martírio; ou, se a alguém isso convier, saia ao inimigo para morrer ou
salvar-se, podendo, nas montanhas vizinhas.
Calou-se o
velho e desapareceu. Tudo ficou sepultado num silêncio semelhante ao da morte.
Às vezes
sente-se um ruído soturno e subterrâneo, que precede e anuncia o próximo
terremoto: assim daí a pouco começou um murmúrio de vozes confusas entre a
multidão; depois, palavras mais altas, mas ininteligíveis; rapidamente cresceu
o burburinho com altas expressões de angústia, posto que a espaços um terrível
silêncio prendia todos os lábios.
Então
retumbou nos baluartes:
— Mouros!
Mouros! Foge, foge!
O tropel que
estava reunido gelou. Todos arrancaram das espadas e ficaram imóveis porque era
inútil fugir. Os despiedados infiéis tinham levado a melhoria. O seu campo
havia estreitado os muros e podido romper para dentro. Áuria estava perdida.
Era pelo fim
da tarde, e o Sol mergulhou-se nas trevas; mas toda a noite os indomáveis godos
sustentaram a lide. A cada instante se rareavam as suas fileiras, e a cada
instante dobrava a firmeza neles. Ao romper do dia é que viram com espanto a
que número estavam reduzidos. Como a seara madura, que espera pela foice do
segador, assim eles foram ceifados: uns ao pé dos outros caíram até não restar
um só que brandisse o ferro contra o seu destruidor.
Afonso, com
vinte dos seus fiéis soldados, tinha-se retirado furioso da desigual batalha. E
onde estava Elfrida? A torre em que a devia encontrar era já meia por terra, e
correndo para lá, viu que um grande número dos seus compatriotas tinha-se
retirado para ali como para um lugar de refúgio, onde seus irmãos e os seus
pais as defendiam ainda dos bárbaros com a ferocidade de leões, aguilhoados
pelo delírio da desesperação, que gerava neles um valor mais que humano.
Afonso e os
seus passaram a toda a brida através das fileiras inimigas, e fazendo o último
esforço chegaram à torre. A falange dos godos se abriu para os receber, e deu
um grito de frenética alegria vendo ainda vivo o seu capitão. Elfrida ali se
achava, e a promessa que fizera estava cumprida. O guerreiro pregou nela os
olhos lampejantes, mas sem se lhe ouvir uma palavra. Voltou o seu cavalo,
coberto de escuma e de sangue, e que corria avante furioso.
— Agora,
Santiago! — aclamou ele. — Estes pagãos malditos de Deus não ganharão uma fácil
vitória.
Logo que os
muçulmanos o viram, reconheceram-no pelas plumas do elmo, e por aquela espada
cortadora que tinham experimentado no combate em frente de Áuria pela primeira
vez, e que desde este dia sanguinoso lhes era familiar, encontrando-a em todas
as brechas e entre as primeiras que delas os rechaçavam. Até àquele momento os
audazes godos, que lutavam mais como demônios, do que como homens, os tinham
entretido à entrada do baluarte; mas depois que os infiéis o viram retiraram-se
precipitadamente. Era esta a crise, e Afonso, vendo que muitos dos seus
compatrícios perseguiam os fugitivos levando-os diante de si, aproveitou a
ocasião. Voltou apressadamente à torre, com outros que o acompanhavam, e antes
de meia hora Elfrida estava fora de Áuria, as chamas de cujos palácios subiam
já ao céu, e ao seu lado caminhava Afonso com doze homens, que lhe restavam.
Três dias de
indistinta matança — três dias de fogo devorador, e Áuria estava reduzida a pó.
Cada habitação era um sepulcro, as ruínas fumegantes de cada palácio eram um
monumento da morte, e cada torre dentro dos seus muros vacilantes era uma vasta
catacumba cheia de humanos cadáveres.
