6/02/2019

A coruja fiadora (Fábula), de Ana de Castro Osório


A coruja fiadora

No Reino das Aves apareceu, em certa ocasião, um pássaro, de que não se sabe o verdadeiro nome. Era tão depenado e feio que logo se tornou conhecido pela triste alcunha de "Pinto-nu".

Toda a mais passarada se ria dele a bom rir, e ninguém da sua desgraça tinha dó.

Se, ganhando coragem, alguma vez intentava meter-se entre os colegas, ser da sua sociedade, conversar, enfim, amigavelmente, corriam-no à bicada e faziam tanta troça dele que o pobre ia esconder-se, debulhado em pranto, no primeiro buraco ou moita com que deparava.

A Coruja — que é uma boa criatura apesar do seu feio aspecto — tanto se condoeu quando ouviu as lamentações do Pinto-nu, que resolveu protegê-lo.

Pega em si, chamou o Pinto-nu, garantiu-lhe a sua proteção e foi com ele até onde se reunia a passarada mais das suas relações. Apresentou o protegido como desventurado sem culpa nenhuma. E pediu para ele a piedade e atenção dos seus colegas. E tanto bradou, tão bem soube falar ao coração das aves, que por fim elas, todas à uma, lhe disseram:

— Tens falado como um livro aberto, ó Coruja. Nem outra coisa era de esperar da tua inteligência e sabedoria! Mas nós estamos já tão cansadas e fartas de socorrer miseráveis, que ainda por cima escarnecem de nós e nos ficam a dever! Nada, por isto, daremos a este necessitado sem que nos dê boa fiança de um empréstimo. Se tu ficas por ele, cada uma de nós lhe dará uma pena, que nos pagará para o ano novo. E ficará vestido que nem um Príncipe. Agora se tu não quiseres ser sua fiadora, que se arranje como puder, porque nós não estamos para ouvir mais lamúrias!

— Pois seja (tornou a Coruja!) Ficarei por fiadora do Pinto-nu. E estou certa que ele me não deixará ficar mal colocada com os meus amigos. Não é verdade isto, Pinto-nu?!...

— Ó senhora Coruja, pode confiar absolutamente em mim! Serei um seu escravo, e o meu reconhecimento será eterno!

Assim choramingou, enternecido, o Pinto-nu, batendo ao mesmo tempo o bico, cheio de frio e de vergonha.

Aceitaram as aves servir o Pinto-nu, com a fiança da Coruja. E cada uma por sua vez deu uma pena ao desprezado, que, num momento, se encontrou vestido e belo entre os mais belos e bem vestidos passarolos. Mas o que fora Pinto-nu, mal se apanhou vestido e emplumado, bateu as asas e por aqui me sirvo!... Ninguém mais lhe pôs a vista em cima, nem ele mais deu sinal de si! A pobre Coruja, que se tinha comprometido com as outras aves como sua fiadora, ficou por tal forma envergonhada que nunca mais quis sair ao campo durante o dia, pois na verdade não tinha maneira de pagar uma dívida tão grande, por muito ano que vivesse.

E dizem que é este o motivo porque ela, daí por diante, ficou sendo uma ave noturna.

Vejam que ingrato foi o Pinto-nu!... E quantos assim há, por esse mundo de Cristo!... Quantos Pintos-nus pedincham e prometem, valendo-se de qualquer desgraça, fingida ou verdadeira, e pagam, depois de servidos, com negra e baixa ingratidão e muita maldade!


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Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliôtronica Portuguesa)

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