Seguindo
sempre avante, Afonso volveu os olhos para a cidade vencida. As bandeiras
tremulantes dos agarenos se descobriam em distância, e as armas lampejavam com
os raios do Sol. Ele era perseguido. Ainda aqueles bárbaros não tinham saciado
a sua sede de sangue cristão, e o deixar escapar uma vítima era generosidade
que eles não conheciam; pelo contrário, a estes sectários de uma religião cruel
a compaixão parecia uma impiedade. Ansiosamente prosseguiam os fugitivos seu
caminho por uma planície coberta só de ruínas. Eles fugiam para o norte; mas os
mouros os alcançaram com a rapidez de um turbilhão. Estavam ainda próximos de
Áuria, e o cavalo em que ia Elfrida tropeçou num elmo quebrado e caiu.
Acontecimento fatal! Afonso gritou aos seus:
— Volta,
volta: façamos-lhes frente!
Mas apenas
tinham ajudado Elfrida a cavalgar outra vez, e iam obedecer à voz do seu
capitão, já os seus perseguidores eram de envolta com eles. Não houve um
momento para deliberar; a multidão dos mouros cercava os heróis, e a batalha
não podia durar muito entre os combatentes. Coberto de feridas, que jorravam
sangue, Afonso caiu, e Elfrida, vendo isto, se arremessou também por terra: seu
desejo era morrer; porém no meio do tumulto não houve uma propícia mão que a
ferisse, nem um cavalo furioso que debaixo dos pés a calcasse. Em menos de uma
hora ela se achava cativa nas tendas de Islão.
Um godo
desleal, que havia abjurado a Cruz, era o guarda das cativas. Não era Elfrida a
única dentre os cristãos que ali se achava: mais três filhas de Áuria estavam
com ela. Durante muitos dias foi esse miserável godo o único ser humano que
viram: entre um povo estranho cuja língua não entendiam, vê-lo tinha-se tornado
numa espécie de consolo, e ansiosas esperavam sempre a hora periódica em que
devia voltar. Era ele o único intérprete das ordens dos seus senhores, e só
abria a boca para lhas comunicar. Ainda assim alegravam-se ao sentir-lhe
passos; e a voz de um renegado era grata aos seus ouvidos porque exprimia os
sons da cara linguagem materna. Só elas tinham escapado ao extermínio geral; e
guardada lhes estava a escolha entre a apostasia e a morte. Contudo a sua
prisão não era dura; e só se podiam chamar cativas pelo estrito cuidado que
havia em lhes impedir a fuga. Todas elas eram novas, todas belas, todas órfãs:
pais, mães, parentes, amantes, amigos, todos aos seus olhos foram mortos; e
elas, oh abismo de ignomínia! só tinham
sido salvas para saciar os desejos de algum dos bárbaros conquistadores. Breve
chegou o instante em que era preciso escolher ou a conservação de uma vida
eternamente oprobriosa ou a morte com fama imortal. Trazendo esta horrível
mensagem, as faces descarnadas do velho godo estavam pálidas como de susto:
— Morrei! ou
abandonai a fé do Crucificado!
Foi com voz
trémula que ele disse isto. As cativas não sentiam um terror semelhante ao seu:
sem demora, sem o amor da vida as fazer contender sobre qual seria a primeira,
olhando para o apóstata, com amargo desprezo, escolheram a morte, e uma a uma
foram conduzidas ao suplício. Chegou a vez de Elfrida, que para lá se
encaminhou pensativa, mas firme. De repente, voltando-se, perguntou ao godo com
voz tranquila:
— Pode acaso
ser-me dado tempo para escolher?
Depressa
levou ele recado aos seus senhores, e depressa voltou com a resposta.
— Tendes
doze horas: no fim delas, dareis forçosamente a decisão.
E muitos
muçulmanos deslumbrados pela sua formosura seguiram com os olhos a cativa, que
semelhava uma rainha no meio dos guardas que a levavam à sua prisão.
***
Passadas
três horas o intérprete chegou: era este o espaço que devia mediar entre uma e
outra visita. Isto lhe fora ordenado sob pena de morte. Não se atreveu a falar
a Elfrida, porque esta não olhou para ele ao entrar, como costumava; e sem dar
palavra voltou a sair outra vez.
Passaram
mais três horas e o godo voltou outra vez.
— Senhora,
trago boas novas! — disse ele. — Abdelazim, nobre árabe do nosso campo, me envia
a vós; ele vos manda dizer que vos ama. Será para vós bem suave destino o
viver, e serdes sua esposa querida. Mas escutai-me: ainda vos direi mais: foi
Abdelazim quem nos campos vizinhos de Áuria vos ergueu do chão, onde jazíeis
desmaiada, e onde se não fosse ele seríeis calcada aos pés dos cavalos. Foi ele
quem vos salvou das espadas dos seus companheiros, que vos atalharam a fuga.
Foi ele quem para aqui vos conduziu a salvo.
— Era
porventura — perguntou a altiva dama — um cavaleiro, cujo turbante era mais
elevado, e cujos trajos eram mais ricos, do que os dos seus camaradas?
— O mesmo —
replicou o godo.
— Então é
ele também — exclamou Elfrida — quem derrubou Afonso, o mais valente guerreiro
de Áuria! Escuta-me, pois, oh godo; a minha resposta é esta, e não o duvides.
Estou resolvida a morrer! nem creias que receio a morte. Perseguiu-me, a noite
passada, a ideia de que o Céu me guardava outros fados, e que brevemente a sua
onipotência viria no meu socorro. Não penses, portanto, que uma vil hesitação
me fez pedir esta demora de doze horas: eu previa que era necessária ainda na
Terra, e que não devia morrer tão cedo. Quaisquer que sejam os meus destinos,
eu não descerei ao sepulcro, sem os ver cumpridos. Agora pensa um pouco: que és
tu aqui? Um desprezível apóstata, de quem estes mesmos bárbaros se não fiam
inteiramente. Em algum momento de desconfiança te assassinarão. Queres tu ser
rico? Queres tu possuir as pompas e grandezas que a riqueza te pode alcançar
noutro qualquer país? Godo, responde-me!
O seu olhar
feroz, que penetrava até os seios da alma, aterrou o assustado velho, que ficou
mudo diante dela. Elfrida percebeu a sua perturbação, e antes dele poder
responder, continuou com altivez:
— Eu tenho
mais riquezas do que todas as que tu podes imaginar nos teus sonhos de ambição.
Serão tuas, oh godo; serão tuas! e com elas poderás fugir para algum país mais
seguro do que este. Para destruir tuas dúvidas neste mesmo lugar te posso dar
um sinal do que te farei possuir. Em paga de tais benefícios só te peço uma
coisa: que executes com fidelidade, por oito dias, as minhas ordens, e só as
minhas. Não hesites! Não te é novo o mudar de senhor. Já deixaste a mais nobre
causa, para seguir a mais vil: não te deve custar agora tanto o trocar o mal
pelo bem. Sabe mais que nada arriscarás no serviço que te peço: sendo-me leal,
estás seguro. Lembro-te que eu não receio morrer: que até a isso estou
resolvida. Se me atraiçoares a ti só atraiçoas. Ficaste imóvel? Vai, pensa uma
hora: não mais; depois torna aqui.
Dizendo isto
voltou-lhe as costas, e o seu guarda desapareceu.
Elfrida
apenas podia conter a satisfação de assim haver enredado o godo. Nunca houve
hora, que lhe parecesse tão longa como esta; e crendo antes de tempo que ela
tinha passado, já começava a temer que o vil apóstata não voltasse; mas finda
ela, o godo voltou.
— Senhora —
disse ele, — pensei nas palavras que me haveis dito, e não posso obedecer-vos.
Formosa dama, eu me compadeço de vós!
—
Compadeceres-te de mim! — interrompeu ela, sufocada de furor. — Compadeceres-te
de mim! Desgraçado! Compadece-te de ti que estás no meu poder! Que atrevimento
é o teu? Que significam estes elogios que me fazes de formosa? Agora compreendo
bem o sentido das tuas lisonjeiras e doces expressões. Abdelazim verá como
executaste fielmente a comissão, de que te encarregou. Saberá o árabe teu
senhor que buscaste substituí-lo e empolgar a sua presa.
O apóstata
ficou aterrado; mas entrando em si, no mesmo instante, respondeu com um
sorriso.
— Débil
mulher! E quem referirá ao nobre árabe o conto sentimental da presunção do teu
intérprete?
— Quem,
dizes tu? — clamou Elfrida com o acento de uma raiva profunda, e parou; mas por
um momento. — Quem? tu mesmo! Serás tu em ferros quem lho diga. Oh lá! não há
aí guardas? É esta a hora própria de entrares assim clandestinamente no quarto
da tua cativa? Ainda não passaram três horas depois que estiveste aqui. Oh lá,
guardas!
E ela corria
para a porta.
— Parai,
parai, senhora! — clamou o godo aterrado.
— Fala já! —
gritou a desvairada Elfrida, com uma voz retumbante. — Fala já, ou morres por
ter aqui entrado. Não te demores; ajoelha, e promete de ser meu servo, só por
estes oito dias, de que te falei; e a vida e as riquezas serão tuas.
Ela tinha a destra
estendida para o godo, e vendo-o irresoluto e estupefato, lhe arrancou um
punhal, que tinha à cintura, pendurado junto do alfanje, e ia outra vez
dirigir-se para a porta. Então o velho caiu aos seus pés.
— Jura em
nome do Céu! — disse ela; e, humilde, o renegado deu o pedido juramento.
Elfrida se
tranquilizou pouco a pouco:
— Agora
procura Abdelazim — prosseguiu ela. — Diz-lhe que o meu nome é Elfrida e que
nada mais saberá. Vai e assegura-lhe que serei sua esposa.
Então
tirando uma joia que tinha escondida:
— Aí tens —
acrescentou — o prometido sinal das riquezas que te ofereci (os olhos do godo
brilharam de prazer), mas guarda-te que os mouros a vejam, porque não seria tua
muito tempo! Diriam até que a roubaste.
Quanto ao
punhal eu não to restituirei; ele será uma testemunha contra ti, se me fores desleal.
Toma pois cuidado: depois te darei novas ordens. Entretanto dirigi-te a
Abdelazim, única pessoa que eu consentirei de mim se aproxime.
O assombrado
apóstata saiu da sua presença ao ouvir estas últimas palavras; e ela ficou
sozinha.
***
Era noite:
mas noite daquelas em que o existir é um prazer bem doce — plácida e quieta por
tal modo, que devia inspirar ao coração humano o amor da paz e da piedade. O
céu, a terra, o ar, tudo parecia trasbordar de alegria, ora soando o harmonioso
murmúrio da viração, ora quando tudo jazia adormecido no silêncio do repouso.
Tal era a
noite. E numa tenda suntuosa a formosa Elfrida esperava a chegada do seu novo
senhor.
Coberta de
roupas magníficas, que o mosleme lhe tinha mandado: as joias brilhantes (que
talvez tinham sido suas) lhe coroavam de novo a nobre cara e lhe circundavam o
puro seio.
Um grande
número de desconhecidos esperavam mudos as suas ordens, e um silêncio não
interrompido reinava naquela câmara suntuosa.
Tão profundo
era ele, que Elfrida tinha, caído num letargo, de que a despertou um suspiro
saído do próprio seio, e que bem indicava as ideias tremendas que lhe passavam
pela mente. Neste instante, porém, ela reassumiu todo o vigor da sua alma; e a
resolução que tomara tornou-se inabalável.
Elfrida estava
mudada — e quanto mudada! Os seus olhos, tão meigos antes, brilhavam agora com
um fulgor descostumado, e as belas formas do seu corpo estavam convulsas, bem
que ela o procurasse esconder. Sinistros eram por certo os pensamentos que
dominavam o seu coração.
Um estrépito
de passadas e vozes lhe deu a conhecer que Abdelazim chegava. Ele com efeito
entrou seguido do renegado. O ar majestoso de Elfrida parecia havê-lo
deslumbrado: entretanto ela, vendo que o intérprete se ia retirar, lhe falou na
linguagem do país, que o seu novo amante não entendia.
— Godo — lhe
disse, — corre, e conduz dois cavá-los ligeiros para perto daqui. Volta
imediatamente, que já me acharás pronta.
Abdelazim
ficou espantado do ar de autoridade com que ela pronunciou estas palavras; mas
um sorriso de Elfrida asserenou suas suspeitas; e falando também com o velho,
lhe disse em árabe:
— Vai-te e
manda embora os outros servos; eu me demorarei aqui.
Imediatamente
foi obedecida.
Elfrida
ajoelhou vagarosamente ao aproximar-se dela o árabe. O seu longo e branco véu
lhe cobriu o corpo inteiro. O amoroso bárbaro se inclinou para erguê-la, e
quando ia a pronunciar as doces palavras que o intérprete lhe ensinara: “Não
temas, senhora”, o punhal de Elfrida lhe rasgou as entranhas.
Ele caiu —
Elfrida ficou outra vez só.
Com o
sanguento punhal apertado na mão, ela saiu do quarto. Ligeiramente e sem
estrépito, mas trémula e com as faces ardentes, passou o acampamento dos
muçulmanos. Ali encontrou o godo, que apressado a procurava. Por medo ou por
avareza, ou, talvez, porque um sentimento religioso e patriótico havia voltado
ao seu coração, ele cumprira a palavra. Contudo ao ver o ar desvairado e
ameaçador de Elfrida ficou horrorizado.
— Abdelazim
está morto! — ouvindo isto o velho recuou de terror — mas tu, godo, cumpriste o
teu dever.
Então,
arrojando de si as joias que a enfeitavam, prosseguiu:
— Recebe
esses objetos de maldição! As riquezas que te prometi encontrá-las-ás nos
subterrâneos que existem debaixo das ruínas do mais suntuoso palácio que havia
em Áuria.
Nada mais
disse; e voltando as rédeas ao cavalo, em que já tinha montado, fugiu na
direção das montanhas do norte.
Ai! Ela não
sabia que Afonso era vivo; nem ele os atos heroicos do inextinguível amor de
Elfrida.
Os plainos
de Áuria não tinham sido para Afonso o leito de morte. Exaurido de forças,
caíra entre o montão dos mortos e moribundos; mas enfim despertou do seu
desmaio, e pôde salvar-se.
Brevemente
souberam os mouros, à própria custa, que ainda vivia! Mas onde estava ele nesta
noite medonha, em que Elfrida fugia sozinha do campo dos infiéis?
***
Os
habitantes do vizinho vale contaram que naquela noite se ouviram os agudos
gritos de Elfrida, ao passar na proximidade das suas choupanas solitárias, e
que ressoara o galope do seu cavalo, subindo a encosta da parte menos acessível
da montanha.
O vento
conduzia ainda ao longe o alto e amargo riso da sua desesperação; mas ela nunca
mais foi vista. Um cavalo ricamente ajaezado apareceu solto junto das
habitações da aldeia: muitos diziam que era o dela; mas outros pelo contrário
afirmavam que não, e que Elfrida vivera longo tempo, ermando em distantes
montanhas, donde às vezes nas longas noites de Inverno voltava sozinha, e
montada no seu cavalo bravio, à habitação querida da infância; porém que,
aproximando-se alguém, logo desaparecia.
E ainda
agora, muitas vezes, ao anoitecer, segundo dizem os crédulos camponeses, a alma
errante de Elfrida anda pelas planícies de Áuria.
Também os
velhos contam terem visto o seu espectro nas noites de alguns invernos, que já
lá vão há muito, e que as mesmas criancinhas se arrepiavam, ao ouvir nas horas
de modorra os seus altos clamores de aflição.
Agouro de
mau fado é o escutar os sons inarticulados destas almas errantes: assim, quando
ressoa a voz noturna da dona de Áuria, todas as raparigas do vale rezam, e
fazem promessas aos santos da sua maior devoção.
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...